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SANTUÁRIO DE GELO

Quarta-feira, 27.02.19

Alta madrugada! Um cavaleiro, estranho e enigmático, trajando de negro, com um capuz a tapar-lhe a cabeça e a esconder-lhe uma boa parte do rosto, aproximou-se dos muros circundantes de um vetusto mosteiro. Vinha de longe, percorrera praias de areia dourada mas também atravessara oceanos repletos de baixios e escolhos; calcorreara caminhos amaciados com sombras e aureolados com o esplendor das madrugadas mas também enveredara por atalhos sinuosos e tétricos; hospedara-se em cidades modernas, coloridas e cheias de luz mas também vagueara por desertos atulhados de tempestades e nevoeiros. Montava, com audácia e valentia, com garbo e aprumo, um cavalo branco, com selim de prata e arreios de marfim, correndo acelerado em elegante e destemido trote.

Dentro do mosteiro havia um santuário e o cavaleiro cuidava que era ali, na sombra e no silêncio, em oração e penitência, em contemplação e clausura que havia de penetrar nos meandros apocalípticos duma sublime transformação.

O mosteiro era um enorme edifício, um monumento de rara beleza e excelsa grandiosidade, um cenóbio edificado com excelência e magnanimidade. Rodeado de um alto e portentoso muro, o mosteiro apenas comunicava com o exterior por um robusto portão, a que se seguia um amplo terreiro, com uma escadaria granítica a conduzir à porta de entrada da majestosa e imponente fachada do santuário. Acreditava o cavaleiro que aquele era um santuário de sombras e de silêncios, onde havia de submeter-se ao acto sacramental, à adoração contínua, à iniciação contemplativa e à restauração apocalíptica, na esperança de se redimir e se refugiar da morte ritual.

O cavaleiro de negro bateu a aldraba do portão, uma vez, duas vezes, três vezes. De dentro uma voz rouca e, aparentemente, esbranquiçada pediu-lhe a senha. Nem santo, nem senha. O cavaleiro apenas cuidava que dentro daquele lugar de adoração havia sombras e silêncios. Nova investida. Um cavaleiro de bronze, também ali refugiado em clausura, abriu-lhe o portão, indicou-lhe a travessia do átrio e conduziu-o na subida da escadaria granítica, até à porta do santuário, sem proferir palavra. E o cavaleiro trajando de negro, sempre com o capuz a cobrir-lhe a cabeça e a tapar-lhe uma boa parte do rosto, entrou no santuário, na esperança de encontrar silêncios e sombras. Mas no santuário havia apenas uma estátua, aureolada com um diadema de espuma aveludada, surgindo de entre os silêncios e as sombras que o cavaleiro cuidava ver. Tinha na mão direita um ceptro de cristal e na esquerda um livro aberto, onde se podia ler, a letras garrafais; “A percepção é cega e enganadora. O que se vê não é necessariamente o que existe.” Caminhando na direcção do cavaleiro, a estátua tocou-lhe, ao de leve, com o ceptro de cristal, cravando-lhe, na fronte um estigma esverdeado, desaparecendo, de seguida, no meio dos silêncios e das sombras, sem deixar rasto, ao mesmo tempo que o cavaleiro perdia a consciência. Quando a recuperou, percebeu que, afinal, estava num santuário, mas num santuário branco, guardado pelo cavaleiro de bronze e todo revestido de gelo. Afinal naquele enigmático santuário não havia nem sombras nem silêncios, nem ritos sacramentais, nem iniciação contemplativa, nem virtualidades apocalípticas. Só havia gelo. Tudo o que o formava, rodeava, envolvia, amparava, constituía e até iluminava era de gelo.

“Se o santuário é de gelo, - pensou o cavaleiro - hei-de envolver-me em espuma, até me congelar. Hei-de assumir como meu, o destino do "Esquife de Gelo", domínio secreto do santuário, onde nenhum outro cavaleiro, mesmo que de ouro, de prata ou outra coisa qualquer, possa nele penetrar.

E o cavaleiro de negro refugiou-se, por algum tempo, no santuário, na expectativa de aprender e de dominar as técnicas de domínio, de sobrevivência e de vida no gelo. Mas o seu golpe de congelamento foi de tal modo incurial e extravagante, que provocou uma inesperada rajada de cristais de gelo que, caindo em catadupa, sobre o próprio cavaleiro, o fulminaram mortalmente.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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