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A BALEAÇÃO DA CRIANÇADA

Terça-feira, 11.04.17

As crianças, geralmente, imitavam nas suas brincadeiras as atividades a que se dedicavam os adultos. Era assim com a pecuária, com a agricultura e, também com a baleação.

A brincadeira da baleação iniciava-se com a construção dos botes e da lancha feitos de cana mas que eram em tudo semelhantes aos dos adultos, aos da verdadeira baleação. As canas proliferavam por ali e eram apanhadas no Outeiro, junto à Cruz ou na ladeira do Fernando. Num ápice a frota estava pronta. Duas canas amarradas em ambas as extremidades com fios de espadana, três ou quatro canas mais pequenas mas com tamanhos diferentes e cortadas em bico nas extremidades eram encaixadas nas duas canas iniciais, a maior ao centro e as outras a decrescerem para a ponta e para a ré, dando-lhes forma de um bote. Selecionada a companha, o mestre aplicava na ré uma cana a fazer de esparrel enquanto o trancador desfiava uma espadana e, amarrando os fios uns nos outros, fazia um cordão ao qual amarrava o arpão, ou seja, uma outra cana de ponta bem afiada e presa, na parte posterior, à proa do bote. Os restantes encadeavam canas de um e outro lado do bote a simular os remos. A lancha, a que era dado o nome de “Leta” ou “Maria Palmira” ou “Santa Teresinha” era em tudo semelhante aos botes mas sem esparrel. Tinha uma lança em vez do arpão e era quadrada à ré, tendo como tripulação, se a miudagem fosse pouca, apenas um tripulante que fazia simultaneamente de mestre, maquinista e proeiro. Os que não tinham lugar nas embarcações, geralmente os mais pequenos ou os menos creditados na arte estavam condenados a fazer de baleias. Destes havia um que no início desempenhava o papel de vigia. Como ficava sem fazer nada, logo após o atirar do foguete transformava-se em baleia. O mar era a Rua Direita, junto ao chafariz de duas bicas, e o porto, onde a frota estava parada e donde partia logo que o foguete rebentasse, era o pátio da Casa de Espírito Santo de Cima.

Por sua vez as baleias percorriam a rua de cócoras, depois de encherem a boca com água nas bicas do chafariz. Logo que a primeira baleia se pusesse em pé, isto é, viesse à tona de água e bufasse o jato de água, o vigia encavalitado em cima do chafariz atirava o foguete, lançando para o ar uma pequena cana ou uma vara ou, por vezes, até um jacinto arrancado num quintal qualquer ali perto, acompanhado de um enorme e estrondoso “fsset pum, prá, prá, prá” se fosse cardume ou um simples “fsst pum” se fosse uma só baleia. De imediato toda a companha corria para os seus botes a gritar “Baleia à vista! Baleia à vista!”. Entravam nos botes, ocupavam os seus postes e lá seguiam atrelados à lancha ou a remar sozinhos para o alto mar, ou seja para o sítio onde estavam as baleias. Estas andando de cócoras, a simbolizar que estavam debaixo de água, com a boca cheia de água lá se iam levantando e bufando de vez em quando mas deviam fazê-lo com tal agilidade, rapidez e performance que dificultasse ao máximo a ação do trancador, evitando que este lhes acertasse. É que o trancador só podia atirar o arpão às baleias que estivessem em pé e a bufar. As regras no entanto exigiam que estas o fizessem frequentemente e corressem para o chafariz, voltando a encher a boca de água, logo que a esvaziassem.

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MANÉ CHINÉ

Terça-feira, 31.01.17

Uma das músicas tradicionais, cantadas nos jogos e rodas que se faziam nas casas do Espirito Santo e noutras ocasiões, embora raras, que o povo se juntava para se divertir em pequenas e frugais festas era o Mané Chiné. Trata-se de uma canção que possivelmente, outrora, terá acompanhado bailes e que por isso mesmo se revela como um misto de alegria e ritmo. Apesar de todas as dificuldades e carências vividas noutros tempos, O Mané Chiné, possivelmente trazido para as ilhas pelos primeiros povoadores e que tem referências aos tempos coloniais onde predominava a escravatura, manifesta, no entanto, um reflexo da boa disposição e de alegria de viver do povo.

 

Era meia noite cerrada ó Mané chiné

Dizia o filho p´ra mãe

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

As moças da Ribeirinha ó Mané chiné

São poucas mas dançam bem

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

O padre corações casa ó Mané chiné

Estão metidos numa alhada

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

Correu atrás das moças ó Mané chiné

Com as saias levantadas

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

Minha avó quando morreu ó Mané chiné

Deixou-me uma mala em deixa

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

Deixou-me uma mala velha ó Mané chiné

Que já não abre nem fecha

Vai de banda vai de banda olé

Vai de banda ó Mané chiné

 

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BRINCAR AO ARAME

Quarta-feira, 14.12.16

O arame era uma enorme extensão de fio de aço bem esticado e preso nas extremidades a enormes vergas de madeira, umas lá no cimo da alta Rocha da Fajã e outras cá em baixo, numa espécie de espojadoiro, para tal construído. O arame formava com a rocha e o caminho paralelo à Ribeira e que dava para a Figueira, uma espécie de triângulo rectângulo do qual constituía como que uma real e verdadeira hipotenusa. Assim, fixando-se rijamente de alto abaixo da rocha em diagonal, os molhos, presos por fortes ganchos de ferro em forma de S ou de C, eram nele colocados, um a um e deslizavam vagarosa mas airosamente, como que dançando e balouçando-se ao longo do arame, ao sabor do vento e da gravidade, até atingirem, por vezes, enorme velocidade, e chegarem cá abaixo, donde eram imediatamente retirados.

Na Fajã Grande, ladeada a oeste por uma infinidade de rochas, existiam pelo menos mais três ou quatro arames: um na Rocha da Ponta, um na dos Paus Brancos e outro no Cabeço da Rocha, mas o principal e mais utilizado era realmente “o Arame da Ribeira”. O arame, inevitavelmente, fazia parte da vida quotidiana fajãgrandense.

Ora a ganapada de outros tempos, sem brinquedos de plásticos e sem ipads e consolas, brincava com aquilo com que via os pais trabalharem no seu dia-a-dia. Era assim com as vacas de sabugo ou de favas, com os barcos de madeira, com a máquina de desnatar leite de batata branca, com os porquinhos de batata-doce, com as cadeirinhas de junco e com tantas outras coisas. Uma delas era brincar ao arame.

Para brincar ao arame, normalmente, procurava-se um local ou um sítio desnivelado. O estaleiro do milho era o mais utilizado. Outras vezes um maroiço, uma parede, um pátio mais alto ou até a janela de uma casa velha. Depois arranjava-se um fio de barbante ou outro qualquer, por vezes até uma espadana desfiada e muito bem atada, sem que os nós se salientassem em demasia. Amarrava-se uma das extremidades do fio no alto e outra no chão e esticava-se bem. Os ganchos eram feitos de pedacinhos de arame que se encontrava por aqui e por ali. Quando não se tinha arame recorria-se a um garrancho de lenha de incenso ou faia, que formasse um v invertido. Os molhinhos eram feitos do que havia mais à mão: fochos, sabugos, ramos de árvores, por vezes até uma pequena pedra. Todos estes artefactos eram amarrados com fios de espadana, presos nos ganchinhos e uma vez pendurados no fio, começavam a deslizar por ele abaixo como desciam os molhos dos nossos pais colocam lá no alto da Rocha, através do Arame da Ribeira ou dos outros existentes na freguesia

Uma brincadeira encantadora, esta do arame.

 

 BOAS FESTAS

 

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NAS CASAS DO ESPÍRITO SANTO

Quinta-feira, 12.05.16

A Cabra-Cega era um dos jogos mais praticados pelas crianças, na Fajã Grande por alturas das Festas do Senhor Espírito Santo, sobretudo nas noites de Alvorada no sábado depois de distribuir a carne e no domingo durante a tarde. Quer a Casa de Baixo, quer a de Cima enchiam-se de gente nesses dias. As crianças não se acomodavam e entre outros jogos nunca faltava a Cabra Cega.

Para o realizar a criançada interessada em participar formava círculo, no meio da casa, dando as mãos umas às outras. Antes, porém, haviam escolhido uma delas para fazer de cabra-cega a qual era encurralada no meio da roda, depois de lhe serem tapados os olhos com um lenço ou outro pano qualquer, havendo alguém que certificasse que ela nada conseguia ver.

Depois obrigavam-na a dar três ou quatro voltas sobre si mesma, a cabra-cega dirigia-se para junto de um elemento da roda, enquanto os outros jogadores andavam à volta da cabra-cega tocam-lhe levemente, com as mãos para a desorientar e chamavam por ela dizendo cabra-cega, cabra-cega, cabra-cega, a fim de a baralhar e confundir ainda mais.

Ela, sempre de cara tapada tentava agarrar um dos jogadores. Depois de o conseguir a roda parava de andar e a cabra-cega tinha que identificar o jogador que agarra, o qual nunca falava para não ser reconhecido pela voz. Era com as mãos, apalpando o cabelo, o rosto, os olhos, os braços, as roupas que a cabra-cega o tentava identificar. Só quando a cabra-cega conseguia adivinhar quem era o jogador que agarrara, esse jogador era vendado e passava a ser a nova cabra-cega. Se não conseguisse identificar o participante que agarrara, a cabra-cega tinha que tentar apanhar outro e, da mesma forma, identifica-lo. O objetivo principal do jogo era o de que a cabra-cega reconhecesse um participante pelo tato, e que não permanecesse muito tempo com os olhos vendados.

o nome do jogador que apanhou.

Por alturas das festas, muitas outras brincadeiras se faziam nas Casas do Espírito Santo, em que participavam não apenas as crianças mas até os adultos.

 

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SABUGOS ROÍDOS

Quinta-feira, 28.04.16

Os sabugos, na Fajã Grande, antigamente, eram um dos objetos mais procurados pelas crianças para as suas inocentes brincadeiras. Para os rapazes, geralmente aproveitados na sua forma original, serviam de vacas. Para as meninas, depois de revestidos e ornamentados, eram transformados em bonecas. Num caso e noutro, procuravam-se os sabugos maiores, mais vistosos e os que tinham o pelo mais macio e fofo. Mas, no caso dos rapazes, eram os vermelhos, talvez por serem raros, os mais procurados. Conseguir uma vaca vermelha, no meio de tantas brancas era uma importante conquista. Para as bonecas apenas eram utilizados os sabugos brancos.

Mal acabavam as nossas avós, as nossas mães ou quem quer que fosse de debulhar duas ou três maçarocas e logo nos atirávamos na avaliação de cada sabugo, a fim de selecionar e escolher os melhores, os que, na nossa imaginação, mais se assemelhassem e configurassem com uma vaca, uma gueixa, um bezerro ou um boi. Tínhamos de tudo… Depois era colocá-los no palheiro, dar-lhes de comer e de beber, levá-los para as relvas ou encangá-los para puxar o corsão feito de milheiros ou o arado que que adquiríamos transformando um garrancho qualquer. Havia quem lhes espetasse paus ou pregos a fazer de pernas e chifres dos animais mas na maioria dos casos os sabugos eram usados na sua pureza original, como rastejantes.

As pessoas mais velhas, de mãos mais calejadas e muito experientes na debulha das maçarocas de milho, utilizavam uma estratégia interessante para não calejarem mais as mãos. Para friccionar os grãos e despegá-los do sabugo utilizavam um outro sabugo. Colocando-o sobre a maçaroca a debulhar, faziam pressão sobre ele esfregando-o nos grãos que assim se soltavam com maior facilidade. Resultava assim que este sabugo usado na debulha se ia roendo, amolando-se e desgastando-se aos poucos, até ficar muito mais delgado no centro enquanto as pontas mantinham o seu aspeto original, fofo e macio. Eram estes sabugos roídos que nós também procurávamos avidamente. Apanhar um sabugo destes também era uma conquista, pois a maioria dos debulhadores não sabiam utilizar esta estratégia. É que o seu formato fazia-nos lembrar um cavalo. Assim, enquanto os outros sabugos na sua forma original se transformavam em vacas, bois, bezerros ou gueixas, estes eram os nossos cavalos. E que bonitos que eram os cavalos feitos de sabugos roídos.

 

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CANTILENA DAS POMBINHAS

Sábado, 09.04.16

Antigamente, os adultos, geralmente muito atarefados nas suas tarefas diárias e uma vez e nos seus momentos de descanso, quando eram forçados a tomar conta de nós, inocentes criancinhas, ou simplesmente quando estavam connosco por estar, para nos apaziguar de birras e choradeiras, ou simplesmente para nos divertir, lá iam fazendo uma brincadeira, dizendo uma cantilena ou até contando uma pequena estória.

Entre as cantilenas, uma das mais frequentes era a das pombinhas que rezava assim e era invocada, sobretudo, quando nos pátios das nossas pobres e humildes casas ou sobre os telhados das dos vizinhos esvoaçavam pombas:

 

Lá vai uma, lá vão duas,

Três pombinhas a voar.

Uma é minha, outra é tua

Outra é de quem a apanhar.

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QUEM VAI AO AR...

Segunda-feira, 02.02.15

Uma das brincadeiras, embora não muito frequentes, com que as crianças, na Fajã Grande se ocupavam, na década de cinquenta, era a de Quem vai ao ar perde o lugar. O temo era muito e a maneira de o ocupar deveria ser o mais variada possível. Quando não se trabalhava brincava-se.

As crianças que pretendiam participar nesta brincadeira formavam uma roda, mas ficavam viradas para fora, costas para o interior e juntas umas das outras, ombro a ombro. Deviam estar muito atentas pois o jogo exigia rapidez de ação. Uma criança começava a andar ao redor roda. Quando bem entendia batia, de leve, no ombro de um dos que formavam a roda, dizendo:

 - “Quem vai ao ar, perde o lugar”!

Depois de dizer estas palavras iniciava uma corrida rápida, na mesma direção em que estava caminhando. A outra criança que fora tocada começava a correr na direção oposta. Se a criança que, inicialmente, estava fora da roda chegasse primeiro ao lugar daquela que tocou, substituía-a na roda, passando a outra a ficar de fora. Ao contrário, se fosse a outra criança a chegar primeiro ao lugar, permanecia na roda, enquanto a outra continuava a correr, fora da roda e havia de tocar numa outra criança, ou até na mesma, se assim o entendesse, até conseguir ocupar um lugar vago na roda.

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publicado por picodavigia2 às 10:54

MÃO MORTA

Sábado, 08.11.14

“Mão Morta” era uma brincadeira que se fazia com muita frequência às crianças, quando ainda de colo. No entanto, crianças mais crescidas faziam esta brincadeira umas com as outras. A brincadeira consistia em mandar relaxar uma das mãos da criança, para lhe pegar no bracito ara lhe bater com a mão, levemente, na cara dizendo a seguinte aravia: Mão Morta, mão morta. Vai bater à tua porta.

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publicado por picodavigia2 às 21:36

MOINHOS DE TREMOÇO

Segunda-feira, 03.02.14

O tremoço não é propriamente uma planta mas sim a semente de uma planta, designada por tremoceiro, embora, geralmente, se use a palavra tremoço para significar também a planta que o produz. A cultura do tremoceiro era muito frequente na Fajã Grande na década de cinquenta, sendo o tremoço utilizado com duas funções. Por um lado era utilizado como alternativa às forrageiras, servindo, nesse caso, de alimento apenas ao gado alfeiro. Para as vacas leiteiras a planta do tremoço era um fraco e mau alimento, por quanto fortalecia-as pouco e, sobretudo, porque provocava um sabor muito amargo e desagradável no leite. A outra razão porque se apostava, neste caso em larga escala, no cultivo do tremoço, era para utilizá-lo como adubo, em vez do estrume, sobretudo por ser mais prático, pois não era necessário acarretá-lo para as terras, como acontecia com o esterco ou o sargaço, uma vez que adubava a própria terra que o produzia. Cortado aos pedaços ainda em verde, o tremoço era estraçalhado e depois colocado e acalcado no fundo dos regos, ao lado de sementes e plantações. Acreditava-se que, devido ao azoto que possuía, o caule e sobretudo as folhas do tremoceiro tinham a vantagem de purificar os terrenos, enriquecendo-os para as culturas seguintes, nomeadamente da batata branca e da doce. Neste caso o tremoceiro era cultivado, unicamente para sideração e enterrava-se, geralmente, em regos feitos com o arado ou, excepcionalmente e em campos minúsculos, em covas feitas com a enxada, quando as plantas já estavam suficientemente crescidas. O objectivo era adubar e enriquecer o solo com substâncias orgânicas. Apesar de rico em proteínas, o tremoço muito raramente era empregado como forragem, devido ao seu sabor amargo.

O tremoceiro era plantado no Outono e, geralmente, a chuva encarregava-se de regá-lo, pois exige bastante água, sendo necessário recorrer à rega manual quando a planta secasse, embora na Fajã Grande nunca tal fosse necessário, uma vez que entre Outubro e Março, altura em que o tremoço florescia, as chuvas não rareavam. A colheita do tremoço era feita, geralmente, em Março. Costumava dizer-se que “.Cada cavadela, cada tremoço”, o que demonstra a facilidade do cultivo do tremoço e a sua importância em épocas anteriores.

Na Fajã Grande não era costume, como acontece em muitos locais do país, utilizar a semente do tremoceiro como alimento, nem muito menos como “petisco”. Assim, guardava-se, apenas, uma pequena parte do tremoço para amadurecer e dar fruto, sendo este destinado à semente.

Era nesta altura que se faziam os célebres moinhos de tremoço. Para a construção dos moinhos, todo o material era retirado do tremoceiro, excepto um alfinete de cabeça ou uma comprida e fina tacha, de que nos devíamos munir previamente. Depois era apenas construir o moinho. Para tal procurava-se uma das vagens maiores. Encontrada a mais conveniente e adequada, era necessário abri-la com muito cuidado, sobretudo para não a quebrar. Escolhiam-se dois grãos robustos e achatados, os quais eram perfurados ao meio com o alfinete de cabeça ou prego fino. Quem não os tinha pedia um emprestado, furava com ele o seu material e utilizava um pedacinho de madeira, o mais rija possível. Do mesmo modo se furava uma das cascas, mas o furo deveria ser dado rigorosamente no centro da mesma. Procurava-se, de seguida um caule do tremoceiro, do qual se retiravam todas as folhas e vagens, cortando-se-lhe a raiz. Junto à cabeça do alfinete enfiava-se um grão de tremoço, de seguida a folha e depois o outro grão, deixando uma pequena folga entre os grãos e a folha. Por fim, espetava-se o alfinete no caule do tremoço. Estava o moinho pronto, bastando para que girasse, colocá-lo contra ao vento.

Por altura da apanha do tremoço, as paredes e os recantos das terras onde ele se cultivara, se houvesse crianças, estavam crivadas de pequenos moinhos a girar com uma velocidade impressionante. Outras vezes eram as ruas repletas de crianças a correr empunhando os respectivos moinhos.

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publicado por picodavigia2 às 16:32

TERESINHA DE JESUS

Quinta-feira, 16.01.14

Uma dos jogos ou brincadeiras muito frequentemente realizadas pelas meninas, na Fajã Grande, na década de cinquenta, era a “Teresinha de Jesus”. Tratava-se de uma espécie de baile ou dança de roda que as raparigas organizavam, para se divertirem, nos recreios da escola, nas tardes de domingo, nos serões das Alvoradas das Casas do Espírito Santo ou noutros lugares e momentos onde tivessem oportunidade de o fazer. Dando as mãos umas às outras, formavam uma grande roda e iam circulando, embaladas pelo som do canto das suas próprias vozes. Cantavam a música “Terezinha de Jesus”, uma melodia bastante harmoniosa e fácil de decorar. Uma vez que este baile também era realizado pelas raparigas mais crescidas e já namoradeiras, havia quem entendesse esta brincadeira como uma espécie de jogo amoroso ou uma charamba que teria sido trazida para as ilhas pelos primeiros povoadores, uma vez que sabe que remonta aos tempos mais recuados do povoamento das ilhas e que era conhecida noutras paragens, nomeadamente, na Madeira, de onde se cuida que possa ser originária.

Na Fajã Grande era realmente considerada uma espécie de cantiga de amor, em que as meninas, sobretudo as mais crescidas, aproveitavam a oportunidade para manifestarem os seus sentimentos ou fazerem uma espécie de corte ao seu amado, aquele a quem, se não davam a mão, pelo menos dirigiam um olhar carregado de simbolismo, de emoção e, por vezes, até comprometedor.

“Teresinha de Jesus deu uma queda

Foi ao chão

Acudiram três cavalheiros

Todos de chapéu na mão

 

O primeiro foi seu pai

O segundo seu irmão

O terceiro foi aquele

Que a Teresa deu a mão

 

Teresinha levantou-se

Levantou-se lá do chão

E sorrindo disse ao noivo

Eu te dou meu coração

 

Dá laranja quero um gomo

Do limão quero um pedaço

Da morena mais bonita

Quero um beijo e um abraço.”

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publicado por picodavigia2 às 20:18

RODAS

Quarta-feira, 18.12.13

Um dos brinquedos mais utilizados pelas crianças do sexo masculino, na Fajã Grande, na década de cinquenta, eram as famosas “rodas” também conhecidas, simplesmente, por “rodinhas”.

Mesmo antes de se abrir e inaugurar a estrada que actualmente liga os Terreiros à Fajã Grande, quase todas as crianças da freguesia, numa ou outra ida às Lajes ou a Santa Cruz, tinham tido a oportunidade de ver um automóvel, uma moto ou, simplesmente, uma bicicleta e sabiam que os elementos mais importantes desses veículos eram por um lado a roda e, por outro, o guiador ou o volante, o qual permitia que fosse o ser humano a orientar ou a conduzir veiculo. Os que não sabiam, aprendiam-no com os outros. Assim, o sonho de todas as crianças da freguesia, na altura, era conduzirem ou serem os responsáveis pelo destino de qualquer coisa que rolasse.

Muito provavelmente terá sido neste contexto que terão tido origem as célebres “rodas”, muito utilizadas na Fajã Grande e, provavelmente, em muitas outras localidades, pela ganapada. Tratava-se de um brinquedo muito simples e que, anos mais tarde, começou a circular no mercado, mas fabricado de plástico. Na Fajã havia rodas de várias formas, tamanhos e feitios.

Basicamente, este brinquedo consistia numa roda de madeira, com um eixo ao centro que se prendia numa haste bifurcada, na qual o eixo era preso e à volta da qual a roda circulava com um empurrão ou, simplesmente, com uma leve pressão do corpo. Com a extremidade oposta à roda encostada ao ombro, a haste tinha mais ou menos ao meio uma tira de madeira, uma espécie de guiador, que permitia à criança, com as suas próprias mãos, decidir e orientar o percurso a percorrer pelo rolar da roda. As rodas, geralmente, eram de madeira e fabricadas por carpinteiros ou pelos próprios, se mais habilidosos. Havia-as de tamanhos muito diferentes e muitas delas eram protegidas no bordo exterior, por uma borracha, a fim de se conservarem por mais tempo. A haste, porém, nem sempre era de madeira, uma vez que esta era mais difícil de conseguir-se, por isso, regra geral recorria-se a uma cana do Outeiro, que por lá havia muitas, escolhendo-se as mais grossas e robustas. Depois era só fazer-lhe o encaixe, prender-lhe a roda e amarrar-lhe ao meio, com um simples fio de espadana, o guiador. Havia rodas que mesmo encostadas ao ombro não tinham guiador enquanto outras, mais simples e de menor raio, tinham a haste tão pequena que eram empurradas apenas pela mão e, muitas dessas, também tinham na extremidade da haste um guiador, que era conduzido com ambas as mãos. Muitas vezes adaptavam-se rodas velhas, já sem uso, de ferro, de latão ou de outra coisa qualquer e encontradas aqui ou além. Outras vezes adaptava-se a roda tudo e qualquer coisa que fosse redondo, como tampas velhas, rolhas grandes ou fundos de latas. Toda a velharia que já não tivesse uso e rolasse, servia, perfeitamente, para construir este interessante e muito apreciado brinquedo.

Com excepção da roda de madeira que deveria ser feita por um carpinteiro, tudo o resto, que constituía quer o essencial quer o acessório deste brinquedo, era construído pelo próprio utente, a não ser no caso dos mais pequeninos que geralmente tinham a ajuda do pai ou de outro familiar adulto.

Depois… Bem, depois era um regalo ver as ruas, apesar do seu piso sinuoso, apinhadas de miudagem a circular para cima e para baixo, a provocar autênticos engarrafamentos, conduzindo as “rodas” como se fossem autênticos e verdadeiros automóveis. E não é que a ganapada, de tão entusiasmada e convicta, até com as suas vozes imitava e fazia ouvir o frenético roncar dos motores e a singularidade específica das apitadelas!? “Brroomm, brroomm!” e logo a seguir “Pi, pi! Pó, pó”, em catadupa! Era o nunca mais acabar de barulho de motores, alternado com buzinadelas

Mas a vontade de conduzir um veículo, mesmo em pensamento, era tanto e tão grande, que muitas crianças, mesmo não possuindo a “roda”, punham-se a correr, para baixo e para cima, junto com os outros ou sozinhos, simulando com as mãos o acto de conduzir e imitando com os ruídos da voz o roncar dos motores e das apitadelas.

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publicado por picodavigia2 às 10:31

VELHAS ÀS ESCONDIDAS

Sábado, 14.12.13

Depois do pião e da caça à baleia, o “Velhas às Escondidas” era um dos jogos de diversão mais praticados pela ganapada da Fajã Grande, na década de cinquenta. Tratava-se de um jogo extremamente simples e a sua realização não exigia nenhum tipo de material que, eventualmente, tivesse que ser adquirido ou construído antecipadamente. Para jogar ao “Velhas às Escondidas” não era rigorosamente necessário nada, a não ser um bom local para esconderijo, por isso mesmo, este jogo ou brincadeira era praticada quase diariamente.

Juntas as crianças interessadas em participar no jogo, formavam-se dois grupos, cuja constituição era normalmente feita pela escolha dos dois líderes, geralmente dois rapazes mais velhos, mais valentes, com maior capacidade de se impor e que chamavam a si esse estatuto. Tiradas as sortes, através de um pauzinho escondido numa mão bem fechadinha, o líder que acertasse na escolha do pau era o primeiro a escolher a sua equipa, continuando a fazê-lo alternadamente com o outro líder, até todos os interessados se integrarem num dos grupos, que deviam ter número igual de participantes. No entanto esse número era variável e dependia da quantidade de interessados que inicialmente se apresentassem para participar no jogo. Excepcionalmente aceitava-se que um dos grupos pudesse ter mais um participante do que o outro.

Formados os grupos, procedia-se a novo sorteio, para se decidir qual seria o primeiro grupo a esconder-se. O grupo favorecido pelo sorteio partia, então, na demanda de um bom esconderijo, fazendo-o de maneira que o outro grupo do mesmo não se apercebesse. Uma vez bem escondidos todos os elementos do grupo, o líder gritava o mais alto que podia: “Agoooooooooooooora”. Logo o outro grupo se punham em acção, procurando desalmadamente, uns por aqui, outros por ali, todos os possíveis esconderijos ao redor, até descobrir onde se encontrava o grupo, operação que às vezes demorava bastante tempo. Uma vez encontrado o grupo escondido, terminava a primeira parte do jogo, iniciando-se a segunda, com o outro grupo agora a esconder-se, a fim de ser procurado pelo primeiro. No “Velhas às Escondidas”, sobretudo porque se tratava mais duma brincadeira do que de um jogo, nunca havia propriamente um grupo vencedor, dado que o objectivo do jogo era precisamente o de ocupar o tempo com alegria, boa disposição e com o divertimento que a tarefa de descobrir os escondidos causava.

Resta acrescentar que este jogo, por vezes, provocava incómodos, sobretudo aos donos dos palheiros e casas velhas situadas nos arredores onde o jogo se realizava, por serem os locais mais procurados e usados para esconderijos. Na ânsia de arranjar local seguro a ganapada não tinha escrúpulos em entrar pelos palheiros dentro, forçar e arrombar portas, saltar por janelas semiabertas e esconder-se entre o gado, sobre as traves, entre os fetos e a rama seca ou até dentro das manjedouras das vacas, atitudes que pouco agradavam aos proprietários.

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publicado por picodavigia2 às 17:26

MESES E OSSOS

Sexta-feira, 13.12.13

Na escola primária, nos antigos e limitadíssimos tempos dos anos cinquenta, éramos obrigados a fazer o exame da quarta classe, o qual já exigia muito de nós. Mas a verdade é que, nessa altura, não dispúnhamos de computadores, nem de consolas, nem de iphones, nem sequer de uma simples enciclopédia juvenil que apoiasse os nossos estudos, nos ajudasse nas aprendizagens e, assim, superássemos as dificuldades. Mas o exame da quarta classe, naquela altura, era muito exigente e, para além de ler e escrever correctamente, tínhamos que saber tudo de cor, as preposições, os nomes dos reis, dos rios e das serras, os nomes dos ossos de cada um dos dedos das nossas mãos e até distinguir os meses do ano que tinham trinta dias dos que tinham trinta e um. Para conseguirmos memorizar toda esta panóplia de conhecimentos, tendo em conta o que tínhamos aprendido durante o ano, havia que recorrer de facto à nossa memória. Mas esta falhava, vezes sem conta, por isso havia que arranjar artifícios, construir subterfúgios, criar cábulas que nos pudessem ajudar, nos momentos de aflição e de angústia que eram os exames, quando éramos obrigados a deitar cá para fora tudo o que, supostamente, deveríamos ter aprendido.

Era o que acontecia com os meses do ano, que nos pareciam todos iguais. Era difícil a nós, criancinhas inexperientes, distinguir os meses que tinham trinta dias dos que tinham trinta e um. Para decifrar este enigma recorria-se ao metacarpo de uma das nossas mãos que contém, quando fechada em forma de soco, cinco ossos salientes separados por quatro espaços mais baixos, formando uma espécie de quatro vales intercalados com cinco montes. Estes correspondiam aos meses de trinta e um dias e os vales aos de trinta. Começávamos então a contar os meses do ano, assinalando um mês com um osso e o seguinte com um vale. Era certo e sabido... O primeiro era Janeiro com trinta e um e por aí adiante. Quando chegava ao quinto osso estávamos em Julho com trinta e um dias e, voltando ao início da mão, encontrávamos Agosto também com os seus trinta e um dias. A partir daí era só continuar até chegar a Dezembro que terminava num monte e tinha trinta e um dias.

Outro recurso que adoptávamos, neste caso ao contrário, isto é, nós servíamo-nos de algo para recordar nomes de ossos. Era o que acontecia quando, para trazermos à memória a difícil nomenclatura dos ossos dos dedos da mão, recorríamos aos nomes de três freguesias da costa oeste da ilha das Flores: Fajã, Fajãzinha e Lajedo. Assim, devido à semelhança fonética, recordávamos, facilmente, os nomes dos ossos: falange, falanginha e falangeta. Claro que ficava o Mosteiro de fora, mas… como era a freguesia mais pequena das Flores, talvez, por isso mesmo, era castigada.

Acresce dizer-se que, no caso dos dias dos meses, os nossos avoengos haviam-nos ensinado uma quadra com a qual também se distinguiam, facilmente, os meses com mais um dia e que rezava assim:

            «Trinta dias tem Novembro,

            Abril, Junho e Setembro.

            Só vinte e oito terá um,

            Os outros mais trinta e um.»

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publicado por picodavigia2 às 09:45

MÚSICA DE CANA

Segunda-feira, 02.12.13

A criação de uma Filarmónica na Fajã Grande, no início da década de cinquenta, a chegada à freguesia dos instrumentos, vindos de Lisboa, a Bordo do Carvalho, as lições de solfejo, os ensaios quase diários, na Casa do Espírito Santo de Cima e, sobretudo, a primeira actuação da Senhora da Saúde, no dia sete de Setembro de 1951, a abrilhantar a festa em honra da sua homónima, foram acontecimentos ainda hoje presentes na memória de muitos e que marcaram, significativamente, não só a vida mas também os costumes de uma boa parte da população da Fajã, muito especialmente dos homens e rapazes, nomeadamente dos que constituíam o seu elenco. Mas as próprias crianças da freguesia também se imiscuíram e emaranharam de tal forma com a chegada da Filarmónica Senhora da Saúde, designada, simplesmente, por “a Música”, que até alteraram as suas tradicionais e quotidianas brincadeiras.

Na realidade não havia ensaio, nem muito menos cortejo em que Filarmónica participasse, nem se verificava uma actuação em público que a Música realizasse, sem que toda a ganapada da freguesia não estivesse presente, quer ouvindo os diferentes sons que iam saindo de todos e de cada um dos instrumentos, quer, no caso dos cortejos, correndo em procissão atrás dos músicos e das suas atraentes fardas azuis e brancas. E mesmo quando a Senhora da Saúde era convidada e ia actuar à Ponta ou à Fajãzinha, lá ia a miudagem toda atrás. Um enlevo! Mas um enlevo que cedo se alastrou de forma contagiante e galopante, passando a dominar tudo e todos, a sobrepor-se e até a fazer esquecer muitos outros folguedos, divertimentos e brincadeiras.

O sonho da criançada era ter também uma Música, em ponto pequeno, claro, mas que tocasse, que desfilasse e que percorresse as ruas da freguesia a fim de que todos ouvissem os seus belos acordes e se deleitassem com as suas suaves melodias. Sonhavam os fedelhos imitar os adultos. Se bem o sonharam melhor o fizeram e, cedo se generalizou a ideia de que seriam as canas, tão abundantes na Ladeira e no Outeiro, que devidamente cortadas e trabalhadas, haviam de transformar-se em pequenos instrumentos musicais, nos de sopro, claro, porque bombo, pratos e tarola arranjar-se-iam doutra forma. O bombo era o mais difícil de conseguir. Talvez alguém tivesse um tambor de tocar pelos Reis e Ano-Novo que os havia numa ou noutra casa, mas servia muito bem uma simples peneira das grandes, estragada e abandonada, forrada de papelão que alguém surripiasse lá em casa. A tarola até podia ser a simples tampa de um barril de cal que os comerciantes deitavam fora e os pratos duas tapas de caldeirões ou tachos de alumínio que se haviam de procurar na lixeira das Furnas. Os restantes instrumentos, esses sim, haviam de ser feitos de canas, com muita mestria, arte e engenho.

Canas, havia-as, em grande quantidade, ali perto, na Ladeira, no Outeiro e até no Pico. Mas era preciso saber escolher as melhores. Nem muito secas, nem muito verdes e umas mais grossas outras mais delgadas. Era preciso, também, junto a um dos nós, descobrir a película, isto é, ir cortando a cana, muito suavemente, com uma navalha, até ficar a descoberto a película interior, tarefa ingrata e difícil, pois vezes sem conta, com a cana já cortada ou com o instrumento já construído, esta película rompia-se. Era a película que produzia o som, quando se soprava na outra extremidade do canudo, som que se diferenciava consoante a maneira de soprar, a espessura e o tamanho da cana e ainda com a área maior ou menor de película descoberta. A restante parte de cada instrumento era feita também com canas, com vimes e com espadanas que se iam juntando e amarrando ao tubo inicial e que continha a película já descoberta. A requinta e os clarinetes eram fáceis de elaborar. Bastava, apenas, que a seguir o tubo com a película se deixassem mais dois ou três nós da própria cana, nos quais se abriam buraquinhos, destinados apenas a simular os buracos e as chaves que continham os clarinetes a sério. Depois os trombones que também eram de fácil execução, exigindo, no entanto três canas. Uma semelhante à dos clarinetes, mas mais curta, uma segunda pouco maior do que esta e uma terceira bastante comprida. Para a execução de um trombone eram também preciso um vime ou outra vara maleável e fios de espadana. Os vimes, devidamente cortados, ligavam as pontas das três canas: a da película que se estendia à frente do rosto ligava-se à cana grande, sendo amarradas com a espadana, na posição horizontal. Depois unia-se a parte de trás da cana grande, com outro vime, à outra cana mais pequena, mas na posição vertical, e amarrava-se também com espadana, de maneira a que, esta terceira cana se projectasse, enquanto se soprava a primeira cana, atrás da orelha esquerda. Estava o trombone feito. Com técnicas semelhantes faziam-se os cornetins, as trompetes e até os saxofones, mas estes com as canas dobradas e amarradas em forma de z. Mais difíceis de fazer eram os Contrabaixos, os Bombardinos e as Trompas e, por isso mesmo, raramente, constituíam o conjunto dos instrumentos musicais.

E estava a Música pronta. Escolhia-se o maestro com a sua batuta, enfileiravam-se os tocadores, de dois a dois ou três a três e desfilava-se pela Assomada e pela Rua Direita que era um primor. Nem a Senhora da Saúde a sério! Só que de vez em quando uma ou outra película rompia-se, depois mais uma e outra, três, quatro e, por vezes, até a banda toda. Mas verdade é que mesmo sem película todos tocavam os seus instrumentos, parecendo tudo aquilo, em tais situações, uma perfeita e verdadeira “Cana Rachada”.

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publicado por picodavigia2 às 17:43

SERRA COMPADRE

Sábado, 30.11.13

Uma das mais habituais e simbólicas brincadeiras com que os adultos, muitas vezes e nos seus momentos de descanso, nos brindavam quando eram forçados a tomar conta de nós, inocentes criancinhas, ou simplesmente quando estavam connosco por estar, para nos apaziguar de birras e choradeiras, ou simplesmente para nos divertir, era o “Serra Compadre”. Tratava-se de uma divertimento muito simples e ingénuo mas ternurento e carinhoso e que consistia apenas no seguinte: o adulto sentado numa cadeira ou deitado de costas, sentava a criancinha no seu colo, pegava-lhe nos bracitos ou dava-lhe as mãos e balanceando o seu corpo em movimentos sincrónicos com a criança, declamava:

 

“Serra compadre, serra comadre,

Eu com uma serra e tu com uma agulha

Ganhamos dinheiro como uma faúlha.”

 

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publicado por picodavigia2 às 18:22

PAI VELHO

Sexta-feira, 01.11.13

A criançada da Fajã Grande, na década de cinquenta, não era muita, mas era danada para jogos, brincadeiras e partidas recíprocas. Nas quatro classes da escola, onde eu me incluía, andariam cerca de trinta e cinco a quarenta crianças, sendo, mais ou menos metade rapazes outra metade raparigas. Depois havia ainda os mais velhos, saídos da escola há um, dois ou três mas que também se juntavam aos mais pequenos, formando um grupo bem razoável de garotos, ágeis, atrevidotes, irrequietos e brincalhões. Um número mais do que suficiente para saltar, jogar, nadar, gritar, pregar partidas, fazer trinta por uma linha, numa palavra, para virar a freguesia de baixo para cima, praticando jogos audaciosos e diversos e brincadeiras divertidas e variadas. Nas tardes de domingos, sábados e feriados, nos dias de semana depois da escola lá nos juntávamos em grande, com falta de comparência de um ou outro, à Praça, em frente à Casa de Baixo, no pátio da Casa de Cima, no adro, junto ao Chafariz da rua Direita, na Canada do Pico, no Outeiro e em tantos outros enigmáticos lugares, para a folia, para as brincadeiras, para os jogos, para a conversa, para as partidas e, às vezes, até para brigas e para a pancadaria. Mas no fim tudo resultava em grande amizade e camaradagem.

Quando éramos muitos, isto é, quando o número do aglomerado era superior a dez ou doze, entre outros jogos, dedicávamo-nos muito frequentemente a uma interessante e caricata brincadeira, chamada de “Pai Velho”. Consistia aquela espécie de jogo, no seguinte: uma vez todos reunidos, geralmente na Canada do Pico, ali mesmo a seguir à casa do Catrina, por ser lugar recôndito e de pouco acesso por parte dos transeuntes, um dos mais velhos assumia o papel de pai, mas um pai já muito velho e alquebrado por trabalhos e canseiras e viúvo, que passava os seus dias sentado em casa e não conseguia por cobro às asneiras que diziam e aos disparates que faziam os seus numerosos filhos. Estes eram todos os restantes participantes na brincadeira e como não tinham mãe, nem irmãs, aquilo era um reboliço dos diabos lá em casa. Andava tudo desarrumado, ninguém se entendia, cada qual fazia o que lhe dava na real gana e, por vezes, até se maltratavam e agrediam uns aos outros. O pai bem os aconselhava e mandava para as terras a fim de trabalharem e cultivarem os produtos necessários ao seu sustento. Eles, porém, faziam ouvidos de mercador e não davam atenção nenhuma aos conselhos e pedidos do progenitor, não obedeciam às suas ordens, nem cumpriam os seus mandatos. Pelo contrário, fugiam de casa, sem o pai se aperceber, e passavam o dia a namorar, pois cada um tinha a sua namorada virtual, uma pequenita da freguesia pela idade deles, com quem sonhavam casar. Se se soubesse que dois namoravam a mesma era pancadaria pela certa. Estes namoros potenciais eram realizados ao longo do caminho, encostados às paredes, imaginando que a menina amada ou a namorada estava ali, ao lado de cada um e, com quem era possível estabelecer, em pensamento, uma longa, acesa e interessante conversa. Quando viam estes enlevos, os irmãos mais novos ou outros que não tinham namorada, por zanga ou por inveja, vinham fazer queixinhas ao velho pai das atitudes e comportamentos dos irmãos, geralmente, acompanhadas com mentiras exageradas e gravosas. Assim os filhos namoradeiros, ao regressar a casa, levavam uma boa sova do seu velho progenitor, que se opunha, não apenas à preguiça dos filhos mas também à maneira como namoravam e, por vezes, com quem o faziam. Então a barafunda lá em casa atingia, na perfeição e em pleno, o rubro.

Este jogo ou brincadeira muito simples e, aparentemente, bastante ingénuo, baseando-se na vida real dos adultos, talvez reflectisse os anseios, os sonhos e as aspirações daqueles jovens e crianças, já detentores de uma gigantesca vontade de se emancipar, de ser grande, de actuar e ser adulto, conjecturando, no entanto, dissabores provocados por exageradas e inaceitáveis oposições aos seus projectos de vida.

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publicado por picodavigia2 às 11:36

MÁQUINAS DE BATATA BRANCA

Domingo, 27.10.13

A produção de leite e a sua venda era a principal actividade económica da Fajã Grande e dela dependia a sobrevivência da maioria das famílias. Havia produtos necessários ao quotidiano de toda e qualquer família que apenas se podiam adquirir comprando-os nas lojas. Para tal era absolutamente necessário dinheiro e a única forma de o obter era vender algum leite, ou ao Martins e Rebelo ou à Cooperativa. Ora isto significava uma relação muito íntima com os dois postos de desnatação, então existentes na Fajã: a máquina de baixo e a máquina de cima. Todos os dias, de manhã e à tardinha alguém teria que ir levar o leite a uma ou outra das máquinas, trazendo-o de regresso, mas já desnatado, para consumo de porcos e bezerros. Esta azáfama quotidiana dos adultos reflectia-se, e de que maneira, nas brincadeiras das crianças que necessariamente construíam as suas máquinas para desnatar o seu leite.

Para a construção de uma máquina de desnatar o leite bastavam apenas três tubos de cana e duas batatas brancas. Um dos tubos de cana tinha que ser grosso e alto. Os outros dois deveriam ser pequeninos e muito delgadinhos, sendo um deles necessariamente mais delgado do que o outro. Uma das batatas era cortada a meio e na metade seleccionada que fazia de base da máquina era espetado o tubo de cana. À outra batata que devia ser muito redondinha era lhe retirada a parte superior e o conteúdo interior de modo a que se transformasse numa espécie de tigela. Esta seria o caldeirão da máquina, o qual seria encravado na parte do tubo oposta à base já construída. No fundo do caldeirão espetavam-se os dois tubinhos de cana, de modo que a extremidade de cada um entrasse na parte côncava da batata: o mais grosso, mais alto, para o leite desnatado e o mais delgadinho, logo a baixo para o fiozinho da nata. Depois era só deitar o leite no caldeirão e vê-lo sair pelos dois tubinhos. E o leite? Como o conseguíamos? Assim como Jesus, nas bodas de Caná, transformou a água em vinho, nós, com a nossa imaginação e poder criativo, também transformávamos a água em leite. Então era um regalo ficar ali a ver o caldeirão da máquina cheinho de leite a sair já desnatado por um dos tubos e a nata pelo outro.

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publicado por picodavigia2 às 12:12

AS LINGUAGENS DO “PÊ” E DO “Ó”

Quinta-feira, 10.10.13

Muito longe iam a nossa imaginação e a nossa criatividade, quando éramos crianças. Não havia computadores, consolas, playstations, iPhais, iPhones e afins, nem sequer automóveis de latão, cornetas de plástico ou bolas de couro, é verdade, mas inventávamos tudo o que pretendíamos, criávamos tudo o que desejávamos e construíamos tudo aquilo com que sonhávamos. Assim era com brinquedos, com jogos, com cantorias, com passa tempos e até, porque não, com a linguagem.

Quem não se lembra duma linguagem utilizada nos nossos tempos de escola e que usávamos depois de já ter “empinado” os nomes dos rios, dos reis, das linhas-férreas, das províncias de Portugal e até das próprias capitais europeias. Era a linguagem do «pê” que tinha como objectivo baralhar, sob o ponto de vista linguístico e de compreensão, os nossos interlocutores e que consistia no uso e emprego do som “pe” depois de cada uma das sílabas de toda e qualquer palavra, acrescentando-lhe o som vocálico da mesma. Assim, por exemplo, a frase “Eu vou jogar ao pião” pronunciava-se da seguinte maneira: “Eupeu voupou jopogarpar aopo pipiãopão.”  O interessante e curioso era que falávamos esta linguagem com uma competência, uma destreza e um à vontade notáveis. Como tempo não nos faltava, treinava-se muito.

Mas não ficava por aqui a nossa criatividade em termos linguísticos. Assim criámos também, com objectivo semelhante, uma outra linguagem, a do «ó», que consistia em colocar o som «ó» pelo meio de cada palavra que se pronunciava, geralmente junto à sílaba tónica, tentando assim dificultar a sua compreensão por parte do nosso interlocutor, servindo, neste caso para lhe dizer, de forma não comprometedora, uma ou outra palavra mais grosseira ou até um insulto ou um palavrão.

Assim este texto poderia muito bem ser “agraciado” por qualquer utilizador da linguagem do «ô», com o objectivo de ocultar subtilmente um possível ultraje a quem o escreveu com uma frase como a seguinte: “Merôda friôta paraô quemô fôez estaô escriôta.

 

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publicado por picodavigia2 às 20:36

BRINCANDO À “CAÇA À BALEIA”

Quinta-feira, 29.08.13

Uma das mais interessantes brincadeiras dos meus tempos de criança era a “Caça à Baleia”.

Nas tardes quentes e tórridas de Verão, juntava-se à Praça toda ou quase toda a pequenada da freguesia, desde a Assomada até à Via d’Água (quantos mais melhor) e iniciava-se uma brincadeira tão original e criativa quanto o que víamos quotidianamente praticado pelos adultos, Verão após Verão e que tanto nos fascinava e deslumbrava: a caça ou “pesca” à baleia.

Seleccionados os interessados, a brincadeira iniciava-se com a construção dos botes e da lancha, tudo semelhante aos dos adultos, mas feito de cana. Estas eram apanhadas no Outeiro, junto à Cruz, ali bem perto ou na ladeira do Fernando. Num ápice a frota estava pronta. Duas canas amarradas em ambas as extremidades com fios de espadana, três ou quatro canas mais pequenas mas com tamanhos diferentes e cortadas em bico nas extremidades eram encaixadas nas duas canas iniciais, a maior ao centro e as outras a decrescerem para a ponta e para a ré, dando-lhes forma de um bote. Seleccionada a companha, o mestre aplicava na ré uma cana a fazer de esparrel enquanto o trancador desfiava uma espadana e, amarrando os fios uns nos outros, fazia um cordão ao qual amarrava o arpão, ou seja, uma outra cana de ponta bem afiada e presa, na parte posterior, à proa do bote. Os restantes encadeavam canas de um e outro lado do bote a simular os remos. A lancha, a que era dado o nome de “Leta” ou “Maria Palmira” ou “Santa Teresinha” era em tudo semelhante aos botes mas sem esparrel. Tinha uma lança em vez do arpão e era quadrada à ré, tendo como tripulação, se a miudagem fosse pouca, apenas um tripulante que fazia simultaneamente de mestre maquinista e proeiro. Os que não tinham lugar nas embarcações, geralmente os mais pequenos ou os menos creditados na arte, estavam condenados a fazer de baleias. Destes havia um que no início desempenhava o papel de vigia. Como ficava sem fazer nada, logo após o atirar do foguete transformava-seem baleia. Omar era a Rua Direita, junto ao chafariz de duas bicas, e o porto, onde a frota estava parada e donde partia logo que o foguete rebentasse, era o pátio da Casa de Espírito Santo de Cima.

As baleias percorriam a rua de cócoras, depois de encherem a boca com água nas bicas do chafariz. Logo que a primeira baleia se pusesse em pé, isto é, viesse à tona de água e bufasse o jacto de água, o vigia encavalitado em cima do chafariz atirava o foguete, lançando para o ar uma pequena cana ou uma vara ou, por vezes, até um jacinto arrancado num quintal qualquer ali perto, acompanhado de um enorme e estrondoso “fsset pum, prá, prá, prá”. De imediato toda a companha corria para os seus botes a gritar “Baleia à vista! Baleia à vista!”. Entravam nos botes, ocupavam os seus postes e lá seguiam atrelados à lancha ou a remar sozinhos para o alto mar, ou seja. Para o sítio onde estavam as baleias. Estas andando de cócoras, a simbolizar que estavam debaixo de água, com a boca cheia de água lá se iam levantando e bufando de vez em quando mas deviam fazê-lo com tal agilidade, rapidez e performance que dificultasse ao máximo a acção do trancador, evitando que este lhes acertasse. É que o trancador só podia atirar o arpão às baleias que estivessem em pé e a bufar. As regras no entanto exigiam que estas o fizessem frequentemente e corressem para o chafariz, voltando a encher a boca de água, logo que a esvaziassem.

Quando o trancador acertava numa baleia em pé ela era morta e ficava a aguardar o reboque da lancha. O jogo terminava quando todas as baleias eram mortas o que muito raramente acontecia.

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publicado por picodavigia2 às 19:08

VACAS DE FAVA E PORQUINHOS DE BATATA DOCE

Domingo, 14.07.13

Não será prolixo, nem muito menos cansativo repetir-se que na longínqua década de cinquenta, ali na Fajã Grande, ora protegidos pela alta Rocha dos ventos e dos temporais, ora a levar com as tempestades e maresias trazidas pelos ventos do Norte e do Oeste, num e noutro caso, consequentemente, impedidos de trabalhar e com tempo para a brincadeira, éramos nós próprios que, geralmente, construíamos os nossos brinquedos, aproveitando tudo o que tínhamos à mão e que para tal fosse adequado. E verdade é que geralmente o fazíamos, com muita imaginação, perícia e performance. Além disso, idealizava-se a construção dos nossos brinquedos no que fazia parte do nosso quotidiano e no dos nossos progenitores.

Ora as vacas e os porcos eram animais que, para além de presentes no nosso dia-a-dia, constituíam uma espécie de epicentro de toda a actividade laboral, diária, da maioria dos habitantes da Fajã Grande. Por isso e naturalmente era relacionada com essa actividade que arquitectávamos grande parte das nossas brincadeiras e era também ela que delineava os limites da nossa imaginação, configurava a nossa criatividade e como que se personificava na maioria dos nossos brinquedos. Entre estes tinham lugar de destaque as vacas feitas com as vagens das favas e os porquinhos feitos com batatas-doces.

As vacas de fava eram construídas geralmente no tempo em que o gado andava no “oitono”, ou seja, durante os meses da Primavera. À tardinha, enquanto os nossos progenitores e os outros homens, agrupados em função das proximidades das terras onde tinham o gado amarrado à estaca, aguardavam, em amena cavaqueira, a hora da ordenha e enquanto os animais ruminavam a última “cordada”, ou porque as houvesse ali por perto ou porque as fôssemos procurar mais além, apanhávamos algumas vagens de fava, escolhendo as mais compridas e grossas e as que julgávamos de maior beleza estética. Depois arranjávamos quatro “fochos”, cortávamo-los todos do mesmo tamanho e “falquejávamo-los” numa das extremidades. Eram essas extremidades que depois espetávamos no bordo mais côncavo da fava ou seja do lado em que o pé da mesma se curvava, de maneira a simular o focinho do animal, enquanto os pauzinhos espetados representavam as mãos e os pés. Depois descascávamos uma outra fava, escolhíamos um grão que prendíamos entre as pernas da vaca recém-criada, a fazer de “mojo”, e cujo tamanho variava consoante queríamos uma vaca acabadinha de parir ou uma gueixa alfeira. Aos bois era-lhes espetado um pequeno “focho” na barriga a imitar o falo. Finalmente dois “fochos” no lado da fava que representava a cabeça e estava um animal perfeito, com o qual brincávamos durante alguns dias apenas, pois as favas tinham um prazo de validade bastante limitado.

Por sua vez os porcos com que também gostávamos de brincar, eram feitos de batata-doce, a qual, na altura, abundava na Fajã. Da mesma forma escolhíamos criteriosamente a bata mais redondinha, rechonchuda e que considerávamos mais parecida com o corpo de um suíno. Quatro “fochos”, desta feita mais pequenos e mais grossos do que os das vacas de fava, transformavam-se nos pés e nas mãos do suíno enquanto outros dois mais pequeninos, espetados do lado contrário simulavam-lhe as orelhas. E aí estava um porco perfeito. Depois era criá-lo, matá-lo e até, por vezes comê-lo, porque na realidade muitas vezes, naqueles tempos, até comíamos batata-doce crua.

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publicado por picodavigia2 às 08:19

CORSÕES DE MILHEIROS E BOIS DE SABUGO

Domingo, 30.06.13

Na Fajã, no início dos anos cinquenta, não se compravam brinquedos, por duas razões muito simples: primeiro porque não havia dinheiro e, em segundo lugar, nem sequer havia brinquedos para comprar.

Assim, exceptuando um ou outro automóvel de baquelite ou alguma boneca de loiça que vinham da América, muito bem embrulhados nas roupas que traziam as encomendas, éramos nós próprios, crianças de então, que construíamos, por vezes de maneira tosca e rudimentar, todos, mas mesmo todos, os nosso brinquedos, a maioria dos quais se baseava ou imitava objectos e utensílios utilizados pelos adultos na sua principal faina quotidiana – a agricultura.

Ora um dos objectos mais imitado na elaboração dos nossos brinquedos era o corsão com que brincávamos em cada dia, em cada hora e em cada minuto. Fazíamos corções minúsculos com uma rapidez, uma competência e uma agilidade fantástica. Por vezes fazíamo-los de madeira mas, como esta era rara e mais difícil de trabalhar, utilizávamos habitualmente e como alternativa, as canas do milho. Pegávamos num milheiro ou em dois e cortávamo-los em dois pedacinhos do mesmo tamanho. Depois aguçávamos em forma de proa de navio uma das extremidades de cada um dos pequenos e delgados troncos do milho e arranjávamos cinco ou seis “fochos” a fazer de travessas que cravejávamos nos milheiros, formando assim um verdadeiro corsãoem miniatura. Faltavam apenas os fueiros, tarefa também muito fácil de concretizar pois bastava apenas fixar mais uns pauzinhos na parte de cima dos milheiros e lá estava o corsão completo. Depois era só carregá-lo com lenha, incensos, ervas, casca de milho, produtos que eram sempre bem presos e amarrados com cabos de espadana e apertados com arrochos, como se de um corção de verdade se tratasse.

E o cabeçalho? Bem o cabeçalho era feito com um fio de espadana bem grosso que se prendia a uma canga, também de espadana com duas laças nas pontas onde se enfiavam dois sabugos a fazer de bois que assim ficavam verdadeiramente “encangados”. E então se conseguíssemos um sabugo vermelho!...

E assim nos entretínhamos horas e horas a brincar, tão felizes e alegres, com estes brinquedos tão simples, apesar da pouca durabilidade de que eram dotados, pois o corção desfazia por completo assim que os milheiros secavam.

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publicado por picodavigia2 às 14:54

ARMAS DE SABUGUEIRO E CADEIRINHAS DE JUNCO

Sexta-feira, 07.06.13

Talvez porque ainda pairasse sobre nós o espectro da segunda Guerra Mundial, talvez porque ouvíamos muitas estórias e relatos sobre piratas que antigamente atacavam a ilha, não apenas a população mas também muitos navios que por ali passavam, carregados de mercadorias que, vindos das Américas e demandavam as Flores na procura de rumo que os guindasse nas sendas das rotas europeias e norte-africanas, talvez por se encafuar, no nosso subconsciente, que a história da humanidade era um relato permanente de batalhas e guerras, talvez por isto e por aquilo e talvez por coisa nenhuma, mas simplesmente porque havíamos de construir os nossos próprios brinquedos com o material de que dispúnhamos, uma das brincadeiras muito frequentes das crianças, nos anos 50, na ilha das Flores, era a da construção de armas de sabugueiro, com balas de raiz de cana roca, de bagas de sanguinho e de zimbro, com as quais nos entretínhamo-nos a dar tiros contra tudo e contra coisa nenhuma e, sobretudo, a ouvir o estrepitante estalido das ditas cujas, quando disparavam.

Fazer uma arma de sabugueiro era fácil. Bastava possuir uma boa navalha para cortar um tronco não muito grosso de uma árvore de sabugueiro. O pedaço de tronco a cortar deveria ser rectilíneo e com um tamanho aproximado de dois palmos de criança. Depois de cortado e devidamente alisado nas pontas, com uma verga ou com um vime empurrava-se o miolo do respectivo pedaço de tronco de sabugueiro, de modo a que este saísse totalmente e o sabugueiro ficasse furado duma ponta a outra, como se fosse um túnel, formando uma espécie de tubo. De seguida cortava-se um garrancho de incenso, de preferência com uma das metades mais grossa do que a outra. Uma parte do incenso, um pouco mais pequena do que o sabugueiro, deveria ser cortada, “falquejada” e raspada com um pedaço de vidro, de maneira a formar um cilindro que penetrando no tubo do sabugueiro se ajustasse ao mesmo sem grandes folgas, de tal modo que a parte mais grossa empeçasse e não entrasse no tubo, formando uma espécie de êmbolo. Com a navalha, cortavam-se dúzias e dúzias de pedaços de raízes de cana roca, à semelhança de pequenas rolhas ou juntavam-se as bagas de zimbro ou sanguinho, destinadas a tapar ambas as extremidades do tubo de sabugueiro. Uma vez bem metidas no mesmo deveriam ser bem apertadas, aparando-se toda a parte da rolha que não entrasse, de modo a ficar rasa nas extremidades do tubo. De seguida com o pau de incenso ia-se empurrando uma das rolhas que, aos poucos, ia entrando no tubo, comprimindo o ar, até empurrar a rolha da outra extremidade, atirando-a para bem longe e provocando um enorme estalido. A rolha empurrada ficava a ocupar a da parte da frente que havia sido atirada e colocava-se nova rolha na parte traseira, repetindo-se a operação cada vez que se pretendesse dar um novo tiro.

Uma arma de sabugueiro, quando bem-feita, atirava a bala para uma distância bastante considerável, provocava um ruidoso estalido e, se acertasse na corpo de alguém, doía a valer. Ai se doía!

As meninas, por sua vez, porque pouco afeitas a estas actividades bélicas, entretinham-se a fazer as cadeirinhas de junco. O junco era uma planta herbácea que crescia abundantemente, nas Flores, quer nos terrenos alagadiços, vulgarmente designados por lagoas quer nas margens das ribeiras e com mais abundância ainda nas zonas mais altas e rochosas da ilha, sobretudo nos matos, onde inclusivamente havia um lugar que fazia jus a este nome – o Rochão do Junco.

De tão abundante que era o junco, nem era aproveitado na totalidade, sobretudo porque o seu uso se destinava exclusivamente para secar os currais dos porcos, substituindo a cana roca e os milheiros ou para cama do gado nos palheiros substituindo os fetos e o restolho do trevo e da erva da casta. Por isso mesmo, o junco crescia e multiplicava-se de forma extraordinária, acabando por apodrecer no mesmo sítio onde nascia e crescia, para voltar a nascer e crescer de novo. Estava pois sempre à mão, o junco. Além disso o seu caule cilíndrico possuía uma mobilidade e uma flexibilidade que convidavam à criatividade. As meninas, nas suas brincadeiras, corriam a apanhar os caules do junco, verdinhos, aveludados e maleáveis e a fazer com ele as interessantíssimas “cadeirinhas de junco”, para brincar, por vezes, colocando-as nas casitas de papelão das bonecas de trapos com cabeça de loiça ou de casca de milho que elas próprias ou as mães construíam. Escolhiam os caules melhores e os mais rechonchudos e seleccionavam o maior, com o qual se armava as costas da cadeira, colocando-o em semicírculo sobre os dedos indicador e anelar, do lado das costas da mão, dando-lhe, de seguida, alguma folga. Depois e do lado interior da mão colocavam, horizontalmente, um outro caule, dobrando-se sobre este as duas pontas do primeiro que ficavam presas entre os dedos. De seguida colocavam um outro caule, também horizontalmente e paralelo ao anterior, dobrando, da mesma forma, as suas extremidades e procediam assim até obter seis ou mais caules horizontais sucessivamente dobrados nas pontas e que formavam o assento da cadeira. Retirada toda esta estrutura da mão, prendiam e amarravam em quatro as extremidades dobradas dos caules, que depois de cortadas do mesmo tamanho formavam os quatro pés da cadeira. Obtinham assim um produto final de belo efeito, ou seja, um brinquedo de rara singularidade, de notável beleza e de considerável fascínio

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publicado por picodavigia2 às 15:06





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