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SEM NADA

Domingo, 11.05.14

Nos dias seguintes, o corregedor de São Roque, o edil e muitas outras autoridades representantes da municipalidade percorreram toda a freguesia de Santa Luzia, desde das Bandeiras até Santo António, para se certificarem dos prejuízos e fazerem o levantamento das maiores necessidades, bem como o rol dos que tinham sido mais atingidos pelas terríveis consequências de tão trágica calamidade.

Feitos os registos e anotadas as mais patentes situações de prejuízo material, verificou-se que, afinal, o rol era bem maior do que se esperava. É verdade que não morrera ninguém e o número de feridos também era quase nulo, mas a quantidade de pessoas afectadas pelas consequências da tragédia era muito grande, os prejuízos materiais eram enormíssimos e nem tinham sido todos contabilizados. Muitas casas haviam sido destruídas, inúmeras famílias haviam ficado sem gado, sem campos e sem vinhas e grande parte da população não tinha onde dormir, nem algo para comer. Muitas pessoas tinham ficado rigorosamente sem nada.

Aos apoios vindos do Cais e de São Roque chegaram outros vindos da Horta. Eram barcaças carregadas de agasalhos e mantimentos, a atravessar o canal e a contornear a parte norte da ilha, da Madalena até Santa Luzia. Aí encostavam aos rola pipas que haviam escapado à torrente de lava, onde homens de calças arregaçadas até aos joelhos, enfiados na água, os esperavam, na tentativa de amarrar os barcos e descarregar por ali a cima, com a maior urgência possível, tudo aquilo que as embarcações traziam e que era tão necessário para minguar as agruras e satisfazer as necessidades de quantos haviam sido atingidos por tamanha calamidade.

Entre o enormíssimo número de desalojados que haviam ficado sem nada, encontrava-se José Pereira de Azevedo. Sem casa, sem terras, sem gado e sem família, José Pereira de Azevedo, a mulher e o filho, não tinham onde dormir, nem sequer como se alimentar. Nos primeiros dias foram-se acomodando nos improvisados abrigos trazidos de São Roque e da Horta. Mas tinham que partilhá-los com outras famílias, amontoando-se e escarrapichando-se uns sobre dos outros, sem condições, sem sossego e, sobretudo, sem esperança. As crianças, os velhos e os doentes, apesar de serem sempre os primeiros a serem atendidos, eram rigorosamente os mais afectados e os mais desprotegidos. A comida também rareava e a pouca que existia e era distribuída, vinha sobretudo dos lados de Santo António e São Roque e só se conseguia obtê-la depois de horas e horas em fila, à espera de vez. José Pereira de Azevedo não se queixava e até considerava que, apesar de tudo, aquilo até era uma dádiva de Deus, que no meio de tão grande aflição, de tão eminente perigo, os havia protegido e salvo, através da sua infinita bondade. Para ele e para a mulher o sacrifício nem era demasiado… Mas para o filho, sobretudo para o seu menino… A criança não podia viver naquelas condições.

Alguns habitantes de Santa Luzia já haviam partido para Santo António, São Roque e até para outros lugares mais distantes, onde tinham familiares. No entanto chegavam notícias desagradáveis, desanimadoras e muito alarmantes. Noutras localidades do Pico, sobretudo do lado do Sul, nomeadamente em São João e em São Mateus haviam sido sentidos abalos semelhantes aos verificados em Santa Luzia. Também ali as bocas da montanha se haviam aberto e lançado jactos de lava sobre as encostas, encharcando de fogo e de destruição toda a zona entre estas duas freguesias. Dizia-se mesmo que grande parte da freguesia de São João, incluindo a igreja, havia desaparecido.

Estas notícias assustavam e preocupavam sobretudo Madalena de São João. E quando José, consciente da sua situação, da sua desgraça, lhe propunha abandonar Santa Luzia e fixar-se noutra freguesia do Pico, Madalena contrariava:

- Para outra freguesia? Para, amanhã, nos acontecer o mesmo? Nem pensar! Ou ficamos aqui ou a sair, vamos para outra ilha, para uma ilha onde não haja nem abalos, nem vulcões, nem esta lava destruidora.

- Mas essa ilha existe, Madalena! Essa ilha existe! – Repetia José, vezes sem conta, em voz baixa, como se estivesse a sonhar.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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