PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A MULHER COMILONA
Na Fajã Grande, na década de cinquenta ainda se contavam muitas “estórias” de feiticeiras. Esta era uma das que, quando criança ouvia contar.
Antigamente, lá para os lados da Via d’Água, perto do mar, havia uma mulher que era casada com um pescador. Como o homem passava muito tempo no mar, a mulher ficava em casa, sozinha, à espera dele mas, como sentia muita fome.
Certo dia em que sentiu muita fome e o homem não aparecesse com peixe para a saciar, começou a cozinhar uns bons petiscos, que tinha guardados lá em casa. Como o homem demorasse cada vez mais, ela, cheia de fome, não esperou pelo marido, comendo tudo antes dele chegar a casa. De tal maneira se habitou que começou a proceder assim todos os dias, mesmo quando o homem pouco demorava. Assim , todos os dias, quando o marido regressava do mar, como já tinha comido tudo sozinha, dava-lhe pão sem nada.
Como isto acontecesse todos os dias, o pobre pescador começou a desconfiar da mulher, pensando que ela comia tudo entes dele chegar, deixando-lhe apenas umas côdeas de pão.
Certo dia, em que não pode ir para o mar devido ao mau tempo, sentou-se, em cima de um penedo a lamentar a sua triste sorte. Aproximou-se dele uma velhinha que lhe disse:
-Não te apoquentes, bom homem. Amanhã, quando regressares do mar, tu já vais comer melhor.
O pescador ficou muito admirado por a velha saber a sua vida sem jamais lha ter contado. Então a velha dando-lhe um guarda-chuva preto disse-lhe:
- Amanhã quando saíres de casa para o mar, não arreies o teu barco. Volta para casa e esconde-te bem escondido, atrás deste guarda-chuva. Ela não te verá e, por isso começará a comer, cuidando que está sozinha. Quando ela começar a comer diz em voz muito alta, mas disfarçando a voz, para que ela não te reconheça: Aquela mulher vai comer tudo sem o marido estar em casa? É uma grande comilona que não espera pelo marido!
O homem assim fez e, quando a mulher, depois de cozinhar um belo petisco se sentou à mesa para o comer, gritou com voz rouca:
- Aquela mulher vai comer sem o marido estar em casa? É uma grande comilona que não espera pelo marido!
A mulher, assustada, olhou para todos os cantos mas não viu ninguém. Mais sobressaltada ficou, quando, ao recomeçar a comer, ouviu, outra vez, as mesmas palavras.
Então cheia de medo saiu porta fora. Demorou-se lá por fora algum tempo, mas quando sentiu fome, voltou para casa. Ia mais uma vez tentar comer, logo ouviu a mesma voz. Assustada e cheia de medo, resolveu então esperar pelo marido para comerem juntos. O pescador saiu do esconderijo sem ela ver e simulou regressar a casa, vindo do mar. Ao chegar a casa, ficou admirado com a mudança da mulher, mas não disse nada.
No dia seguinte, antes de sair para o mar, disse-lhe a mulher:
- Olha, vem cedo que eu tenho cá um bom jantarinho, para comermos juntos.
E assim foi. A partir daquele dia, nunca mais ela comeu sem o marido.
Algum tempo depois foi o pescador à procura da velhinha, mas nunca a encontrou por que ela era uma feiticeira e as feiticeiras quando fazem uma boa acção, não gostam que as vejam ou lhe agradeçam.
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O PORCO ROUBADO
Há muitos, muitos anos, moravam, perto um do outro, dois compadres. Um era pobre e o outro rico, mas muito avarento, sem querer dar nada a ninguém. Era costume que todas as pessoas, quando matassem o porco, dessem um pedaço do lombo ao senhor padre. O compadre rico e avarento, que queria matar porco sem dar o lombo ao padre, chegou junto do compadre pobre e começou a dizer mal daquele costume e que não concordava com aquele hábito, pois nem por nada queria repartir um naco do lombo do seu porco, que tanto trabalho e despesa lhe dera a criar. Então o compadre pobre aconselhou-o a que quando matasse o seu porco, o dependurasse no quintal para que toda a gente o visse. Durante a noite, às escondidas guardava-o em casa, para depois, na manhã seguinte dizer que lho tinham roubado. Assim livrava-se de dar um pedaço de lombo ao padre.
O compadre rico ficou muito contente com aquela ideia e seguiu à risca o que o compadre pobre lhe tinha dito. Depois de pendurar o porco no quintal, deitou-se com a intenção de ir, de madrugada, ao quintal, buscá-lo. Mas o compadre pobre, que era espertalhote, foi de noite, ao quintal onde estava o porco e, antes do compadre rico se levantar, roubou-lhe o porco. No dia seguinte, quando o rico deu pela falta do porco, correu a casa do compadre pobre e, muito aflito, contou-lhe o acontecido. Este, fazendo-se desentendido, dizia-lhe:
- Boa, compadre! Bravo! Muito bem, muito bem! Assim é que o compadre há-de contar ao senhor padre e safar-se-á de lhe dar um pedaço de lombo!
Mas o compadre rico cada vez teimava mais que lhe tinham roubado o porco mesmo a sério, enquanto o outro cada vez o apoiava e incentivava para que contasse assim, tudo muito bem contadinho, ao senhor padre. Tor fim o compadre rico foi-se embora desesperado e o pobre ficou com o porco para si, sem que o compadre rico desconfiasse.
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O SAPATEIRO BANDARRA
Quando eu era miúdo, em casa da minha avó havia apenas um livro e dois textos manuscritos. O livro era a “Histórias da Bíblia Resumida” e os manuscritos consistiam em dois conjuntos de folhas soltas, ambos em verso. Um narrava, em quadras, a morte de El-Rei Dom Carlos e outro, também em quadras, apresentava as profecias do Sapateiro Bandarra, ou seja o anúncio profético de um conjunto de fenómenos, quase todos desgraças, que haviam de acontecer sobre o orbe terrestre. Eu deliciava-me com as maravilhosas histórias da Bíblia, como a de José do Egipto, sentia pesar ao ler a forma como um rei e um príncipe haviam sido barbaramente assassinados e assustava-me de sobremaneira com os horrores previstos pelo sapateiro Bandarra.
Pouco se sabia deste suposto adivinho. Apenas que se chamava Gonçalo Eanes Bandarra e era natural de Trancoso, terra que eu desconhecia por completo.
Passaram-se muitos anos e concretizei o meu sonho de ir a Trancoso, conhecer a pátria de tão ilustre sapateiro. Trancoso é uma pequena cidade do interior, pertencente ao Distrito da Guarda, com cerca de 10.000 habitantes e sede de um concelho com 29 freguesias. Trata-se duma bela cidade, com uma história riquíssima e com um notável património arquitectónico, encontrando-se rodeada de muralhas, da época dionisiana, com um belo castelo, também medieval, a coroar um majestoso conjunto fortificado. Os seus vários monumentos arquitectónicos constituem um dos mais expressivos e belos centros históricos do país, destacando-se, as igrejas de Santa Maria, da Misericórdia e de São Pedro, a Casa dos Arcos e o Pelourinho, bela peça do mais puro estilo manuelino. Reza a história que aqui se travaram importantes batalhas, entre as quais a de Trancoso, em 1385, num planalto a poucos quilómetros do centro histórico, que impôs pesada derrota às tropas invasoras.
Foi nesta maravilhosa cidade beirã que nasceu e viveu Gonçalo Eanes de Bandarra sapateiro de profissão que se dedicou à escrita em verso de profecias de cariz messiânico. Os seus escritos revelam um bom conhecimento das Escrituras do Antigo Testamento, do qual fazia as suas próprias interpretações, tendo composto uma série de "Trovas" sobre a vinda do “Encoberto” e o futuro de Portugal, como reino. Bandarra foi acusado pela Inquisição de Judaísmo e as suas trovas foram incluídas, posteriormente, no catálogo de livros proibidos, já que suscitaram interesse sobretudo entre cristãos-novos. Foi inquirido perante este tribunal e foi obrigado a participar numa procissão do auto-de-fé, sendo-lhe ainda imposta a obrigação de nunca mais interpretar a Bíblia ou escrever sobre temas da Teologia. Após o julgamento voltou para Trancoso, onde viria a morrer, em 1556. A sua cidade natal prestou-lhe homenagem, construindo numa das suas praças uma estátua, perpetuando assim a sua memória.
No entanto e apesar de julgado e condenado e da interdição do Santo Ofício, as suas trovas circularam por todo o país em diversas cópias manuscritas. Chegaram também à freguesia mais ocidental da Europa, à Fajã Grande.
As Trovas de Bandarra foram interpretadas como uma profecia ao regresso do Rei D. Sebastião após o seu desaparecimento na Batalha de Alcácer-Quibir em Agosto de 1578.
Mesmo com todas as censuras e proibições, as Trovas continuaram circulando tendo sido impressas várias edições. Segundo alguns críticos, as Trovas do Bandarra terão influenciado o pensamento sebastianista e messiânico de D. João de Castro, do Padre António Vieira e de Fernando Pessoa.
Alguns exemplos das “Trovas” do Sapateiro Bandarra
“Eu componho, mas não ponho
as letrinhas no papel,
que o devoto Gabriel
vai riscando quanto eu sonho.
Com o troquês puxo o coiro,
com a cera encero a linha.
Gasta-se todo o tisouro
para abrir novo caminho.
Mas, ai! que já vejo vir
o Presbítero Maior
a riscar todo o primor,
que outra vez há-de surgir.
Este sonho que sonhei
é verdade muito certa,
que lá da Ilha Encoberta
vos há-de chegar um Rei.
Põe um A pernas acima,
tira-lhe a risca do meio,
e por detrás lha arrima!
Saberás quem te nomeio.”
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AS BANANAS
Todos os anos, nos fins de Outubro, a garotada da escola era recrutada para acarretar e arrumar a lenha, que, durante o ano, arderia no lar de padre Mateus.
Depois de carreada por carros de bois, a lenha era serrada, cortada e rachada com serras e machados, manejados por valentes braços, que não se poupavam a esforços, nos domingos à tarde, pois todos acreditavam que, sendo destinada ao pároco, não era pecado trabalhar ao domingo.
Finalmente o arrumo na velha e esconsa loja, por baixo da residência paroquial, era tarefa da garotada, que assim se unia aos adultos, dando cumprimento ao estabelecido no quinto mandamento da Santa Madre Igreja – “Contribuir para as despesas do culto e sustentação do clero, segundo os legítimos usos e costumes e as determinações da Igreja. “
Apesar do esforço que a sua consecução exigia, a tarefa era ardentemente desejada pela maioria das crianças, porquanto, por um lado, correspondia a um feriado e, por outro, terminava sempre com um cálice de licor caseiro e uma biscoito ou um figo passado a cada um.
Por isso, quando a Dona Perpétua, anunciou que os rapazes, no dia seguinte, não deviam trazer a sacola, porque iriam arrumar a lenha do senhor abade, apenas o Antunes, o Gameiro e o Tonico se assumiram como objectores de consciência à sacrossanta tarefa.
- O padre que a arrume! – Sentenciou o Antunes.
- Ou que pague a quem lha arrume, porque isto de trabalhar para aquecer não é comigo – acrescentou o Tonico.
- A mim é que não me apanha lá! – Decretou, muito senhor de si, o Gameiro.
D. Perpétua apercebendo-se de tais impropérios, que, em sua beatífica opinião, quase rondavam a heresia e o ateísmo, impôs de forma categórica:
- Se não forem acarretar e arrumar a lenha do Senhor Prior ficam a fazer cópias, ditados e contas de dividir todo o dia. É certinho!... Ai se é!...
Perante tão dramática e indesejada alternativa, a bravata oposição dos três garotos ruiu. E optaram por colaborar, embora contrafeitos, no arrumo da lenha.
O trabalho era supervisionado pelo sacristão, por isso qualquer tentativa de fuga, esquivança, ou menor empenhamento na tarefa era, no mesmo dia, comunicado a D. Perpétua. E esta não perdoava – nunca menos de vinte palmadas com a férula.
Daí que os três presumíveis objectores de consciência desistissem dos seus intentos de sabotagem da tarefa e se empenhassem, da melhor forma, embora contrariados, em arrumar a lenha do reverendo.
Ao cair da noite, quando toda a lenha estava empilhada, a Genoveva, como de costume, apareceu com dois cálices, uma garrafa de licor de ananás, menos de meia e um pratinho de biscoitos, declarando antecipadamente:
- É só um biscoito a cada um! E licor, só meio cálice que é para não fazer mal aos meninos!
O Antunes, o Gameiro e o Tonico, entendendo que aquele pagamento era injusto porque inadequado ao trabalho prestado, sobretudo pelo facto da entidade patronal ser um eclesiástico, resolveram entrar em reivindicações.
“Biscoitos, pelo menos, podiam ser dois, que não fazem mal!”
Os seus protestos, no entanto, de nada serviram e esbarraram com a persistência da Genoveva, que permanecia na sua:
- É só um biscoito a cada um! E nada mais!...
Os três garotos retiraram-se revoltados, jurando que aquilo não podia ficar assim e haviam de vingar-se.
Ora o padre Mateus tinha junto de casa um pequeno quintal, onde a Genoveva plantava couves, alfaces e outros legumes. Num dos cantos, junto à parede que dava para o caminho, havia uma pequena plantação de bananeiras, das quais pingavam três enormes cachos de bananas, que, dia após dia, iam amadurecendo.
O Gameiro, o mais forte em Matemática, fez as contas:
- Vinte escudos, corresponde a um alqueire de milho e é quanto se paga por um dia de trabalho. É o que deve custar cada cacho. Ora, quantos somos nós?
- Três! - Respondeu o Tonico, de imediato.
- E os cachos? Quantos são?
- Se bem os contei – acrescentou o Tonico – também são três.
- Então, está certíssimo! – Concluiu o Gameiro. – Um para mim, outro para ti e outro para o Antunes. Não podia calhar melhor!...
O Antunes e o Tonico ainda ripostaram:
- E se alguém nos vê?!
- E onde os vamos esconder? É que não comemos as bananas todas num dia!...
- Está tudo programado cá por mim! Esta cabecinha pensa em tudo! – Acrescentou o Gameiro. - A mim ninguém me vê!... A ti só te vêem se quiseres!...
- Mas... o sítio... o sitio para guardar os cachos sem que ninguém os veja? Não comemos as bananas todas num dia!
- Deixem isso comigo! – Respondeu o Gameiro.
O desaparecimento das bananas do quintal de padre Mateus causou grande consternação na freguesia e foi alvo de grandes comentários e de inúmeras suspeitas.
Mas descobrir o ladrão foi, de todo, impossível.
Todos os dias, enquanto as bananas duraram, o Antunes, o Gameiro e o Tonico dirigiam-se para as Aguadas, Rua Nova e depois seguiam para as Furnas Pequenas.
A Maria Bengala, espreitando pela janela, bem se admirava:
- Para onde irão estes três todos os dias? Coisa boa, não andam a urdir!
A festa de Cristo-Rei aproximava-se. Dias antes, D. Perpétua impôs autoritariamente:
- De tarde, venham limpinhos e tragam roupinha melhor. Às três horas todos se vão confessar, para comungarem na festa de Cristo-Rei.
O Antunes, o Gameiro e o Tonico entraram em pânico. Olharam-se e embranqueceram. Como é que iam confessar ao padre Mateus, se tinham sido eles os autores do roubo das bananas, sendo elas do próprio abade?
Na hora do intervalo, depois do almoço, ultimaram-se estratégias:
- Cá por mim digo que pequei por desobediência – propôs o Tonico e, perante o espanto do Gameiro, concluiu – Então não há um mandamento da Lei de Deus que manda obedecer a pai, mãe e outros legítimos superiores. Ora minha mãe e a D. Perpétua já me deram ordens para não roubar. Desobedeci-lhes! Foi um pecado! É o que vou confessar...
- Boa! Que rica teoria! Han! – Acrescentou o Gameiro. E virando-se para o Antunes – E tu, também não gamaste nada, pois não?!
- Eu também não! – Concluiu, prontamente, o Gameiro. – O meu pecado foi de gula! Comi bananas a mais... É o que eu vou dizer...
- Ai sim! Sendo assim também não fica o roubo para mim – acrescentou o Antunes.
- Então o que vais dizer? – Interrogaram os outros dois.
- Eu vou dizer que pequei por omissão! Vou dizer que vos vi, aos dois, a roubarem as bananas ao padre e não lhe disse nada.
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A CHORA-SOPAS
- Muda, ó muda, vai à porta ver quem está a bater.
A Muda, lenta e vagarosamente, arrastando os velhos chinelos no chão, dirige-se para a porta e abre-a. Voltando-se para dentro faz sinais de chorar e comer.
- Quem é, mulher? – Pergunta Dona Josefa. - Gente a chorar! Ai credo! Querem ver que morreu alguém!
A Muda abana a cabeça em sinal negativo, mas continua a fazer sinais de chorar e comer.
- Então? Será alguém que está a chorar porque levou uma sova?
A Muda, porém, continua a fazer sinais negativos. Depois, com maior insistência tenta imitar alguém que está a chorar.
- Ai mulher, credo! Nunca te explicas com jeito! É ou não é alguém que está a chorar? Já sei! É a Chora-Sopas. Deve andar a pedir pelas portas!
Perante os sinais afirmativos da Muda, comenta D. Josefa:
- Ora essa! Era só o que me faltava agora! É todos os dias isto… E às vezes mais do que uma vez por dia, aparece gente, à porta a pedir. Manda-a embora que não há nada.
O marido, intervém de imediato
– Josefa! Isso é que caridade!? Isso é agir de acordo com a religião que tu praticas? Muda, diz-lhe para entrar que se lhe há-de dar uma côdea de pão e um pedaço de queijo. Não entendo a tua religião, mulher… É uma caridade, dar-lhe alguma coisa! Ela é uma desgraçada. Não tem nada nem ninguém e corre a ilha toda a pedir.
A Chora-Sopas a ultrapassar a porta de entrada, muito contente, lá ia gritando
– Poxo entá? Poxo entá? Xô Anxoninho, ua exoxuxinha pux xeux… Ui voxês nom xom da Faxã? Tanban andom a pedi. Xouxade xexa Deux. Uma exoxuxinha pux xeus. Uma exoxuxinha pu alma dox xeus.
- Muda, traz-lhe uma boa fatia de pão com doce e um pedaço de queijo. Queres um tijela de leite, Chora-Sopas?
- Xó xe fô café. Café. Nom góxo leixe, brr, brr. Leixe nom pexa.
- Olha a finória! Não gosta de leite! Anda a pedir e ainda há-de ser o que ela quer e pão com doce! Havia ser massa sovada… Muda leva-a para a cozinha… E ela que saia pela porta da cozinha. Sim senhor, ainda vem bater à porta da sala, como se fosse uma visita importante. É uma desavergonhada é o que ela é! E sabem onde fica de noite, quando vem para Ponta Delgada? Sabem? É em casa do Cacho Maduro e dizem que pelos vistos fica na mesma cama com ele e a mulher. Isto é o fim do mundo! – Benzendo-se. - Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Para sempre seja louvado.
- Josefa! Tem tento na língua, olha o que dizes…
- Eu cá não minto, nem ponho aleives a ninguém. Só digo o que ouço. Lá isso digo porque não sou baú de ninguém! Era o que me faltava… Não poder dizer o que toda a gente diz pela freguesia…
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QUEIXA SEM REPRIMENDA
Eu não ainda não tinha chegado a casa. Fora, como habitualmente, levar as vacas ao Outeiro Grande e, no regresso, desci pela canada que dava para Cabaceira, escapulindo pelo Delgado. Abdicava do habitual e já fastidioso trajecto do Covão e ia saciar-me nas maças da horta da minha avó, mesmo ali, a seguir ao largo de Santo António, com portão de entrada, precisamente no enfiamento daquela canada.
A Rosa Maiata, ou porque não contivesse as suas emoções por mais tempo ou porque adivinhasse a minha ausência, não esteve com meias medidas e toca a batucar à porta da cozinha da minha casa, com meu pai e meus irmãos já abancados à mesa.
Meu pai, que se sentava à mesa da cozinha sempre de costas para a porta da frente, voltou-se e dando de caras com a estranha e indesejável intrusa que de tão excitada que estava quase nem o ouviu, exclamou:
- Ah! És tu, Rosa! Entra, entra.
Como a Rosa permanecesse queda e muda, o meu progenitor repetiu:
- Entra, mulher. Já te disse que entres.
- Nem é preciso entrar que não tenho tempo. – Exclamou a Maiata e, voltando-se para minha irmã que se levantara para lhe abrir a porta, segurando-a, semiaberta, acrescentou: - Não me vou demorar. É só uma palavrinha com teu pai.
Que me queres, Rosa? - Perguntou o meu progenitor e repetiu – O que me queres?
Continuando estancada à porta, como se tivesse algum receio de entrar, a Rosa Maiata, numa espécie de aflição exagerada, tentava explicar: – Antonho, passaste há pouco tempo na minha do Pico? Junto à ramada das Faias do Norte tinha um eito com uma grandeza de morangos. Não sei se chegaste a vê-los? Era uma lindeza! Sabes o que aconteceu?
Meu pai retorquiu:
- Não sei, Rosa, não sei. Nem percebo o que tenho a ver com isso.
De repente, sem que ninguém contasse com isso, a Rosa explodiu, numa exaltada indignação:
- Ai não tens, não! Vamos ver, vamos ver! Pois olha, foi a Maria Fangueiro que me veio contar tim-tim-por-tim, que o teu Álvaro fez. Aquele “malcriadão” vinha com a ovelha do Canto do Areal. A maldita fugiu-lhe, foi para cima dos morangos e deu-me cabo deles todos. E agora? Quem mos paga? E tu dizes que não tens nada a ver com isto!
Minha irmã tentando por água na fervura e alhear à contestação, lá ia interpondo.
- Mas a senhora Rosa sabe bem como é a Maria Fangueiro… Uma grande mexeriqueira e, além disso, inventa muitas coisas…
Meu pai, mantendo a calma inicial, perguntava:
- Rosa. Viste alguma coisa? Viste lá, alguém meu? Não viste, pois não? – E perante o silêncio comprometedor da queixosa concluía: - Então não podes acreditar no que se diz. Diz-se tanta mentira nesta freguesia…
- Ah! É assim. É isso que pensas? Pois vou fazer queixa ao regedor.- E saiu porta fora como se um rastilho lhe pegasse, proferindo imprecações, enquanto meu pai levantando-se e vindo fechar a porta, lhe atirava sem que ela já o ouvisse: - Vai-te queixar ao diabo-que-te-carregue.
Quando cheguei a casa e entrei na cozinha, ainda todos estavam sentados à mesa, envolvidos numa acesa discussão. Minha irmã queixando-se da “mingueza” de leite que ficava em casa, que nem chegava para fazer um queijo, meu pai a consumir-se com a Cooperativa que há três meses não pagava e meu irmão Justino a propor que, por isso mesmo, o melhor era deixarmos a Cooperativa e mudarmo-nos para a Máquina de Cima. E concluía:
- O Martins e Rebelo paga todos os meses e paga mais cinco centavos por litro do que a Máquina de Baixo. Muitos já se passaram para a de Cima
Meu pai decidido retorquia;
- Isso é que nunca!... Sempre estive na Cooperativa e dela nunca hei-de sair. O Martins e Rebelo o que quer, é destruir a Cooperativa. Paga mais agora e depois quando a Cooperativa for abaixo, vai pagar o leite ao preço que quiser. Os que mudam estão a vender-se, estão a destruir a Cooperativa por cinco ou dez centavos. E o trabalho e sacrifício que foi para criá-la!... Eu fui um dos fundadores e de lá nunca hei-de sair. Para esse ladrão do Martins & Rebelo é que nunca vou. Prefiro fazer queijos em casa ou dar o leite inteiro aos bezerros e ao porco.
E foi esta bendita, acesa e emotiva discussão sobre as debilidades, fraquezas e vicissitudes dos lacticínios na ilha das Flores que, fazendo meu pai esquecer a queixa da Rosa Maiato, me livrou duma boa reprimenda.
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O LAVRADOR DA ARADA
Numa das últimas aulas de um dos meus primeiros anos, como aluno, no Seminário de Angra, o Dr Edmundo de Oliveira, professor de Música, com o objectivo de sensibilizar os alunos para a pesquisa e defesa do património cultural açoriano, no que à música dizia respeito, encomendou à turma um pequenino trabalho para férias – cada um de nós devia procurar uma música popular na sua freguesia ou na sua ilha, registar a letra e a música e aprendê-la. Havia de cantá-la nas primeiras aulas, no início do ano lectivo seguinte.
Arrepiei-me. Na realidade a Música não era o meu forte. Mas lá fui para férias sensibilizado para executar a tarefa.
Ora, na Fajã Grande, os foliões do Senhor Espírito Santo, cantavam, entre outras, “O Lavrador da Arada”, uma música cuja letra era muito conhecida e apreciada. Ouvira-a, muitas vezes. Como meu pai, em tempos fora folião do Senhor Espírito Santo, cantava-a muitas vezes. Eu, habitado a ouvi-la já conseguia traulitá-la. O pior era arranjar a música. Tanto procurei, tanto labutei e tanto coscuvilhei que fui dar com ela num livro antigo que havia nos arrumos da igreja paroquial. Todo contente por ver que havia de sair airosamente daquele imbróglio e fazer um figurão na aula do Dr Edmundo, arranjei uma folha de papel com pautas e zás! Numa tarde passei a música e a letra para a pauta com a clave de sol, muito bem desenhada. Regressei ao Seminário e lá me encaminhei para a aula de música, todo contente, cuidando que, pela primeira vez, havia de fazer boa figura e ter um êxito musical de se lhe tirar o chapéu. Chegou a minha vez de apresentar o trabalho, entreguei a partitura ao mestre e comecei, com a outra cópia, a cantar, cuidando eu, de acordo com as notas que ali estavam escritas: “O la-vra-do-or d’a-a-a-ra-da, aien-com-trou-ou um-um po-o-bre-zin-in-nho eo po-bre-zin-in-nho lhe di-i-sse, ó, le-va-me no-o teu-eu car-rin-in-nho…”
Olhei para o Dr Edmundo de soslaio. Ele ria perdidamente. Quando terminei, com um suave e doce sorriso, disse-me:
- Até cantaste muito bem, sim senhor! Mas a música que cantaste não é a que está aqui!
Foi a risota geral, um gozo acentuado e eu, cheio de vergonha e vermelho que nem um pero!
O Dr Edmundo, vendo a minha atrapalhação e o meu desalento elogiou mais uma vez o meu desempenho musical, explicando que nos Açores, algumas canções, embora tendo a mesma letra, nalgumas ilhas, eram cantadas com música diferente nas outras.
Mas durante muito tempo, pelos corredores e recreios do Seminário, não se cantava outra coisa que não fosse “O Lavrador da Arada.”, à moda das Flores.
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A ROMEIRA
No Seminário Menor de Ponta Delgada, onde estudei durante dois anos, o traje obrigatório para os alunos, quando em passeio, era fato preto e gravata da mesma cor com camisa branca. No de Angra, onde estudavam os alunos entre o terceiro e o décimo segundo ano, era obrigatório o uso da batina. Assim, durante as minhas férias do segundo para o terceiro ano, uma das tarefas com que me havia de preocupar, durante as mesmas, passadas habitualmente na Fajã Grande, foi a de mandar fazer uma batina e a respectiva romeira, que, juntamente com o chapéu, devia acompanhar a sotaina durante os passeios, pela cidade de Angra e arredores.
Ora em toda a ilha das Flores só havia um alfaiate que sabia fazer batinas. Morava em Santa Cruz, tinha a alfaiataria ali mesmo em cima do cais de embarque mas não era muito hábil na confecção de batinas, revelando pouca experiência e limitada competência. Os sacerdotes na ilha não eram muitos e, como viviam ali totalmente isolados dos poderes diocesanos e das fiscalizações da cúria, a maioria trajava aquela veste talar apenas nas cerimónias e celebrações litúrgicas, poupando-as muito, pelo que, o alfaiate, poucos proventos conseguia e ainda menos se exercitava na sua confecção. Mas como não podia apresentar-me no Seminário sem batina, lá fui encomendá-la, juntamente com a romeira. Estranhamente o homem nunca fizera uma romeira, nem sabia do que se tratava.
Bem lhe expliquei o que era e a função que tinha, mas o homem continuava sem perceber patavina. Disse-lhe, então, que era uma espécie de gola grande de um casaco, mas solta e separada da batina, por cima da qual se colocava, prendendo-a à frente com um colchete. Que sim senhor! Que estivesse descansado que me havia de fazer uma romeira às direitas.
Tiradas as medidas e acertado o preço, combinou-se a data para fazer a prova da batina que a romeira disso não precisava.
No dia de vapor, antes de embarcar, passei por lá, paguei, recebi o embrulho com ambas as peças e meti-o na mala sem o abrir.
Cheguei ao Seminário, ansioso pelo primeiro dia de passeio, para estrear a minha nova indumentária clerical. Finalmente, esse dia chegou. Vesti a batina que me assentava a matar e, todo vaidoso, coloquei a romeira por cima e ao redor do pescoço, como mandavam as normas. Como dentro de casa era um pouco escuro, ninguém se apercebeu de nada, mas quando chegamos à rua, foi o bom e o bonito. Logo ao assomar à porta de saída alguém se deu conta do seu formato inédito, estranho e ridículo. Um gozo tremendo e uma risada total! Um coro de zombaria durante todo o passeio. É que a romeira que eu com tanto esmero havia colocado sobre os ombros, não era nada mais nem nada menos do que uma gola de casaco de senhora, cujo modelo, o alfaiate havia retirado de um catálogo da especialidade. Que vergonha eu passei e de que gozo fui alvo! E para mágoa minha tive que andar com ela até que uma costureira da cidade, apesar de cheia de serviço no início do ano, lá teve tempo e disponibilidade para me fazer uma romeira de verdade.
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DIÁLOGO DOS MEDOS
Filho: - Pai, a noite está tão escura, não vejo nada! Não devíamos continuar, devíamos voltar para trás.
Pai: - E teus irmãos em casa sozinhos, sem saber de nós, preocupados, pensando que nos perdemos…
Filho; - Ó pai, mas está tão escuro!... Não vejo nada!... Vamos voltar para trás!
Pai: - Verás que daqui a pouco os teus olhos se vão habituar à escuridão. E a Lua não tardará a aparecer. Isto é luar de Agosto!
Filho: - Ó pai!... Mas eu tenho medo, muito medo.
Filho: - Medo de quê?
Filho: - Das almas do outro mundo.
Pi- Qual almas do outro mundo, qual carapuça. As almas do outro mundo não fazem mal a ninguém. Os que morrem nunca mais voltam! As almas que ainda andam neste mundo, essas sim, é que, muitas vezes, fazem mal umas às outras.
Filho:- Mas dizem que no mato, de noite, aparecem muitas coisas.
Pai: - Aparecem tantas coisas de noite como de dia, isto é, não aparece nada. A noite é igual ao dia, só com uma pequena diferença: é que é escura, não se vê, a não ser que haja Lua, mas, mesmo assim, nunca é tão clara como o dia. E é por isso que as pessoas têm medo.
Filho:- Ó pai, mas dizem que nos Terreiros, de noite, aparece um padre e um cão com uma cesta na boca e dentro da cesta leva a chave do sacrário.
Pai: - Minhocas, minhocas na cabeça, é o que as pessoas têm.
Filho: - E no largo da Cancelinha? Dizem que aparece lá uma mesa posta, com comida em cima…
Pai: - Também essa mesa nunca eu a vi, e com muita pena minha, porque às vezes passo lá com fome e aproveitava para comer.
Filho: - Não brinque, pai. Por que é tão anamudo, pai? Porque é que não tem medo de nada?
Pai: - Vou contar-te uma estória, mas uma estória verdadeira. Uma vez, quando eu era rapaz, ia para o Areal, já era de noite. Ao passar na Furna das Mexideiras, ouvi uma barulheira enorme. Fiquei assustadíssimo, tive muito medo e voltei para casa a correr cheio de medo. Meu pai perguntou-me o que tinha. Contei-lhe o que se tinha passado e ele disse-me que eu tinha que lá ir ver o que era, se não nunca mais lá passava, com medo. Como eu não queria ir sozinho, obrigou-me a ir com ele lá, para ver o que era. Dizia ele que se havia barulho, alguém o fazia.
Filho: - E foste, pai?
Pai: - Fui, claro, juntamente com ele.
Filho: - E viram alguma coisa?
Pai: - Vimos muitos cães. Tinham matado um carneiro, nesse dia, e atirado a cabeça para o baldio. Os cães apanharam-na, levaram-na para dentro da furna e, como todos a queriam comer, ladravam muito, faziam uma grande algazarra. Era esse barulho que fazia eco na furna. Era assustador! Mas era uma coisa deste mundo, tão natural. Foi assim que eu perdi o medo. Nunca mais acreditei em nada dessas tolices que contam por aí. Se não tivesse lá ido, nunca mais lá passava com medo… Ainda hoje havia de ter medo. E contava o que ouvira a toda a gente e todos haviam de ficar com medo… Tu também não deves acreditar nessas tolices.
Filho: - Mas há quem conte tantas coisas. Há pessoas que ouvem barulhos estranhos. Pai, não está a ouvir agora? Tenho tanto medo, pai. Parece que está alguém a gemer, ali.
Pai: - É um boi que está a berrar. Estás a ver aquela mancha escura. É um boi. Viu-nos passar e, como é de noite, julga que é o dono e começou a berrar. Como vês, é tudo natural, é tudo deste mundo. Não tens que ter medo de nada nem de coisa nenhuma do outro mundo. O outro mundo não existe, o nosso medo é que o inventa. É preciso é ter cuidado com algumas pessoas e coisas deste mundo… Essas, às vezes, é que nos fazem muito mal…
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BALEIA VIRTUAL
Tarde sombria de Agosto. Homens nas lides dos campos a lavrar, a sachar, a ceifar que a tarde não era de grandes calmarias. Mulheres atafulhadas nas tarefas caseiras, a lavar, a limpar, a amassar e a cozer o pão que era sexta-feira. A rua Direita quase deserta. Quatro crianças preparam uma das suas brincadeiras favoritas – a pesca à baleia, - decalcando nos seus folguedos inócuos e fantasistas, as aventuras, as fadigas e os trabalhos estampados no quotidiano dos adultos. Antes haviam-se deslocado ao Outeiro, na mira de cortar algumas canas, com que construiriam um bote. Primeiro, com fios de espadana, amarraram as duas maiores, uma à outra, em ambas as extremidades. De seguida, cortando as restantes em tiras com tamanhos diferentes mas decrescentemente equiparados em pares, com excepção da maior que era única, e com as extremidades escanadas em bicos côncavos, de forma a encaixarem nas duas primeiras, alargando-as, e dando-lhes uma forma elíptica, a simular a superfície superior do tampo de um bote de baleia. Tudo preparado! Três miúdos ocupam o barco: o mestre à ré, um marinheiro a meio e o trancador à proa. O quarto elemento, o Rodrigues, subindo e encavalitando-se no cimo do chafariz, ali à entrada da Casa de Espírito Santo de Cima, com as mãos fechadas e colocadas nos olhos, a deixar no meio um pequeno orifício, finge segurar uns binóculos, com os quais vigia toda a rua, na mira de descortinar baleia. De repente, avista uma e, simulando com as mãos segurar uma bomba, atira para os ares um jacinto que viera do Outeiro, junto com as canas:
- Fexxt! Puum!
O Câncio, o Júlio e o Greves – os três do bote - sentados na soleira duma das portas da loja do Padre Pimentel, à espera do sinal, iniciam uma tresloucada corrida na direcção da casa de Espírito Santo, onde o adro virara porto, ao mesmo tempo que gritavam:
- Baleia! Baleia! Baleia à vista!
- Vamos arriar! Bote para a água! – Anunciam o Júlio e o Greves, saltando para dentro da embarcação que ali estava varada, aguardando a hora da safra.
Enquanto isto, o Rodrigues, num ápice, abandona a vigia e vem fazer de baleia. É que o número de compinchas era muito reduzido e não se podiam dar ao luxo de manter um elemento do grupo sem fazer nada, sentado lá no alto do chafariz. Depois de encher a boca de água numa das torneiras, desata a correr e vai pôr-se de cócoras, no meio da rua Direita. De vez em quando levanta-se e lança rapidamente jactos de água para o ar, ajoujando-se de imediato, evitando ser arpoado. Era a baleia a profundar nas águas escuras do oceano! Depois, sempre à socapa, repete a cena: boca a abarrotar de água e esguichos convulsivos para o ar. Nova fuga ao arpão…
Os outros, em pé, a segurar as canas, remam e movimentam, velozmente, o bote, na perseguição do cetáceo, na mira, duma baleia virtual.
- Vira-me esse esparrel p´ra direita, mestre. Ali há baleia! – Grita o Júlio para o Câncio que logo acrescenta:
- Já está na direcção! Atira-lhe, agora!
De repente o cetáceo vem à tona, lançando um último esguicho para os ares. Secara-se-lhe a boca… e a torneira ali bem perto. O Greves, atirando o arpão, também ele de cana e amarrado ao bote com fios de espadana entrelaçados uns nos outros, tenta atingir a baleia, mas falha… Nesse momento, atravessando a rua em grande correria, um amigo dos quatro, o Álvaro, em tom de gozo:
- Atira-lhe Greves, atira-lhe, mas nunca lhe acertas. Eu cá é que sou um bom trancador! Nunca falho uma.
O Rodrigues tenta suspender a brincadeira:
- Parem, parem. Agora não vale – e dirigindo-se ao Álvaro - Ó Álvaro, anda brincar connosco. Vem fazer de baleia! Não aguento sozinho a fazer de baleia. – Depois, apontando para o Greves em tom recriminatório: - Ele está sempre a perseguir-me e apanha-me logo. Não consigo vir acima d´água, uma vez que seja, que ele atira-me logo o arpão. Com duas baleias é mais fácil não ser apanhado.
- Hoje, não posso, hoje não posso. – Repetia o Álvaro, esquivando-se. Logo o Júlio em tom de gozo:
- Olha o medricas, vai p’ra casa da avó, p’ra baixo das saias das titias…. Áh! Áh! Áh!
E o Greves, pondo mais água na fervura:
- Olhem! E traz os chinelos. O chinelinho hoje vem de chinelos.
- Vocês falam, falam, mas é “roídos de inveja”. Se soubessem p´ronde eu vou!? Vou para Ponta Delgada e de barco, num barco a sério.
O Júlio ainda acrescentou:
- Vais… Vais… Vais mas é tratar das galinhas da avó…
Foi o Rodrigues que pôs termo às suspeitas;
- Eh pá. Olha que ele vai calçado e com a roupa de domingo. Se calhar é mesmo verdade.
- Pois fiquem sabendo que vou a Ponta Delgada, e vou de barco. Mas num barco a sério. É no S. Pedro, que já está no Cais, à minha espera. Adeus que não posso demorar-me mais.
- Vamos continuar a brincar, - concluía o Câncio. - Com ele não podemos contar hoje. Olhem, vem ali o Chapinha. É do melhor que há para baleia.
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CASA COM JANELAS SEM CORTINAS
Tia Júlia chegou a casa muito tarde. Vinha da novena das almas. Não que a cerimónia litúrgica, realizada na igreja paroquial, demorasse muito, mas por começar, como era hábito, a horas bem tardias. Sim, porque às nove da noite, ali na Fajã Grande, em pleno mês de Novembro, há muito que era escuro, que o Sol desaparecera lá para bem longe, para o fim do mundo, para o infinito, onde tudo era um mistério escuro e desconhecido. Tia Júlia apenas sabia que era naquela direcção em que o Sol se punha, que ficava a América… A América dos seus sonhos, dos seus segredos, das suas mágoas, das suas tristezas, do seu sofrimento, da sua miséria, da sua solidão e, sobretudo, daquele enigmático luto que desde há mais de sessenta anos carregava sobre si.
Entrou pela porta da cozinha, que a da sala já não abria nem fechava. Emperrara por completo, a maldita, desde aquele dia em que, muito aflita, a fora destrancar para receber a visita do Senhor Espírito Santo, forçado a entrar pela porta da cozinha. Um crime! Um pecado que havia de envolvê-la, para sempre, numa recriminação sinistra, provocando um falatório medonho, na freguesia. De cansada por subir aquele martírio que era a Fontinha, sentou-se num banco, junto à velha e desconjuntada mesa, apoiando aí os dois braços, devidamente, cruzados e sobre eles o rosto quase tapado com um lenço em forma de bioco, a cair-lhe sobre os olhos. Para quê acender a candeia se o sono era tanto e já nada havia para fazer?
… Num de repente, começou a olhar para longe, para muito longe, para onde o Sol caminhava todos os dias… Era uma cidade enorme, com prédios altíssimos, ruas muito estreitas e apertadas a abarrotar de pessoas, a empurrarem-se umas às outras, na ânsia de fugirem da chuva que caía a cântaros sobre a cidade. Um vento fortíssimo soprava com rugidos roufenhos, ensurdecedores. Gotas gigantes caíam sobre os edifícios e muitos deles explodiam e desmoronavam-se. A cidade cobria-se de nuvens negras de pó e cinza e o céu transformava-se num tenebroso manto escuro, ora a clarear-se, repentinamente, com o faiscar impertinente dos relâmpagos ora a toldar-se, cada vez mais, com o ribombar aterrador dos trovões. A chuva caía forte, diluviana e destruidora. A enorme cidade, agora parecia quase vazia: as pessoas haviam-se escondido e abrigado em todos os resguardos mais recônditos, com medo da chuva, da explosão dos prédios e do desabar das nuvens. Um vento muito frio percorria tudo, entrava nas casas, levava as roupas penduradas nas varandas, formava rolos de espuma, sobre os quais voavam pássaros estranhos e agoirentos. A chuva caía em gotas gigantes, sobre a forma de pesados pedregulhos, destruindo os prédios, transformando-os numa poeira que se espalhava pelas ruas, transformando-as em reluzentes riachos, sem árvores nas margens. Já ninguém existia na cidade e os prédios haviam sido todos destruídos. As ruas desfeitas. Não ficara pedra sobre pedra. Apenas um enorme tapete preto, debruado a amarelo, com quatro gigantescos castiçais com velas a arder nas quatro extremidades. No meio, sobre o tapete, um gigantesco caixão, todo forrado de negro, com um pequeno cruxifixo em cima e uma faixa branca no lado com meia dúzia de palavras, com as letras tão trémulas, tão desfeitas e tão amareladas que nem se entendiam. Ao longe, um leve dobrar de sinos. Três fortes pancadas soaram na porta. Era a Olinda, a filha da comadre Inácia. Desde há muito que lhe prometera fazer umas cortinas para a janela da sala. Seriam de renda, com desenhos de flores e de frutos, com letras e palavras evocando a felicidade, a sorte e a fortuna. A tia Júlia havia de as colocar na janela da sala no dia em que o seu marido regressasse da América. Era a Olinda que lhe vinha trazer as cortinas para a janela da sala. Afinal o Senhor Espírito Santo não a castigara por lhe ter aberto a porta da cozinha…
Ao meio da tarde a vizinha Jacinta, que na noite anterior lhe fizera companhia desde a igreja até à porta de casa, perante o estranho e misterioso silêncio que emanava do pobre e humilde casebre, bateu-lhe à porta. Como ninguém respondesse, decidiu-se por abri-la.
Quando mais tarde a vestiam para lhe colocar o corpo inerte entre os velhos e rotos lençóis que a haviam de embrulhar na sua caminhada para o cemitério, encontraram num dos bolsos do velho avental que sempre trazia vestido, muito amachucado, muito amarelado, muito amarrotado, muito regado com lágrimas de dor, muito embalado em suor de sofrimento e angústia, aquilo que parecia ser uma carta, que a Tia Júlia nunca percebera e nunca mostrara a ninguém mas que marcara para sempre o seu mísero destino:
Mrs Júlia Silva:
We are sorry to inform you that your husband Joe Silva died in an unfortunate caught fire in the building where he lived in the suburbs of San Francisco, California. We further inform you that there was an accident at work and the building was insured, so therefore not entitled to any compensation.
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A SALA DO SENHOR ERNESTO
A sala da casa de habitação do Senhor Ernesto, em Ponta Delgada, nos meus recuados tempos de criança, pese embora fosse típica da casa rural açoriana daquela altura, era dum tamanho descomunal, duma imponência impressionante e duma grandiosidade quase rara. Com uma porta de entrada, a comunicar com um enorme pátio, de pedra negra e carcomida pelo tempo e quatro janelas de guilhotina, com enormes vidros, separados uns dos outros por taliscas de madeira, pintadas de branco e fixados com massa de vidro esbranquiçada, tinha um ar soturno, emanava uma penumbra perturbante e exalava um cheiro bafiento e desconcertante. No interior, amplo e claro, a mobília tradicional: num canto, uma cómoda que continha, para além duma grande quantidade de fotos a antigas, um cadeeiro a petróleo e um oratório repleto de pequenas imagens de santos, com velas e luzinhas à volta e com pagelas nos bordos. Nas paredes, uma pintura do Sagrado Coração de Jesus e uma outra de Maria, um quadro de São Pedro a erguer as chaves do Céu e algumas fotos de homens de bigodes farfalhudos, trajes estranhos, com laços a apertar-lhe os pescoços e mulheres de mantinho na cabeça. Várias cadeiras ao redor da sala e num outro canto, um enorme cadeiral de vimes, no qual, habitualmente, estava sentado o dono da casa. Ao lado a esposa, a senhora Josefa, a dormitar, numa palidamente envernizada cadeira de balanço.
Embora, meu pai batesse de leve à porta, a senhora Josefa acordou. Um pouco espantada, chamou de imediato:
- Muda! Ó Muda! Parece que estão a bater à porta. Despacha-te mulher! Ai meu Sagrado Coração de Jesus! Esta Muda nunca me ouve.
- Ó mulher, como queres que ela te ouça se é surda? Vá lá tu abrir a porta… Anda lá.
Como meu pai continuasse a bater, embora levantando-se, a muito custo, a senhora Josefa veio abrir a porta, cramando impacientemente:
– Ai este meu reumatismo… Esperem que já lá vou!... E aquela Muda que está cada vez mais surda. E eu aqui já sem poder fazer nada e a ter que fazer tudo… O Sagrado Coração de Jesus tenha compaixão de mim. – E como meu pai continuasse a bater, ela caminhando na direcção da porta de entrada, lá ia suplicando: - Esperem!... Esperem! Jesus! Credo! Parece que querem rebentar a porta! Já lá vou. Louvado seja o Santíssimo Sacramento.
– Ó mulher, despacha-te e deixa-te de rezas… Só rezas e jaculatórias! Vá lá ver quem é.
Destrancando a porta e levantando-lhe o “picaporte”, dona Josefavoltou-se para o marido, admirada:
- Temos visitas! É gente da Fajã! É o teu amigo António, com um dos pequenos.
- Ó mulher, e tu de que estás à espera?! O meu amigo António!? Manda-o entrar imediatamente, que me custa levantar.
Meu pai entrou e eu, tímido e hesitante segui-o. Entrar ali, na sala do Senhor Ernesto, era como se entrasse uma igreja e o senhor Ernesto fosse Deus.
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PAI CRISTIANO
Todos os dias quando, no início do serão, terminava a reza do Terço e as invocações da Ladainha de Nossa Senhora, minha avó rezava um Padre-Nosso por alma de cada um dos nossos familiares falecidos, incluindo nessa lista, para além de meu avô, minha mãe, um irmão da minha mãe que havia falecido em criança e a que ela chamava José do Céu, seus pais e sogros, um tal Pai Cristiano, que considerava como seu pai adoptivo. Além disso, e para além desta oração diária, repetidas vezes, recordava com saudade, estima e muita consideração este quase mítico personagem, que aos poucos ia adquirindo forma e ocupando um lugar de destaque, relevo e de grande simpatia e consideração no nosso flutuante e imaginário universo de crianças ingénuas e inexperientes mas dóceis, inocentes e gratas.
A estória afinal era muito simples, idílica e enternecedora. Minha avó ficou órfã de mãe quando tinha apenas dois anos. Dispôs-se o pai, a criá-la, juntamente com os outros rebentos, no meio de grandes dificuldades e muitas limitações.
Certo dia, estava minha avó, na inocência e candura dos seus dois anos de idade, a brincar no pátio em frente à sua casa, no lugar da Cuada, onde nascera, quando passou por ali o senhor José Cristiano, pessoa bondosa e de grande reputação na freguesia. Conhecedor da situação do meu bisavô e das dificuldades que ele tinha, uma vez que era viúvo e vivia sozinho, em criar tantos filhos, propôs-lhe que lhe entregasse a menina a ele, que por sua vez, vivia só com a esposa Margarida, pois o seu único filho, falecera, recentemente, de uma queda que dera na rocha. Levá-la-ia para a sua casa, tratá-la-ia como se fosse sua filha e havia de lhe dar tudo o que ela necessitasse, incluindo uma boa formação humana e religiosa.
Meu bisavô hesitou. Nem por nada deste mundo se queria separar da pequena. Mas como o senhor Cristiano insistisse e lhe prometesse que havia de vê-la e tê-la consigo sempre que quisesse e entendesse, meu bisavô, a abarrotar de trabalhos, canseiras, de consumições e de pobreza, com falta de tempo e penúria de cuidados para dedicar aos filhos, anuiu de bom grado, pese embora tentasse disfarçar a dor de alma e as saudades que havia de sentir quando se separasse definitivamente da sua pequerrucha. E lá veio a Joaquinazinha, da Cuada para a Fajã, passando a viver, alegre e feliz, na casa de José Cristiano, na Fontinha, tratando-o, desde menina e durante toda a vida, por “Pai Cristiano”.
José Cristiano Ramos, filho de Manuel Cristiano Ramos e de Margarida de Jesus, nascera na Fajã Grande, na altura ainda um lugar da freguesia das Fajãs, em 1838, tendo casado, na igreja paroquial da Fajã Grande, localidade recentemente erecta paróquia, em 4 de Janeiro de 1968, com Margarida Jacinta, filha de João Jacinto Rodrigues e Catarina Maria. Consta que na realidade era um homem bom, trabalhador, sério e honesto, de muita fé e temente a Deus, frequentando a igreja e assistindo à missa diariamente, sempre disposto a partilhar os seus bens com os mais pobres e a disponibilizar ajuda aos mais necessitados.
Consta, também, que sempre tratou muito bem a minha avó, como se de uma filha se tratasse, fazendo dela, depois da sua morte, a herdeira de todos seus bens, a qual também sempre se referia a ele com muita estima e gratidão, considerando-como um pai de verdade
Pai Cristiano faleceu repentinamente quando se encontrava a trabalhar numa terra que possuía num local chamado Cabeço da Rocha, lá para os lados da Silveirinha. Terá sido vítima de um ataque fulminante. Foi Ti’Antonho do Alagoeiro que naquele momento, andava a sachar milho no seu cerrado das Queimadas, a uns bons metros dali, o foi socorrer, mas infelizmente quando se acercou dele já não o pode ajudar. Quando chegou ao Cabeço da Rocha, encontrou-o sentado sobre uma pedra, mas já morto. Essa pedra foi guardada ali, por meu avô e mais tarde por meus tios, como testemunho vivo de um nobre e digno cidadão. Nos meus tempos de criança, ainda lá existia. Ti’Antonho do Alagoeiro, apenas se limitou a transportá-lo às costas, através de veredas e canadas, até ao caminho da Silveirinha, trazendo-o para casa e entregando o cadáver à família. Foi tão grande o esforço despendido que, sofrendo de uma hérnia, esta lhe rebentou durante a caminhada, o que, apesar de tudo, não o impediu de carregar o cadáver aos ombros e o trazer até a casa.
Minha avó, após a morte de Pai Cristiano, manteve sempre dele uma lembrança bem viva, pois para além de tudo o que contava e recordava, atribuiu a dois dos seus filhos, nascidos depois da morte do seu pai adoptivo, os nomes dele e da esposa - Cristiano e Margarida.
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DEZ CENTAVOS
Era o último dia do ano. Álvaro passara a manhã excitadíssimo à espera de que a tarde chegasse depressa, a fim de ensaiar o que haviam de cantar durante a tarde do dia de Ano Bom. Na véspera, depois de um chorrilho de pedidos, corroborados com inúmeras juras e variadíssimas promessas, o pai cedera. Havia de o deixar ir, pela primeira vez, cantar os “Anos Bons”. É verdade que era impossível entrar nos ranchos dos maiores e que não era fácil ser aceite nos dos mais novos, mas o José Nunes, seu amigo desde há muito, era o chefe de um dos ranchos dos mais pequenos e havia prometido aceitá-lo. Mais, havia já combinado que a tarde do último dia do ano era para ensaios, na sua loja.
Jantou à pressa, apesar dos lamentos da mãe e dos protestos dos irmãos mais velhos que não cessassem de recriminar, atirando-lhe à cara que ninguém queria um badameco daqueles num rancho, vestiu uma froca de angrim que o frio do Inverno não estava para brincadeiras e, pés descalços e mãos a abanar, saiu em louca correria pela porta da cozinha. Para além do Fitas já lá estavam o José Henriques, o Heitor e o Luís. O António Jorge chegou mais tarde e, logo depois o Narciso, novato como ele. Muitas outras vezes ali se haviam reunido, sobretudo nas tardes de chuva, para outras flostrias e brincadeiras. A mãe do Nunes era condescendente e, como não o queria longe de casa, permitia que se acomodassem por ali, pese embora o barulho, a desarrumação, a barafunda e zaragata em que o grupo era pródigo.
O ensaio correu com grande dignidade, concentração e perfeccionismo. O resultado era excelente: cantavam que nem uma cotovia e tocavam que nem a música da Caveira. O Nunes na gaita, o Heitor nos ferrinhos e o Luís no tambor.
Regressou a casa ao lusco-fusco. A noite pareceu-lhe infinita, a manhã quase infindável e a missa nunca mais acabava. Finalmente chegou a tarde. A mãe autorizou-o a que levasse a melhor roupa, “a da missa” e fosse calçado com os sapatos de pele cabra.
Iniciaram a peregrinação pelo cimo da Assomada. Parecia vinha vindimada! Um dos ranchos dos maiores já por ali passara e iam “às casas melhores” às que “davam mais”. Mas começaram a juntar algum. Dez centavos daqui, vinte dacolá e alguns figos passados ou meio cálice de licor, caseiro, “fraquinho”. Chegaram à Praça com noventa centavos na bolsa que o António Jorge ia segurando. A Fontinha deu menos. Moedas brancas apenas duas de cinquenta centavos, na rua Direita. Uma na casa do Senhor Padre outra na da Senhora Dias. A Tronqueira e a Via d’Água consubstanciaram negas contínuas – pouco deram. Ávidos, foram contar o dinheiro para o adro da igreja, atrás da sineira. Três escudos e sessenta centavos. Agora era só dividir por sete. Muito fácil. “Cinquenta centavos a cada um”. – Concluiu o Heitor. Os dez excedentes ficavam para o Nunes que acumulara as funções de chefe, de organizador e de tocador de gaita. Além disso cedera as instalações para os ensaios. Era mais que justo!
Álvaro regressou a casa, felicíssimo. Sentia-se o homem mais rico do mundo. Uma moeda de vinte centavos e três de dez. Abriu a porta num ápice, aproximou-se da mãe que se entretinha a remendar umas calças do pai. Estendeu-lhe a mão que seguravam as quatro moedinhas e exclamou:
- Veja mãe, o que eu ganhei. Olhe, são para si! Todas para si.
A mãe levantou a cabeça do trabalho, olhou de soslaio, sorriu e beijou-o. Depois, num misto de transtorno e inquietação, pegou nas moedinhas deixando-lhe na mão uma de dez centavos.
Expressando no rosto mais alegria, por saber o que poderiam representar para ela os quarenta centavos, Álvaro apressou-se a abrir uma das gavetas da cómoda da sala, de onde tirou uma pequena carteira e onde introduziu a moeda que a mãe lhe devolvera - dez centavos. Cuidava que com ela, em Setembro, havia de comprar um chocolate, na festa da “Senhora da Saúde”.
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NOCTURNO (EM CAPÍTULOS)
A DESCIDA DO COVÃO
O Sol já descia amarelado e pardacento sobre os lúgubres casebres da freguesia. A ilha estendia-se calma e serena sobre o oceano azulado, consciente da sua ânsia de infinito. O mar horripilava a esperança e desafiava o destino mas prometia uma bonança limitada. O vento, vestindo de púrpura, soprava levemente de sudoeste. O verão, embora timidamente, como que anunciava o princípio do seu fim, e os campos cobriam-se de um verde cada vez mais amarelado e fulvo, ansiosos de proclamarem o almejado amadurecimento dos milhos semeados nas belgas mais soalheiras e nos campos mais férteis.
Eu descia o aclive do Covão, de aguilhada em riste, imaginando tanger a Moirata e o Damasco, jungidos garbosamente, puxando um pesado carro de incensos. Do eixo apertado rolando entre cocões fumegantes, saltava um rangido alucinante que ecoava altíssono nas encostas sobranceiras do Pico da Vigia. De vez em quando parava e punha-me de cócoras, ora para apertar, ora para alargar, os parafusos dos cocões. As reses, impacientes e desabridas, porém, não contemporizavam com os meus excessivos e curiais cuidados para com o famigerado obstáculo do seu descanso. De vez em quando soltavam-se e, punham-se em extravagante correria, virando o carro e os incensos e desapareciam, enquanto a minha fictícia e simulada tarefa era substituída por estroinices reais e aberrantes, não para os meus princípios de menino de sete anos, mas para os proprietários dos currais, belgas e courelas onde, debaixo dos meus pés, rolavam maroiços e ruíam paredes, sobre as quais acintemente saltava, para encurtar distâncias.
Por toda a aldeia já corria a fama de que pedras atiradas para os campos ou paredes e maroiços deitados abaixo, no caminho do Outeiro Grande, eram obra minha. Sim senhor! Pudera! Passava lá todos os dias!...
Fora uma espécie de contrato amistoso que meu pai celebrara, sem me consultar, com o barbeiro da freguesia e que me condenava a ir levar-lhe e buscar, todos os dias, ao Outeiro Grande, a Trigueira com cria serôdia, tendo, como obrigação da parte dele, tosquiadura grátis a todos os elementos do agregado familiar. E não eram poucos! O contrato, porém, ainda continha mais uma cláusula, que nos era extremamente favorável: como o homem acumulava as funções de latoeiro com as de barbeiro, lata que furasse lá em casa tinha pingo de solda rápido, eficiente e gratuito.
Quanto às paredes e maroiços, meu pai, perante o persistente e contínuo chorrilho de queixas que lhe chegavam aos ouvidos, já me avisara várias vezes. Que as levantasse ele. Aliás, quantas mais queixas ou ameaças surgissem, mais paredes e marouços apareceriam derrubados nos dias seguintes.
Pedradas às ovelhas do Delfim era tarefa certa e quotidiana. Podia eu passar ali todos os dias, agarrado ao rabo da Trigueira, não encontrar ninguém sentado nos degraus que dão para a Pedra d'Água e abster-me de atirar umas valentes pedradas às ovelhas daquele biltre? Claro que as pedradas eram para o bigorrilha, mas os pobres ovinos, que já fugiam só de ouvir, ao longe, o som reconhecível da campainha da Trigueira, é que eram as vítimas. Apenas em duas situações eram perdoados: quando alguma badana procriava ou, quando a viagem era mais tardia, já luz-que-fusco, e eu, então, corria, cheio de medo, ao passar, mais abaixo, junto ao Calhau das Feiticeiras. Dizia-se que estas apareciam por ali, precisamente ao anoitecer. E a verdade é que no velho e monstruoso tufo estavam gravadas as marcas aberrantes e inconfundíveis dos seus pés.
PREPARAÇÃO DA VIAGEM
Cheguei a casa! Um frenesim diabólico liderado por meu pai: ia ainda hoje a Ponta Delgada e eu tinha que o acompanhar.
Como? Não me disse. Para quê? Respondeu-me sumariamente com um argumento reflexivo do respeito que sempre impunha a si próprio, espelho das suas atitudes leais e honestas e do seu comportamento garboso:
- Mestre António Algarvio chegou da Terceira, onde foi operado. Há três anos, quando me aconteceu o mesmo, ele veio cá, de propósito, para me visitar. Por isso, agora, tenho que o ir ver. Tu vais comigo.
Entrei num misto de excitação e enleio.
Ao lado, minha irmã, agora afeita também ao papel de mãe, apresentava argumentos contrários de peso: a distância, o avançado do dia, não ser altura boa, eu ainda ser muito pequeno...
Meu pai contra-argumentava linearmente, apenas com o sentimento de gratidão e o reconhecimento que todos devemos ter, repetindo incessantemente: «Ele também veio cá.»
Afinal, bem vistas as coisas, a tarefa estava bastante facilitada: «Para lá íamos no São Pedro; de regresso vínhamos com Deus...»
Enfiei rapidamente umas calças curtas, castanhas, presas ao peito com suspensórios de plástico, uma camisa de seda cor-de-rosa, calcei uns sapatos, também castanhos, acintemente cortados à faca na parte superior, para que os meus rechonchudos e nédios pezinhos, habituados às agruras dos descampados, lá entrassem mais facilmente. Peguei numa "froca" de angrim, também oferta dos meus generosos parentes americanos, e larguei em forte correria pela Assomada, Rua Direita e Via d'Água, fazendo, no entanto, um desvio curvilíneo pela Fontinha.
Minha avó, à janela da sala, de camândulas em punho, ao ser avisada de tão inesperado e inóspito périplo, benzia-se e persignava-se ao mesmo tempo que proferia exclamações alucinantes acompanhados de invocações iconolatras a Santa Rita, a santa que, indiscutivelmente, ocupava o primeiro lugar no top da sua heteróclita e pouco canónica hagiografia.
Eu, nem a ouvia. Antes me esgueirava cauteloso e apressado, não fossem tais impropérios causar alguma influência no espírito do meu progenitor e o demovessem da nossa arrojada mas gratifica viagem.
A VIAGEM
Cheguei acima do cais num ápice! Lá estava o São Pedro altivo, com o seu casco branco debruado a vermelho e amarelo, alardeando-se e balouçando-se sobre as águas calmas do Atlântico, preso ao cais, com fortes amarras à proa e à ré.
A companha, porém, ainda ali não estava. O botequim da Dona Augusta era valhacouto certo para escapadelas burlescas e alcoólicas. Chegaria, mais tarde, com meu pai, e era constituída por cinco elementos: Mestre Gregório, sobre quem ombreava toda a responsabilidade de comando e organização do batel, o Jacinto, responsável pelas amarras e apoitas, o Mulato, maquinista-mor, o João do Alto, ajudante e aprendiz e o Manuel da Ana, especialista na arte de içar a vela. Saltando de terra para bordo com extrema desenvoltura, ocuparam, de imediato, os seus lugares na embarcação e reservaram um banco à proa para os dois intrusos viajantes. O Mulato encarregou-se, de em duas braçadas, por o motor em movimento, o qual lançou, de imediato, no ar, um ronco estrépito, misturado com rolos de fumo e um pestilento cheiro a gasóleo.
O São Pedro, depois de solto pelo Jacinto, deu duas guinadas à retaguarda, afastou-se do cais, rodopiou sobre si próprio e pôs-se em marcha lenta, deixando atrás de si uma esteira de espuma acinzentada. A grande baía da Ribeira das Casas estava calma, mansa e tranquila, propícia a um navegar anelante, seráfico, pleno de regozijo e fascínio. Era a minha primeira viagem e, agora, já longe de terra, saboreava-a erotoforamente e achava graça aos suaves e idílicos solavancos a que o São Pedro se entregava sempre que encontrava pela frente uma onda mais afoita e audaz, sob os olhares atrevidos do Manuel da Ana, marinheiro experimentado nos ritos de iniciação à arte de navegar e que velhacamente esperava pela hora de cessar o meu enlevo.
Voltado de costas para a proa, sentado ao lado de meu pai, olhava a Fajã, ao fundo, distanciando-se aos poucos, numa perspectiva que nunca me tinha sido dada observar e que, agora, me permitia imaginar e configurar formas diversificadas e simbólicas. As casas brancas, agrupadas e enleadas, faziam-me lembrar as pérolas de um enorme colar, suspensas entre dois grandes, pétreos e turgescentes peitos: o Pico da Vigia e o Outeiro, ou, então, numa visão mais integradora, a Ponta dos Pargos surgia-me como a proa negra dum grande navio, com o seu convés povoado de casotas e torres, onde se destacavam as da Igreja e da casa do Chileno e lembrava-me dos rigores do Inverno, quando o vento soprava de leste e o velho Carvalho Araújo ancorava mesmo ali, totalmente impedido de o fazer em qualquer outro ponto da ilha, devido ao mau tempo. De seguida, olhava para leste, tentando descortinar o interior da ilha, e via o grande obstáculo que era a rocha das Covas, agora mais alta e proeminente do que nunca. A água, nas cascatas das ribeiras do Cão e das Casas, desprendia-se em fluxos ritmados e flavescentes, sob o verde dos socalcos e andurriais e o negro das fragas, ravinas e penhascos. Lá estava o famigerado e precito pináculo das Covas, onde dias antes, por momentos, meu pai e eu, quase hipotecáramos a própria esperança de viver. Puxei-lhe, avidamente o braço calejado e disse:
- Foi ali, pai! Foi ali! Lembra-se?
Meu pai teve que, pacientemente, explicar ao Manuel da Ana que, andando por ali - e apontava para a rocha das Covas - alguns dias atrás, comigo, a apanhar erva-santa, de repente, começaram a cair pedras, calhaus enormes e que tínhamos apanhado um grande susto. Víramos a morte pintada! Não fossem os gritos do Constantino, que de cá de baixo lhe indicava para fugir para junto da rocha e hoje não estaríamos ali.
- Tiveste sorte rapaz! Olha se apanhavas com aqueles marmelos! - Dizia o Manuel da Ana, apontando para umas pedras enormes e mais proeminentes a meio da rocha.
A GENEROSIDADE DE MESTRE GREGÓRIO
Eu, porém, já não olhava para os calhaus nem para nada. O São Pedro, agora, navegava entre a Baixa-Rasa e o Ilhéu do Cão. A bonança e a calma de que beneficiava a baía, protegida do vento de sudoeste pelas pontas dos Pargos e do Baixio, deixaram de se fazer sentir. Ondas mais fortes e maiores começavam a obstaculizar a serena navegação do pequeno e frágil batel. Algumas tornavam-se tão altivas e arrogantes que, saltando acima da obra morta do São Pedro, salpicavam, conjuntamente, tripulantes e passageiros.
De repente, comecei a sentir uma vasca terrificante e nauseativa. Parecia estar possuído de vibrações caliginosas, paradigmáticas e angustiantes. O meu corpo, trémulo, inerte, perdera a força e a própria razão de ser e convulsionava-se em frémitos acres e agonizantes. Meu pai, de imediato, entendeu o que se passava. Apoiou-me a cabeça com uma mão e inclinou-me a estibordo. Num ápice, perante o ricto malicioso do Manuel da Ana, entreguei, ali, aos peixinhos, gratuitamente e numa enorme sensação de dor misturada com alívio, o meu parco e frugal almoço, conjuntamente com a alegria e o prazer de fruir tão enlevado périplo.
Quando meu pai me recolheu de tão extenuante suplício, estava lívido, sem forças e verdadeiramente arrependido de me ter envolvido em tão arrojada odisseia. Desejava ardentemente voltar ao cais, donde minutos antes, tão feliz, tinha partido. O safardana do Manuel da Ana, pleno de regozijo, atrevimento e prazer sádico, alheio ao meu sofrimento, sentenciou, na qualidade de emetologista-mor do batel:
- Bravo! Assim é que se aprende! Eu também comecei assim. Calma rapaz! Verás que a próxima vai ser melhor.
O meu sofrimento redobrou porque senti, então, que a maioria da tripulação o apoiava na sua galhofa e estava, decididamente, contra mim. Apenas meu pai, por razões óbvias e evidentes, se mantinha neutro: defender-me era contrariar o movimento maioritário da tripulação liderado pelo biltre do Manuel da Ana. Na sua qualidade de viajante convidado, não podia fazê-lo.
Eu sofria duplamente: a indisposição provocada pelos solavancos do São Pedro e a chacota da marinhagem.
Foi então que, num gesto de grande nobreza, dignidade e comiseração, mestre Gregório, confiando a cana do leme a um dos meus algozes e seu adversário de mofa, se levantou. Balouçando as suas pernas arcadas de velho e experimentado marinheiro, num ímpeto de solidariedade e protecção infantil, pegou nalguns velhos casacos e outras peças de roupa que por ali sobejavam, dobrou-as, enrolou-as e estendeu-as no fundo do barco, à proa, formando uma pequenina e provisória cama. Passou-me carinhosamente, a mão pela cabeça, afagou-me o rosto, encostou-me ao peito e ergueu-me dizendo:
- Deita-te aqui. Vais ver que assim passas melhor e não vomitas mais.
Meu pai agradeceu e eu deitei-me. Não vi mais nada, a não ser, lá ao longe, a sombra negra do Monchique que, contrariamente à sua forma habitual de triângulo isósceles, agora parecia um enorme cesto de vimes, com o fundo virado para cima.
A viagem continuava num mar cada vez mais cavado, hermético e altivo. Porém a sábia experiência de mestre Gregório, fugindo, acintemente, à crista das ondas maiores, proporcionava uma navegação mais tranquila. Deitado no meu provisório mas reconfortante beliche, apenas via o azul esbranquiçado do céu, povoado de cirros brancos, que corriam velozes, ultrapassando o São Pedro, em direcção ao infinito.
Passaram-se alguns momentos que me pareceram horas. A tranquilizante navegação que a sábia e experiente mestria do velho comandante impunha ao São Pedro, a ampla e calma baía dos Fanais por onde agora deslizava suavemente, provocaram em mim uma mudança taumaturga e, levaram meu pai a convencer-me a sair da minha taciturna reclusão. Levantei-me e sentei-me, de novo, no lugar que me fora reservado e que ainda não tinha sido ocupado.
O ILHÉU DE MARIA VAZ E A BAÍA DOS FANAIS
O espectáculo que observava agora era majestoso e belo. O São Pedro navegava ronceiro, entre o ilhéu de Maria Vaz e a rocha dos Fanais. As águas estavam calmas e tranquilas. Não havia ondas. Parecia que o mar tinha amansado acintemente, para que eu pudesse erguer-me e saborear tão deslumbrante espectáculo.
- Ali, - apontava o Mulato para a praia dos Fanais - as lapas são como a palma da minha mão! O pior é descer a rocha para as apanhar.
O Manuel da Ana, em ar trocista, olhando de soslaio para mim e piscando o olho a meu pai, aproveitou logo a deixa:
- E aqui, no ilhéu, os ratos são do tamanho de cães.
Eu tremia, agarrado ao braço do meu progenitor, concedendo-lhe o benefício da veracidade, confirmado não só pelo testemunho do Mulato, mas também, por relatos anteriores, que diziam que por aqueles sítios tudo era excêntrico e heteróclito. Por toda a ilha era sabido que o melhor sítio para lapas era a baía dos Fanais. As dificuldades estavam sempre na descida da rocha, por onde eu nunca tinha passado e que agora surgia ali, à minha frente, alta, imponente, silenciosa e misteriosa, apenas cortada pela cascata da ribeira da Francela.
O São Pedro, porém, abstraído de tudo, continuava a navegar. A tarde surgia mais fria, mas muito limpa e luminosa. Por detrás da alta rocha, com as suas ravinas e pináculos, podia ver-se o interior da ilha, onde já se lobrigavam claramente as pastagens dos matos de Ponta Delgada, entremeadas e divididas por bardos e tapumes de hortênsias azuladas e cor-de-rosa, onde pululavam manchas escuras, brancas e fulvas, pastando a erva tenra.
NAVEGAÇÂO À VELA
De repente, sob ordem de mestre Gregório, o Manuel da Ana levantou-se, aproximou-se do mastro que se mantinha erguido no meio do São Pedro, desamarrou, com extrema facilidade uma série de cordas e estendeu, com a ajuda dos outros marinheiros, um enorme pano esbranquiçado que, num ápice, prendeu e ergueu no mastro rijo e erecto. É que os ventos, agora, sopravam noutra direcção, permitindo ao São Pedro, depois de ultrapassar a ponta do Albarnaz, com o seu imponente farol, seguir em linha recta, na parte setentrional da ilha, bolinar lentamente sobre as águas bravas e onduladas. Meu pai sugeriu:
- Levanta-te, para veres o Corvo.
Lá estava, de facto, ao fundo a pequenina ilha, sobre o verde azulado do oceano, com uma leve e nevoenta fumaça que impedia de se lhe observar a parte mais alta, que fazia lembrar um enorme biscoito, saído do forno, ainda a fumegar.
O porto de Ponta Delgada, no entanto, ainda estava longe. Os balanços do São Pedro, devido à navegação à vela, eram, agora, tão dolentes e acutilantes, que recolhi, mais uma vez, por ordem do meu marítimo paraninfo, ao valhacouto que me havia improvisado. Os efeitos da navegação à vela eram muito mais cruéis e maléficos do que os da navegação a motor e provocaram em mim um mal-estar muito superior ao sentido anteriormente. Deitei-me novamente. Mesmo assim sentia-me muito mal. O barco seguia muito lento, afecto a grandes baloiços e solavancos, que aumentaram sensivelmente a minha inequívoca náusea. É que o São Pedro, ora subia lentamente uma onda, erguendo gigantesca e altivamente a proa sobre a sua crista, ora caía, dorido e sopeado, sobre a enorme cova que a seguir se formava no azulado negro do oceano, num constante e ritmado bater, que se repetia incessantemente. O céu, agora, parecia-me escuro e as imagens do mestre Gregório e dos outros marinheiros assemelhavam-se a sombras enormes, férulas e rúbidas, que se perdiam no ilhéu de Maria Vaz. Ratazanas heteróclitas e gigantescas saíam de todos os lados do ilhéu, de enormes e esconsas grutas, lançando aulidos aterradores, correndo indefinidamente atrás do São Pedro, que voava sobre tapumes esbranquiçados de hortênsias, os quais lentamente se abriam e transformavam em pélagos e precipícios infinitos e transcendentes, onde as ratazanas desapareciam, deixando atrás de si um rasto de gasóleo e fumo negro. O São Pedro tinha asas, galgava o mar a grande velocidade, aproximava-se do Corvo e subia a ilha, sobrevoando as casinhas muito brancas e pequeninas, perdendo-se entre as fumaças do pico de João Moura, que, de repente, se transformava num enorme gigante que chamava por mim, me pegava ao colo e me colocava, com excessivo cuidado, sobre o cais de Ponta Delgada.
PONTA DELGADA DAS FLORES
Quando acordei, já estava em terra. Fora mestre Gregório que, compadecendo-se mais uma vez do meu sofrimento, me pegara, cuidadosamente, ao colo e me pusera definitivamente em terra firme.
Ponta Delgada situa-se na parte mais setentrional das Flores, numa suave encosta, sobranceira ao cais e a uma pequena baía ladeada pela ponta que lhe deu o nome e pela Ponta do Ilhéu e estende-se, longamente, por uma ampla e verdejante planície, onde salpicam as casinhas pintadas de branco. Próxima do cais, onde varou o São Pedro, sempre sobre as ordens radicais e lineares de mestre Gregório, confunde-se com ele e insere-se num todo que permite aos viajantes e turistas, sem grande esforço, atingir rapidamente o povoado. Esta exímia e curta distância facilitou, obviamente, a minha débil e tonta capacidade de me movimentar, originada pelo marelhar constante e contínuo, sentido ao longo de três horas de viagem e que ainda pesava sobre mim. Mesmo em terra, continuava a sentir o corpo entorpecido, nauseabundo e incapacitado de me aventurar às arrojadas correrias ou alanzoar-me em parrésias heteróclitas a que era propenso.
Caminhei, pois, misantropo e macambúzio, ao lado de meu pai, até à casa de mestre António Algarvio.
MESTRE ANTÓNIO ALGARVIO
António Alves da Costa Cabreira, conhecido em toda a ilha por mestre António Algarvio, era um homem alto, esbelto e elegante. Aparentava os seus sessenta anos, cabelos grisalhos, olhos azuis, sempre muito atentos nos dos seus interlocutores. O que mais o caracterizava, porém, era um altivo, descomunal e garboso bigode, que se salientava no rosto oval, do qual lhe ocultava grande parte, e que constituía grande motivo de orgulho para o seu proprietário, que despendia muito tempo e grandes cuidados na sua manutenção, nomeadamente, no asseio das enormes pontas, para as quais como que já institucionalizara o hábito de, constantemente, as retorcer e anafar. O enorme bigode, apesar de grisalho, apresentava, no centro, uma mancha amarelada, que levemente se difluía nas regiões limítrofes e que era o resultado plausível do seu declarado e assumido vício de fumador. Tinha uma voz forte e ríspida, com um acentuado sotaque continental, mais concretamente do Algarve, donde era natural. Essa era, aliás, a razão de ser do seu epíteto.
Nascera em São Bartolomeu de Messines, a terra das pedras de amolar. Mas não era a razão principal pela qual mestre António Algarvio se blasonava da sua terra natal. Segundo ele, São Bartolomeu de Messines fora um eficiente baluarte miguelista, pois foi lá, junto à ermida de Sta Ana, que as forças apoiantes de D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, pesada derrota às forças liberais, bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira. Com ar garboso, acrescentava mestre António, que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general Tomás António da Guarda Cabreira, seu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista. Não ficavam por aqui, contudo, os pergaminhos da ilustre e ditosa pátria de mestre António - foi em São Bartolomeu de Messines que veio ao mundo o ilustre vate João de Deus e acrescentava:
- Ainda lá está a casa onde nasceu e viveu o poeta.
Recebeu meu pai com grande satisfação e alegria. Sentado num enorme cadeiral de vimes, enrolado num grosso cobertor de papa, ia contando, de forma dramático-cómica, como era seu timbre, os pormenores, incluindo os mais insignificantes, da sua viagem à Terceira, em quase tudo semelhante à que meu pai realizara três anos antes: - operação ao estômago, Dr Gago da Câmara, rua da Garoupinha e o velho e monacal hospital de Angra. Enfim, alanzoava-se num aranzel leptológico que lhe era tão peculiar e que contrastava seriamente com a senga e tímida elocução do meu progenitor.
Eu, sentado numa cadeira, muito tímido e quietinho, totalmente alheio a tão desinteressante diálogo, despertei, de imediato, as atenções emocionalmente caritativas da dona Josefa, eminente consorte do nosso anfitrião, que acumulava, simultaneamente, as funções de cozinheira, cargo que, na opinião de mestre António, exercia com desusada competência. A ilustre senhora, exercitando a sua acutilância de investigadora assumida dos destinos do próximo, apercebeu-se, de imediato, do meu estado de famélica debilidade. Num acto de extrema curialidade, sem me consultar, trouxe-me uma enorme tigela de leite fresquinho acompanhado de vitualhas diversas. Envergonhado, manifestei simulada recusa. D. Josefa, no entanto, não era para cerimónias e, embora timidamente, tive que aceitar. Tal repasto produziu em mim um efeito retemperador. Não fosse o temível e odiento séter, sentado ao portão, impedindo a entrada ou saída de qualquer mortal, eu já tinha abalado, na qualidade de objector de consciência, aos efusivos e triviais discursos do ilustre descendente do general Cabreira.
O REGRESSO À FAJÃ GRANDE
O dia aproximava-se do fim. Meu pai, apercebendo-se disso e, porque sentia que a sua missão estava cumprida, decidiu voltar para casa. Nem os veementes e imperiosos pedidos de mestre António, nem o convite gracioso e meigo de dona Josefa, oferecendo hospedagem, o demoveram do tão impertinente carracismo.
Partimos!... Na torre da Igreja de São Pedro, soaram três espaçosas badaladas, seguidas de duas consecutivas. Era o som religioso das Trindades que anunciavam o anoitecer. Os homens regressando dos matos, ao lado de azémolas carregadas de bilhas e latas de leite, tapadas com ramos de queirós, tiravam, solenemente, o boné e simulavam uma pequena oração. Velhinhas vestidas de negro e bioco a tapar-lhe a cara, sentadas às janelas de suas casas, esbagoavam as contas do rosário, bichanando imperceptíveis ave-marias. Mulheres robustas e mal vestidas, algumas pejadas, recolhiam a casa, com molhos de lenha ou de couves à cabeça acompanhadas de garotos descalços, com monco a escorrer-lhes pelo nariz e agarrados aos saiotes. Vendo meu pai todo geringoto, traçando o rumo duma caminhada que, de certo, a noite iria supinamente obstaculizar, formulavam-lhe convites sucessivos e sinceros, disponibilizando caldinho de couves para a ceia e dormida. Todos eram de opinião de que não eram horas de se fazer ao caminho do mato, ainda por cima acompanhado duma criança.
Mas o persistente carracismo de meu pai, mais uma vez imperou. Rejeitava linearmente todas as ofertas de hospedagem, como aliás já acontecera em casa de mestre António Algarvio. Aí, o homem quase se zangara! Por isso, o meu progenitor tinha agora outro argumento, para justificar a sua decisão: não ficara em casa de mestre António, não ficava em nenhuma outra.
Caminhámos!... Ao descoser do derradeiro casebre da freguesia, já a noite caíra, fria, silenciosa e escura. Muito escura! Para trás ficavam os campos, cobertos de milho loiro, amarelado e fulvo e as famílias reunidas à volta das tigelas de leite e broa, acompanhadas de um caldo de couve onde não faltava a talhadinha de toucinho. Era o jantar tradicional e habitual das gentes da ilha.
Entrámos decididamente nos matos e na escuridão. Tínhamos pela frente a árdua tarefa de atravessar, durante a noite, de norte para sul, uma quarta parte da ilha das Flores, sem caminhos, através de pastagens separadas por cancelas e tapumes de hortênsias, chegar ao Risco, descer a íngreme rocha da Ponta e, só então, encontrar um caminho digno de tal nome, que nos conduzisse a casa. A única esperança era a lua. Esta, porém, contrariamente às expectativas de meu pai, tardou em aparecer.
CAMINHANDO NA NOITE
Iniciámos, então, uma desconexa e terrífica inambulação que, inevitavelmente, nos conduziria ao pélago. Meu pai confiara de mais no conhecimento que julgava possuir de tão inóspitos andurriais, reconhecendo, finalmente, que, no escuro da noite, era muito difícil andar por ali. É que as pastagens dos matos de Ponta Delgada, como aliás as de toda a ilha, não possuem caminhos, são apenas detentoras de pequenos atalhos ou trilhos delineados pela passagem, espaçada, de homens e animais
Era precisamente por uma dessas pastagens que eu caminhava, agora, bem agarrado à mão de meu pai, cheio de medo de tudo e de nada, ora horrorizado com os aulidos de algum touro que, repentinamente, surgia ao nosso lado, ora assustado com ecos simbólicos e fantasmagóricos de ruídos estranhos que, no escuro da noite, se faziam ouvir de todos os lados.
De repente, à nossa frente, sem que déssemos conta, surgiu um inopinado tapume de hortênsias. Cancela, nem vê-la. Meu pai furou o tapume, mas a separá-lo da propriedade seguinte estava um arroio repleto de fetos e cana-de-roca. Calou-se, por momentos e, depois, exclamou:
- Estamos perdidos!
Eu emudeci, perante tal parrésia. Mesmo que quisesse não podia responder-lhe ou fazer qualquer sugestão. Sentámo-nos, calados, na erva fria, já perene de sereno. Fixámos, imóveis e silenciosos, o nosso pensamento no infinito escuro e no amanhecer distante.
Passado algum tempo, meu pai, como que despertando duma profunda letargia, pensando que eu já adormecera, sacudiu-me e ordenou:
- Álvaro, descalça os sapatos!
Não lhe obedeci. Pensei que delirava e assustei-me ainda mais. Ele, porém, repetiu a ordem com tal veemência que fui obrigado a obedecer-lhe.
Descalcei os sapatos e entreguei-lhos. Ele, dando um nó no extremo da manga de um casaco que trazia ao ombro, guardou-os. Depois, um pouco mais calmo, explicou-me:
- Agora vais andando à minha frente, andando com cuidado, sentindo a relva debaixo dos teus pés, até encontrares o sítio onde ela está amachucada. Assim descobriremos o atalho.
Comecei a andar, maquinalmente, na escuridão, como se estivesse a jogar à cabra-cega, num espojadoiro. A estratégia, porém, resultou excelentemente. Algum tempo depois, encontrei o trilho. Recomeçámos a marcha lenta e cautelosa. Agora era eu o guia e disso me ufanava. Habituado a andar descalço pelos campos e caminhos, ia facilmente sentindo, debaixo dos meus pés, a erva amachucada e calcada, por onde nos dias anteriores tinham transitado os homens e os animais.
Passado algum tempo, porém, meu pai mandou-me parar. Cuidava ele que estávamos perdidos outra vez. Não tínhamos saído fora do atalho, porque isso os meus pés descalços não me enganavam; perdêramo-nos sim, na direcção. O meu progenitor não sabia se caminhávamos para sul, na direcção da Fajã, ou se pelo contrário regressávamos a Ponta Delgada. Ele, porém, decidiu continuar a andar na mesma direcção, apesar da minha pronta, frontal e resistente oposição.
Andámos, até chegar a uma parede. Eu, já exausto e sonolento, sentei-me! Meu pai, aproximou-se dela e, com as suas mãos calejadas, acariciou-a, levemente, de ambos os lados. Depois, com muita determinação e certeza, disse-me:
- Íamos enganados. Nesta direcção, regressávamos a Ponta Delgada. Vamos voltar para trás, porque a Fajã é na direcção contrária.
Reiniciámos a nossa marcha, sempre no escuro, mas agora na direcção certa e segura, enquanto meu pai me explicava que as paredes e os muros voltados para o norte recebem menos sol e, por isso, têm mais humidade e, consequentemente, mais musgos e ervas. Fora isso, afinal, que ele detectara quando acariciou a parede, descobrindo de que lado ficava o norte. Depois foi só voltar em sentido contrário, porque a Fajã ficava a sul. Era esta a direcção certa e desejada.
Caminhámos, horas a fio, na noite, no medo e no escuro, lutando contra o sono e a constante indefinição dos atalhos!
DA ROCHA DO RISCO À PONTA
Chegámos finalmente ao Risco, iniciando a descida da rocha. Agora já não nos voltaríamos a perder porque, por um lado, apesar de íngreme, a rocha tinha uma vereda bem delineada e, por outro, a lua surgira, finalmente, por cima da rocha dos Paus Brancos, clara e iluminadora, desfazendo, decididamente, a total escuridão que nos acompanhara até agora e a que os nossos olhos como que já se tinham habituado.
Iniciámos a descida. Segundo a douta estimativa do meu progenitor, já devia passar muito da meia-noite. Regozijei-me. É que sentir, naqueles descampados escuros e solitários a terrifica hora da meia-noite, teria sido fatídico para a minha imaginação. A meia-noite era a hora má, plena de aparições fantasmagóricas e contactos com o diabo. Convenhamos que um encontro, naqueles páramos, com o mafarrico, mesmo que fosse apenas na minha imaginação, não seria o mais aconselhável para a minha já débil audácia, pese embora contasse com a protecção de meu pai, um verdadeiro ateu, nestas crenças.
A rocha da Ponta é um alcantil escarpado, abrupto e a pique. A única e sinuosa via que possui é uma vereda, um aclive íngreme e sobranceiro ao mar. Sítios há, em que pedregulho, objecto ou pessoa que caia, vem direitinho parar às águas do Atlântico, a não ser que antes se desfaça ou esborrache nas fragas e penhascos que nela proliferam.
Eu descia-a, encantado com o luar de que agora desfrutava, opondo-se à escuridão que me envolvera toda a noite. O espectáculo que observava era deslumbrante e maravilhoso! O luar, projectando-se no mar, transformava-o num espelho prateado e cristalino. Lá longe já se vislumbrava o casario da Fajã e a tímida luzinha do farol da Ponta do Baixio. O Pico da Vigia, sobranceiro ao povoado, projectava, no mar, uma sombra clarificante que se difluía, com lenidade, no oceano. O silêncio da noite apenas era cortado pelo ritmado bater das ondas junto à costa. No Rolo, circundante à grande Baía, onde se vislumbravam os montículos arrumados do sargaço, simulando aldeamentos escuros, perdiam-se ondas infinitas de prata e de espuma.
A certa altura, abstraído em tão paradigmática contemplação, sem me aperceber, meti um pé em falso num pequeno riacho, tropecei e estatelei-me de tal forma que o meu corpo ficou a balouçar entre cai e não-cai, à espera de rolar pela falésia, atingindo o oceano. Foi meu pai que, lesto e hábil, me agarrou, impedindo-me de rolar pelo íngreme barranco e cair no fundo do precipício. O resultado foi um enorme susto para ele e um grande galo para mim, o qual me impediu, radicalmente, de continuar a fruir a excelência e beleza daquela paisagem nocturna.
Chegámos às primeiras casas da Ponta. Luz, apenas na pequena lâmpada da capelinha de madeira da Sra de Fátima, fruto da exima devoção à virgem do António Simão e marco protector dos viajantes que se dispunham a subir a temível e perigosa rocha. Meu pai decidira que tínhamos que parar na Ponta. Estávamos exaustos, famintos e cansados e o meu galo crescia cada vez mais. Mais adiante, uma luz, a única em todo o reduzido casario. Meu pai bateu à porta. Conhecia muito bem o dono. Eu já nada podia decidir ou opinar.
A porta abriu-se imediatamente. Uma das filhas do Maurício Esteves assumiu, aflita e sobressaltada, de candeeiro em riste, gritando:
- Já chegaram!? Já chegaram!? Entrem, entrem depressa!
Nós, pasmados, hesitantes e perplexos.
Só depois de entrarmos ela explicou, chorosa e triste, que o pai estava nas últimas e o irmão mais velho tinha ido a pé, aos Terreiros, esperar o Dr João Alves, que vinha de Santa Cruz, de carro, para depois lhe fazer companhia. A partir dos terreiros faria o trajecto a cavalo, mas àquela hora da noite, bem necessitava de companhia. Julgara que eram eles e, quando se apercebeu de que éramos nós, ficou decepcionada. O pai piorava de instante para instante e, temia-se que, quando o médico chegasse, já nada pudesse fazer. Abeirámo-nos do leito escurecido em que expirava o velho Esteves e onde reinava um misto de choro e amargura. Ao lado, os filhos, alguns vizinhos e amigos e a candidata a viúva, que ocupava lugar de destaque, junto à cabeceira do moribundo
Meu pai, depois de se inteirar do estado de saúde do agonizante e das causas de tão inóspito acometimento, pediu uma faca, cuja lâmina fria colocou sobre o emérito galo que eu conquistara na descida da rocha, o qual, lenta e progressivamente, foi reduzindo o seu volume, embora não desaparecendo totalmente.
No velho relógio da sala bateram duas horas. Enquanto o moribundo continuava a agonizar, lançando por vezes alucinantes e dolorosos estertores, já alheio a tudo o que o rodeava, e os circundantes tentavam encobrir e disfarçar choros e soluços, decidimos dar continuidade à parte final, por certo a mais fácil, do nosso atribulado percurso.
FINALMENTE EM CASA
O caminho agora era acessível e conhecido. Eu caminhava ronceiro atrás do meu progenitor, que cônscio do adiantado da hora, procurava, recuperar o tempo perdido, nos matos de Ponta Delgada. O sono e o cansaço haviam-se conjugado em mim e dominavam-me de tal forma, que já nem conseguia andar, ou, se o fazia, era maquinalmente. Porém, ao chegar à fatídica ladeira das Covas, dei uma enorme corrida e vim agarrar-me ao braço de meu pai, pedindo-lhe protecção. Era ali, exactamente ali, naquele malfadado sítio, que o padre Silvestre ouvira gritos horríveis e gemidos ansiosos, quando regressava da Ponta, depois de, zelosamente, cumprir as suas obrigações pastorais. O testemunho do reverendo, inicialmente digno de pouco crédito, acabou por tornar-se verídico, porque os gritos e os gemidos foram ouvidos por outras testemunhas. Todos os habitantes quer da Ponta, quer da Fajã, temiam passar por ali, sobretudo durante a noite. Apenas alguns homens mais destemidos e menos crédulos, e meu pai estava nesse número, sabiam ao certo o que se passava. Entrei em pânico. A minha própria sombra e a de meu pai me assustavam. Ele, então, pacientemente, explicou:
- Era a Ana do José Felício. Na véspera, um grupo de homens, liderado pelo Ângelo da Joaquina, tinham-lhe feita uma espera, na relva do João Cristóvão, e viram-na chegar, à tardinha, e esconder-se numa furna. Quando sentia alguém passar, punha-se, de imediato, a gemer e a gritar. Inicialmente pensava-se que era apenas para assustar o senhor padre Silvestre. Afinal, a razão era outra, como ela própria explicou, depois de levar umas valentes bordoadas. Queria apenas impedir que pessoas da Ponta tivessem medo de passar por ali, impedindo-as de vir trazer a moenda ao moinho do José Mateus e, assim, as deixassem no seu, que ficava para além da ribeira do Cão.
A explicação do meu progenitor, no entanto, não me acalmou. A certa altura tive mesmo a certeza de ouvir os tais gritos horrorosos e suspiros alucinantes. Arrepiei-me todo e tremi de medo. Meu pai, no entanto, acalmou-me. Eram cães que andavam por ali a farejar fêmea.
Chegámos a casa! Três horas! Minha irmã sobressaltada e aflita, ainda não pregara olho. Assumindo o seu papel de mãe, deitou-me o mais rápido possível. Acordou-me às sete. Era a minha obrigação ir levar a Trigueira ao Outeiro Grande. Regressei, como por vezes fazia, pela Bandeja e Fontinha, entrando em casa da minha avó, para lhe contar a nossa trágica odisseia.
- Foi um milagre de Santa Rita! - Exclamava ela.
E a santa teve honras de luzinha acesa, durante um mês.
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DOIS E MEIO
Todos os anos, pela altura da Quaresma, o pároco, do alto do púlpito ou do meio da grade, a propósito dos esclarecimentos sobre a desobriga pascal, aproveitava para recordar os outros Mandamentos da Santa Madre Igreja, insistindo com maior desvelo no quinto. E repetia duas, três e mais vezes “Contribuir para as despesas do culto e sustentação do clero, de acordo com os legítimos usos, costumes e tradições da Igreja”.
Lá por ser o quinto e vir em último, não significava que fosse menos importante do que os outros. Pelo contrário, talvez fosse o principal, pois sem ele não havia clero e sem clero não havia missa, não havia confissão, não havia nada. Por isso e, de acordo uma antiquíssima tradição da Igreja Católica, era dever moral e religioso de todos os crentes contribuir, financeiramente, para a honesta e digna sustentação do seu pároco. Então não estava ele, ali, todas as horas do dia e da noite, disponível para quem o chamasse para os últimos sacramentos, não estava ele dia após dia, ao serviço da paróquia, celebrando missa, ministrando os sacramentos e orientando o ensino da catequese? Por isso os paroquianos tinham o dever de contribuir economicamente para que ele pudesse servir em disponibilidade total. Todos, mas mesmo todos, tinham pois a obrigação de cumprir o quinto mandamento da Igreja. E o montante estipulado, de acordo com as normas estabelecidas, na diocese, pelo Senhor Bispo, era o equivalente a um dia de trabalho ou um alqueire de milho: quinze escudos.
O José Natal não nadava em dinheiro, mas tinha algum, pois havia transaccionado uma loja e, além disso, era o responsável pelo correio, o que lhe dava mais uns centavos no fim do mês. Ouviu, como todos os outros, num domingo, no outro e ainda no último, antes da Páscoa, em que o pároco, perante o suposto esquecimento de muitos, até ameaçou ler da grade os nomes dos prevaricadores.
Foi para casa, pegou em lápis e papel e fez contas. Ele vivia sozinho. Na maioria das outras casas da Fajã viviam mais de quatro pessoas, nalgumas dez, noutras doze e até numa eram quinze e todos pagavam pela mesma medida. Ora havia ele de pagar o mesmo que pagavam os outros, com família numerosa, por tudo e por nada a baterem à porta do passal, cheios de filhos para baptizar, com as mulheres sempre na igreja, a não deixarem escapar uma missa ou uma novena? Não era justo. Além disso ele pouco sujava a igreja, uma confissão por ano e não tinha filhos para baptizar, nem para a catequese. Continuou a fazer contas: quinze escudos, numa família de quatro pessoas, - e já era baixar muito a fasquia - eram dois e meio por pessoa. Sim senhor! Pois sendo ele sozinho havia de pagar dois escudos e meio e já estava a ser muito generoso.
Como não queria ver o seu nome lançado ao desvario lá do alto do púlpito, pegou numa moedinha prateada, muito brilhante, de dois e meio e lá foi, com destino à sacristia, onde o pároco habitualmente montava escritório e tesouraria.
Bateu à porta, entrou, cumprimentou com bons modos o reverendo e explicou o porquê da sua visita. Nada de estranho por parte do pároco que sabia que o Josezinho era um bom cristão, cumpridor das leis da Igreja e dos seus deveres de baptizado.
O José Natal sem mais demora, tirou a moeda do bolso e colocou-a na palma da mão direita, estendendo-a na direcção do pároco. Estava ali o seu “culto”!
Que havia um engano, que provavelmente o Josezinho não havia percebido bem o que explicara, mas não era aquilo, não podia, nem devia ser só aquilo. O José Natal insistiu e o pároco, começando a revoltar-se, voltou a contrariar. Que nem pensasse, que tivesse juízo, que não aceitava aquela migalha.
O José Natal, sempre calmo e descontraído, voltando a colocar a moeda no bolso, exclamou:
- Áh! Não quer?! Então ela vai para onde veio. – E dando meia volta, saiu da sacristia.
Não tardou muito e o pároco a correr atrás dele pelo adro fora:
- José, José, ó José, este ano fica assim, mas para o ano vais ter mesmo que pagar os quinze escudos
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O EMBRULHO
Era véspera de Natal. Álvaro respirou de alívio. Finalmente o presépio estava pronto, a obra, na construção da qual se empenhara, meses seguidos, com a ajuda da irmã mais velha, estava concluída. Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, a contemplar o que acabara de construir: era um belo presépio, talvez um dos maiores e mais bonitos dos que se faziam na freguesia. Observou e voltou a observar em pormenor. O presépio realmente tinha tudo: montes, ribeiras, lagos, caminhos, vacas e ovelhas a pastar, campos, casas, ruas por onde andavam pessoas, uma igreja, o palácio de Herodes, a casa de Barbearias e, como não podia faltar, uma enorme furna, parecida com a furna do Peito, onde pernoitavam o Menino, Nossa Senhora, São José, a vaca, o burrinho e, ao redor e ajoelhados, anjos, pastorinhos e camponeses.
A preparação havia durado meses, desviando-o, por vezes, de outras tarefas que, apesar de criança, era obrigado a fazer. Mas o presépio… Não, esse não podia falhar.
Os dias anteriores tinham sido destinados a apanhar o musgo e as ervas no Outeiro, buscar a areia e os seixos ao Canto do Areal. Antes, porém, passara dias e meses, sobretudo ao serão, construindo as casas, a igreja e o palácio de Herodes, alisando a prata para fazer os lagos e as ribeiras e colocando o trigo em pratinhos a germinar. Fizera as casas com caixas de sapatos, escolhendo duas outras maiores: uma para o palácio e outra para a igreja. As casas eram muito bem feitas, umas diferentes das outras, com as portas devidamente cortadas e vincadas, de modo a abrirem e fecharem, as janelas com vidros feitos com papel de plástico colado por dentro e até, nalguns casos, com cortinas feitas com papel de seda. Os telhados eram de papelão canelado de cor castanha, de forma a simular as telhas no seu formato e na sua cor. Por sua vez o palácio de Herodes era todo enfeitado com janelas, varandas e torres. Do mesmo modo a igreja tinha uma torre com sininhos desenhados, uma cruz no cimo, cata-vento e tudo. As figuras tinham sido recortadas de calendários e postais e reforçadas com tiras de papelão. Apenas o Menino, a Virgem e São José eram de barro. Comprara-as o pai, cedendo a muitos pedidos e promessas, quando fora a Santa Cruz pagar a décima. A vaca e o burro, ele próprio os falquejara de pequenos troços de criptoméria que encontrara no caminho. Ele próprio também confeccionara as ovelhas, desenhando-as e recortando-as nas tiras do papelão que sobravam das portas e das janelas das casinhas, colando-lhe pedacinhos de algodão apenas do lado em que ficavam voltadas para fora.
A construção do monte fora o que lhe dera mais trabalho e consumições. A mãe fartava-se de o avisar de que não queria mais tralha em casa do que já tinha. A pouco e pouco, no entanto, lá foi arranjando mais uns caixotes, umas tábuas, uns papelões, amachucando e forrando tudo com leivas de musgo e com outras verduras, de forma a simular o monte, por onde deslizavam ribeiras feitas com tirinhas de papel prateado e onde pastavam as ovelhinhas.
Finalmente construíra a parte inferior, já no chão da sala, junto à qual estava agora sentado. Cobrira uma parte do soalho com areia, ladeara-a com seixos, afim de não se espalhar pela casa provocando, mais uma vez, os protestos da sua progenitora. Sobre a areia edificara o povoado, colocando a igreja, as casas, os lagos onde desaguavam as ribeiras e onde construiu, através da colocação de seixos mais pequeninos, os caminhos e as ruas por onde circulavam pessoas e animais, na labuta da sua actividade quotidiana.
Num dos extremos lá estava o palácio de Herodes e no oposto a casa de Barbearias. Sobre a gruta brilhava uma enorme estrela e um anjo segurava uma tira de papel onde se podia ler algo que Álvaro não entendia, porque era em latim, semelhante ao da missa do galo. Tudo uma verdadeira perfeição!
Retirou-se feliz. Cumprira a sua parte. Agora aguardava que o Menino lhe trouxesse o presente.
E, na manhã seguinte, mal se levantou, correu apressadamente para junto da gruta. E não é que lá estava o embrulho de figos passados que tanto tinha pedido e que lhe souberam a mel.
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NOITE DE NATAL
A noite estava fria e escura. Das encostas do Pico da Vigia e do Outeiro desciam sibilos de vento, míticos e sonantes, que se diluíam sobre os telhados das velhas casas da Fajã, perdendo-se na imensidade escura do Oceano. No ar, pairava um cheiro a canela e um perfume de hortelã e, das janelas semicerradas das pequenas habitações, saía uma luz trémula, baça e insegura. As ruas eram um deserto escuro e quase terrificante.
Na torre da igreja, os sinos haviam, há pouco, anunciado a missa do galo. Esperavam-se, agora, as três badaladas, indicadoras da aproximação da hora. E estas não se fizeram esperar. Logo que soaram na velha torre, sobrepondo-se aos sibilos angustiantes do vento e ao bramido roufenho do mar, como que misteriosamente, de todas as portas, começaram a sair vultos negros, inseguros e indefinidos. Enrolados em roupas grossas, tapavam a cabeça com mantas ou bonés, amparavam-se à incerteza, balouçavam-se no escuro. Uns, seguiam em pequenos ranchos, transportando lanternas de vidro tisnado e luz amarelada, baça e trémula. Outros seguiam só, guiando-se no escuro, amparados a bordões e às paredes e muros dos pátios. Sincronamente, fechavam as portas e encaminhavam-se, para a igreja, situada no centro da freguesia.
Eu era um deles!... Dos mais pequenos, dos mais hesitantes e medrosos…
Era o primeiro Natal em que me fora reconhecido o direito de ir à missa do galo, o que, para mim significava a certeza de já ser um homenzinho. Por isso me preparara dignamente para tal evento. A roupa, apesar de pobre, era a melhor que tinha. Além disso, contrariamente ao habitual, ia calçado, o que me dava um ar de maior dignidade e me conferia uma importância desusada. O silêncio escuro da noite, apenas entrecortado pelo contínuo silvar do vento e pelo bater emaranhado dos sapatos nas pedras da calçada, porém, assustava-me.
Saíramos juntos de casa: meu pai, meus irmãos e eu. Porém, ao passarmos frente ao botequim do Aires, onde os homens, habitualmente passavam os serões e a cujo balcão alguns já estavam encostados, meu pai, assumidamente arredado das cerimónias religiosas e das celebrações litúrgicas, despediu-se de nós e ficou por ali, enquanto seguíamos num grupo que, a pouco e pouco, à medida que se aproximava da igreja, se avolumava e quase transformava em romaria.
Aquela noite, não apenas em minha casa, mas também em todas as da freguesia, fora diferente. De manhã, minha irmã Amélia matou um galo, depenou-o e fez-lhe vinha-d’alhos. A casa foi lavada de ponta a ponta, tarefa em que eu, contra a minha vontade, fui cúmplice. Passei a tarde a acarretar baldes e baldes de água, da fonte para casa. Um bom par de metros!... E os baldes eram pesadíssimos!... Era tal a dificuldade que tinha em fazê-lo, que, numa das viagens, uma das Silveiras, apiedando-se de mim, veio pôr-me o balde em casa. Que alívio! Pena ter sido só uma vez…
De tarde, minha irmã fez o arroz doce e polvilhou-o com canela. Cozeu um caldeirão de inhames e guisou o galo. À hora da ceia, sentámo-nos à mesa. Tudo era diferente, naquela noite. Sobre a toalha esbranquiçada, tilintavam pratos e talheres, contrariamente à habitual tigela de sopas de pão de milho, por vezes bolorento, e leite. Aos inhames, muito quentinhos, a fumegar, juntava-se, em cada prato, um pedaço do galo, acompanhado dum molho aromático, muito bem temperado. Depois o arroz doce, muito amarelado, salpicado com canela. E logo um prato a cada um! Cada qual poderia saboreá-lo, ali, inteirinho, ou então, comer apenas metade e guardar o resto para o dia seguinte:
- Guardá-lo na amassaria é um risco enorme – sentenciava o Alípio – É que o lambão do Justino, levantando-se, durante a noite, limpa tudo o que lhe aparecer pela frente.
Pelo sim pelo não, todos, seguindo a sugestão do Alípio, optámos por limpar, na íntegra, o pratinho do arroz doce. Ninguém quis arriscar. Comê-lo inteirinho era jogar pelo seguro… No dia seguinte se veria…
Ao lado, num dos cantos da sala, estendia-se um grande presépio. Para além da gruta, com as figurinhas, possuía casas, caminhos, ribeiras, lagos,montes, ovelhas, pastores, uma igreja, um anjo e uma estrela grande e brilhante. Num dos cantos o sumptuoso palácio de Herodes e no outro a humilde casa de Barbearias, onde São José fora pedir lume, para fazer a fogueira e aquecer a água para lavar o Menino. Fora montado alguns dias antes, com a colaboração das tias da Fontinha, depois de muita hesitação e discussão:
- Quem está de luto, ainda por cima, pela mãe, não faz presépio – opinavam os mais conservadores.
- São crianças, ninguém leva a mal. E um presépio não é nenhuma festa. – decretavam os mais tolerantes.
Foi esta a opinião que prevaleceu e o presépio fez-se, mas sem a motivação habitual, pois era certo e sabido que o Menino Jesus, este ano, não traria nada, embora eu não percebesse bem porquê…
Era nisto que cismava quando transpusemos o tapa-vento. Entrámos no templo semi-escuro. Apenas a lâmpada do Santíssimo e, no altar-mor, algumas velas acesas. Esquivei-me de junto de minha irmã, de ir para os lugares das mulheres, e esgueirei-me, na companhia de meu tio Lúcio, para o coro.
O templo estava repleto de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. De repente, tio Onofre, de opa vermelha, saindo apressadamente da sacristia tocou, veementemente, uma enorme campainha. Toda a gente se levantou e, de imediato, fez-se um enorme
silêncio. Padre Silvestre emergiu, de seguida, todo de branco, envergando, na cabeça, o barrete negro das três quinas, enquanto segurava na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado. Fazendo uma enorme genuflexão diante do altar-mor, tirou o barrete, preparou o altar do sacrifício, genuflectiu frente ao sacrário e bichanou, silenciosamente, as primeiras orações, em latim, às quais, apenas, tio Onofre respondia, sem se perceber nada ou coisa nenhuma:
O povo, de joelhos e contrito, batia com a mão direita no peito e inclinava, religiosamente, a cabeça...
Pouco depois, o padre aproximou-se do centro do altar, ergueu os braços e entoou:
- “Glo-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis De-e-e-o”.
Tio Onofre, já preparado, de campainhas em riste, começou a badalá-las prolongadamente com enorme intensidade, enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz e de cor.
Passados estes momentos de êxtase, comemorativos do nascimento do Menino Jesus, a missa continuou, entre preces, louvores e orações. O povo levantava-se, sentava-se, ajoelhava e tornava a sentar-se, consoante as indicações da campainha de tio Onofre.
No fim, padre Silvestre, envergando a capa de asperges, dirigiu-se para o altar da Sr.a do Rosário. Era lá, na parte mais baixa, num gruta simulada, que estava o Menino, com a Virgem, São José, a vaca e o burro. Eram imagens enormes, comparadas com as do meu presépio.
O padre recebeu das mãos de tio Onofre o turíbulo fumegante. Deitou-lhe mais incenso, extraído da naveta com uma pequena colher e, balouçando-o diante das figuras do presépio, enchia a igreja de fumo, de odor e de louvor. Depois, tomou o Menino nas mãos, beijou-O e colocou-se no meio do cruzeiro, enquanto o povo formava uma enorme fila para também O beijar.
Eu não fui excepção. Também me incorporei, numa marcha lenta...
Ao aproximar-se a minha vez, verifiquei que tio Onofre segurava uma cesta, na qual, à medida que beijavam o Menino, a maioria dos fiéis deitava uma moeda.
De repente levei a mão a bolso. Lá estavam os vinte centavos que minha irmã me dera, para comprar um chocolate no dia seguinte. Apenas naquele dia e no da festa da Sra da Saúde gozava privilégio semelhante...
Sobre mim recaía a certeza de que, este ano, o Menino Jesus não nos traria nada. Todos confirmavam: - “A quem está de luto, ainda por cima pela mãe, o Menino Jesus não traz presentes.”
Eu, porém, achava esta razão tão indigna do Menino Jesus! Que culpa tinha eu de estar de luto!? Já não bastava ter ficado sem mãe!? E agora ficar sem prenda!? De repente, sem saber porquê, decidi negociar com o Menino. Preferia ficar sem a moeda, não comer o chocolate no dia de Natal, mas sentir a alegria de chegar a casa e ter uma prenda junto do presépio!... Disso não podia abdicar!... E depois dizer ao Câncio, ao Rodrigues e a tantos outros, que não tivera nada!?...Não podia ser...
Hesitei!... Levei a mão ao bolso, senti a moeda fria. Tirei-a, olhei-a e voltei a guardá-la no bolso e a hesitar... A minha vez de beijar o Menino, no entanto, aproximava-se... E eu não conseguia decidir!...Hesitava e continuava a hesitar...
Porém, ao aproximar-me do padre, os meus olhos fixaram-se nos do Menino. Enchi-me de confiança e de uma enorme coragem, beijei-lhe um dos pezinhos, ao mesmo tempo que, levando a mão ao bolso e pegando novamente na moeda, deitava-a na cesta e fazia com Ele um contrato:
- Vou dar-te a moeda, mas tens que me dar um presente.
Terminada a cerimónia regressámos a casa. No adro as pessoas cumprimentavam-se e desejavam umas às outras, incondicionalmente:
- Bom Natal!... Bom Natal!...
Nós tivemos que nos esquivar à frente. Era-nos interdito, porque de luto, receber as boas-festas ou dá-las aos outros!...
Ao passar, de novo, em frente ao Aires, meu pai, sentindo a nossa presença, juntou-se a nós...
Chegámos a casa! Dirigi-me para a sala, numa correria louca, na esperança de saber se o Menino Jesus fora fiel ao nosso contrato...
E não é que foi!... Lá estava, junto à gruta, um enorme embrulho. Fui eu que o abri! Eram figos passados!...Tantos figos passados!...
Sentámo-nos todos à mesa da cozinha e comemo-los com pão. Que maravilha! Valera a pena hipotecar os vinte centavos, embora, nunca o tenha confessado a ninguém.
...
Só algum tempo depois, soube que o Aires vendia figos passados no botequim e que meu pai, a propósito de tratar das vacas, tinha vindo a casa, durante a missa do galo.
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NATAL DE ONTEM E DE HOJE
Num canto da sala, alcatifada e muito bem aquecida, junto à televisão, a mãe erguera-lhe a árvore de plástico, comprada numa promoção do Continente. Encheu-a de bolas de mil cores, de lâmpadas a piscarem alternadamente e pendurou-lhe sininhos de chocolate embrulhados em papéis prateados, debruados ornados a amarelo. De seguida, dirigindo-se ao garoto que, sem pestanejar, não tirava os olhos da “consola” que lhe algemava todos os gestos, movimentos, palavras e olhares, impedindo-o de qualquer contacto recíproco com quem quer que fosse, perguntou-lhe:
- Alvarinho, já escreveu ao Pai Natal, a pedir as prendas?
O garoto continuava absorto, alheado e insensível ao que quer que fosse, indiferente a quem dele se aproximasse, mouco perante quem com ele falasse.
A mãe insistiu:
- Alvarinho, já pediu as prendas ao Pai Natal?
O miúdo nada. A mãe repetiu mais uma vez, uma outra e ainda outra. O resultado, porém, foi o mesmo ou parecia ser pior ainda, uma vez que quanto mais a mãe repetia a pergunta mais o garoto parecia imiscuir-se nos meandros daquela pequena mas atractiva obra das novas tecnologias.
A mãe desistiu e, dando mais uns arranjos à árvore e colocando na mesinha ao lado um presépio de porcelana branca da Vista Alegre que retirara de um dos armários da sala, dirigiu-se para a cozinha, com a denodada intenção de orientar a empregada, na confecção das rabanadas, dos formigos, da aletria, dos sonhos, das filhoses e dos outros doces de Natal. Tudo deveria ficar pronto naquela tarde. Apenas o bacalhau, as couves, as batatas, a canja e o peru recheado ficariam para o dia seguinte, para a véspera de Natal.
O avô Álvaro, sentado numa confortável poltrona, no outro canto da sala e que se havia deslocado dos Açores exclusivamente para passar o Natal com o filho, a nora e o neto que moravam no Continente, observando aquilo tudo, quebrou o silêncio e contestando o que acabava de observar, comentou:
- Isto é que são tempos modernos! Quando eu era criança, o Natal era muito diferente deste Natal de hoje. Nem sequer existia o Pai Natal ou pelo menos não chegava às casas das crianças açorianas. No meu tempo quem dava as prendas era o menino Jesus. E que prendas, meu Deus. Por vezes não havia nada. Outras vezes um embrulho de figos passados. Era eu que fazia o presépio, era eu que preparava e arrumava tudo, de fio a pavio. E ficava tão feliz. Que diferença, meu Deus! Que diferença!
Levantou a cabeça. Um dos canais da Televisão transmitia, em directo, a festa do Natal dos Hospitais. Um dos apresentadores anunciava um convidado especial que iria dar o seu testemunho de Natal. Instintivamente ou porque já estivesse cansado, Alvarinho desligou a consola e também olhou a televisão. O entrevistado afirmava:
- …Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes. Antigamente era o menino Jesus que trazia os presentes e hoje é o Pai Natal, o melhor amigo das crianças. Antigamente eram as crianças que construíam os seus presépios, hoje compram-nos feitos e as árvores de Natal são de plástico, compradas nos supermercados ou nas lojas dos chineses. Mas o espírito do Natal esse é o mesmo e, hoje como ontem, o mundo, nessa noite mágica, enche-se de paz, de amor, de alegria. Isso é o mais importante. Ontem como hoje o espírito do Natal é o mesmo, as vivências, os hábitos e os costumes das pessoas é que constroem um mito natalício diferente. Ontem como hoje, o Natal é, sem sombra de dúvida, uma festa de amor, de compreensão e de paz, sentimentos que devemos preservar e que as crianças, melhor do que ninguém, nos conseguem transmitir. Feliz Natal para todos!
Avô e neto olharam-se, reciprocamente, e sorriram.
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O DR FREITAS PIMENTEL
Era eu ainda criança quando me desloquei pela primeira vez às Lajes, com o objectivo de ir buscar uma encomenda vinda da América. Fi-lo acompanhado e com uma dupla e incontida alegria. Por uma lado tinha a oportunidade de, pela primeira vez, ver, apreciar e percorrer as ruas de uma vila, que eu cuidava ser algo de muito grandioso e imponente e, por outro, animava-me a esperança de ter umas roupinhas novas e, eventualmente, um ou outro brinquedo já gasto e usado ou, simplesmente, uma esferográfica sem tinta, vinda na “saca” da América.
Nessa altura, ainda não havia estrada a ligar a Fajã Grande às Lajes, pelo que o trajecto, entre as duas localidades, era feito a pé por inteiro, atravessando a ilha de lés-a-lés, percorrendo veredas e atalhos, saltando grotas e ribeiras, subindo montes e rochas, descendo ladeiras e aclives e, por vezes, atravessando relvas e pastagens, à mistura com vacas e bezerros, a fim de encurtar distâncias e aliviar percursos. Eram quatro horas de viagem cansativa e fatigante, mas alegre e folgazona. A certa altura, cheio de sede e a arfar fadiga, bebi água em sítio onde muito provavelmente esta estaria infectada. Passados alguns dias fui acometido de febres muito altas, com a boca inchadíssima e num estado lastimável, pelo que permanecia de cama, inerte, sem poder comer o que quer que fosse. Um enorme sofrimento para mim e uma atribulada angústia para os que me rodeavam. Uma tragédia! Meu pai, aflito, nem sabia o que fazer. Na Fajã Grande não havia médico e levar-me a santa Cruz era de todo impossível, devido à distância, à falta de transporte e ao meu estado de extrema fraqueza e acentuada debilidade.
Por feliz coincidência, nesses dias, o senhor Doutor Freitas Pimentel, à altura Governador Civil do Distrito da Horta, realizou uma visita oficial à Fajã Grande, viajando num gasolina, desde as Lajes. Recebido apoteoticamente em cima do Cais, Sua Excelência, acompanhado da sua comitiva, na qual já se incluíam as autoridades da ilha, dirigiu-se, para a Casa do Espírito Santo de Cima, apinhada de gente, onde lhe foram dadas as boas vindas e feitos os discursos. Meu pai sabia que o Senhor Governador Civil também era médico. Aguardou serenamente que todo este cerimonial se realizasse e, quando se apercebeu de que o mesmo se aproximava do fim, correu a casa, embrulhou-me num cobertor e trouxe-me ao colo até à Casa do Espírito Santo. Furando por entre a multidão, ludibriando os seguranças e resistindo à oposição de alguns membros da comitiva, aproximou-se do Dr Freitas Pimentel e solicitou-lhe que, por alma dos seus, me visse, me observasse e me receitasse algum remédio, ao mesmo tempo que me desembrulhava do cobertor.
O Dr Freitas Pimentel, apercebendo-se da gravidade do meu estado de saúde, de imediato, suspendeu a sua actividade de Governador Civil e solicitou ao seu secretário que lhe trouxesse uma pasta, donde retirou diversos instrumentos de diagnóstico médico. Observou-me, mediu-me a temperatura, auscultou-me e abriu-me a boca com uma espátula. De seguida, acalmou o meu progenitor, dizendo-lhe que eu tinha um gravíssimo ataque de piorreia mas que tudo se iria resolver. Receitou-me uma valente dose de penicilina, alguns comprimidos e um desinfectante oral, sugerindo que as injecções me fossem aplicadas o mais rapidamente possível.
Meu pai voltou a embrulhar-me no cobertor e perguntou quanto era a consulta. O Dr Freitas Pimentel, esboçou um sorriso, deu-lhe uma leve palmada nas costas e disse-lhe apenas:
- Vá depressa, homem. Vá depressa a Santa Cruz ou às Lajes comprar as injecções, que as não há aqui na Fajã.
Cumpriram-se com rigor as prescrições médicas e, alguns dias depois, eu tinha-me curado por completo e estava são que nem um pero e meu pai aliviado.
Passaram-se mutos anos, sem que nunca mais visse o dr Freitas Pimental e lhe pudesse agradecer aquela cura milagrosa que ele, em mim, havia operado. Certo dia, porém, ao embarcar no aeroporto da Horta, dei com ele, só, abandonado, triste e melancólico, num canto da sala de espera. Cuidei que era a altura de lhe agradecer o que ele, há muitos anos, fizera por mim. Com alguma hesitação, aproximei-me, cumprimentei-o e apresentei-me, recordando o episódio de há muitos anos em que ele me havia curado. Que se lembrava muito bem das suas idas à Fajã Grande, mas não se lembrava de me ter tratado. Que procurara sempre ajudar a todos, mesmo quando lhe solicitavam cuidados médicos. Que nunca se recusara a tratar um doente e que sempre o fizera, sobretudo, naquelas localidades onde, na altura, não havia médico.
Agradeci-lhe mais uma vez e despedi-me. Para espanto meu, o antigo Governador Civil da Horta disse-me:
- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!
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UMA BRINCADEIRA DE MUITO MAU GOSTO
O José Rodrigues, também conhecido pelo “Bem se sabe”, dado que nas suas conversas usava frequentemente este chavão, era um homem simples, generoso, benévolo e, além disso, possuía uma cultura geral bastante interessante, mas era muito ingénuo.
Filho do João da Catrina, morava no início da Assomada, quase à Praça. Para além de ajudar o pai nas lides do campo, o José Rodrigues era um excelente carpinteiro, com oficina montada nas Courelas. Rezam as crónicas, que foi ele que, nos finais dos anos trinta, construiu as primeiras balizas para o campo de jogos do Estaleiro, entre o Porto e o Calhau Miúdo, onde jogavam os dois primitivos clubes de futebol da Fajã Grande, o Sport e o Salgueiros e que mais tarde se uniram, formando o Atlético Clube da Fajã Grande, agremiação que manteve a prática desportiva, na freguesia, até há poucos anos. Era ele também que construía os caixotes de madeira, dentro dos quais eram colocadas as latas da manteiga, produzida pela Cooperativa da Fajã Grande e exportada para o Continente.
Ora certo dia, um grupo de energúmenos, maldosos e malévolos, decidiram, imprudentemente, que haviam de divertir-se à custa da simplicidade e da ingenuidade do José Rodrigues. Lamentavelmente, exageraram e fizeram-no da pior forma e da mais vil e abominável maneira, esquecendo as danosas consequências que teria o seu acto hediondo e tresloucado.
Ao cair da tarde, um dos membros do grupo convidou o José para ir fazer serão à sua casa, na Tronqueira, onde vivia com a esposa. O José, alegre e bom conversador, aceitou de bom grado o convite, demorando-se em casa do seu anfitrião, apenas, durante o tempo combinado pelo grupo. No momento exacto foi-lhe sugerido que se fosse embora. Já era um pouco tarde e os da casa pretendiam deitar-se. Despedindo-se dos presentes, educadamente, como era seu timbre, e agradecendo a hospitalidade, o José saiu, na maior das calmas, com destino à sua casa. Os restantes elementos do grupo, informados de tudo, esconderam-se à entrada da Tronqueira, numa terra do Francisco Tomé, bastante mais alta do que o caminho e separada deste por uma grossa parede. Precisamente no momento em que o José Rodrigues ali passava, à socapa e sem escrúpulos, atiraram-lhe para cima uma caneca acabada de retirar duma retrete das redondezas, a abarrotar de urina e de fezes humanas, já em putrefacção. A acção foi tão rápida e célere que José não teve alternativa e levou com toda aquela imundície em cima de si. Um verdadeiro horror! Uma péssima e asquerosa brincadeira, condenada a todos os níveis.
No dia seguinte, foi feita a participação às autoridades competentes. Estas, de imediato, identificaram os prevaricadores, o que até não foi difícil porque os donos da casa onde o José fora passar o serão, haviam-se esquecido de que eram cúmplices, não ocultando a sua colaboração naquele deplorável acto.
Julgados em tribunal, depois de antes terem sido radical e abominavelmente condenados por toda a população da freguesia, todos os elementos intervenientes naquela malévola e ascorosa brincadeira foram presos, ficando algum tempo na cadeia, na vila de Santa Cruz, excepto um deles, por ser menor. O dono da casa onde o José fora convidado a fazer serão também foi condenado e preso. E quando a esposa chorosa e desolada, lamentava, amargamente, o infortúnio do marido, junto do seu progenitor, este, virando-lhe as costas em sinal de reprovação, simplesmente lhe disse: “Até tu, também devias estar presa”.
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A BUCHANAIFE
Quando regressou da Califórnia, disposto a passar os últimos dias da sua vida na terra onde nascera, Mrs Robert trouxe consigo alguns costumes modernos que contrariavam os hábitos ancestrais duma isolada e pacata freguesia, como era a Fajã Grande, em plena década de cinquenta. Só que o ilustre ancião não se apercebeu, de imediato, da incompatibilidade existente entre os usos e costumes da terra do Tio Sam, estampados nas suas múltiplas extravagâncias, e o recatado viver dos habitantes da mais ocidental parcela do território português.
Ora, entre outras esquisitices, Mrs Robert adorava tomar banhos de mar. Na Califórnia, porém, não o fazia com a frequência e a continuidade desejadas. Vivia longe do mar, os invernos eram muito rigorosos e prolongados e, como se isso não bastasse, as águas do Pacífico que banhavam as costas do norte da Califórnia eram terrivelmente arrefecidas pela corrente fria do Humbolt. Mrs Robert saíra das Flores muito jovem, mas sabia bem que as águas do Atlântico, ali, nas Flores, eram mais quentinhas. O clima dos Açores era bem melhor do que o de “Mendocino County” e a corrente oceânica que passava a noroeste das ilhas era quente.
Assim e logo no dia imediato ao da sua chegada, Mrs Robert, resolveu pegar nos seus calções, muito vermelhos e ramalhudos, na sua toalha amarelada e a espelhar as praias do Hawai, enfiou um “kap” de marinheiro na cabeça, colocou os óculos escuros e partiu para o Porto, não sem, no entanto, despertar a curiosidade de quantos o viam caminhar naquele traje e naquela direcção.
O Porto Velho, a abarrotar de barcos e edificado ao redor de rochedos alcantilados não lhe agradou. Mas o Cais, esse sim. Era “wonderful, very wonderful”. Ao lado das escadas onde os barcos encostavam para descarregar mercadorias e passageiros, quando o Carvalho ali fazia serviço, havia um varadouro com alguma areia. “Really good”! E Mrs Robert decidiu-se pelo varadouro. Escondeu-se entre os rochedos para despir a roupa e vestir o “swimsuit” e encaminhou-se para o mar, descendo o varadouro como bem podia e Deus o ajudava. Mas as pedras estavam cheias de algas e limos molhados e escorregadios, fazendo com que Mrs Robert resvalasse várias vezes, amachucando e esfolando o rabiosque. Apesar de tudo, com as pernas a tremer como varas verdes, conseguiu chegar à água e começar a nadar. A água estava óptima, o mar muito manso e Mrs Robert nadava que nem um peixe.
A Maria Eduarda, que fora levar uma moenda ao moinho, lá para os lados da Ribeira das Casas, no regresso, passou por ali. Parou e mirou tudo! Pasmou-se, engasgou-se, benzeu-se e persignou-se. Nunca se vira, na freguesia, uma pouca-vergonha daquelas! Bisbilhoteira que era, não se conteve e, a correr numa aflição, veio anunciar ao povoado, não apenas o que vira mas também o que imaginara. Foi a debandada geral! Novos, velhos, rapazes crianças e até mulheres zarparam em direcção ao Cais, para ver, apreciar e comentar aquele inusitado espectáculo. E num ápice o Cais encheu-se de mirones, de comentários, de risos, de espantos, de reparos e de admirações. Incrédulas e apreensivas, as mulheres, sentenciavam: “Um velho daquela idade, a nadar, não pode estar bom da cabeça. Perdeu o juízo por completo.” Sorridentes, os homens comentavam: “É preciso ter coragem! O velhote aguenta-se que nem um rapaz de vinte anos”. Os rapazes e crianças, a divertirem-se com o espectáculo, alguns atirando-se de cima do Cais para a água, gritavam em alto e bom som: “Roberto vai ver a velha, Roberto vai ao fundo, ver a velha”.
Mrs Robert ao ver toda aquela patuleia desenfreada toca de remar para terra, tentando subir o varadouro com rapidez e celeridade. Os pés, porém, escorregavam sobre limos e algas. Mrs Robert, com uma monumental barriga e umas pernas muito delgadas, caía e levantava-se para cair de imediato, em infrutíferas tentativas de chegar ao esconderijo onde guardara a roupa. Impossibilitado de subir a pé, começou a andar de gatas, a rastejar, a rolar.se e a desgastar-se por completo, perante a chacota e a risada geral que emanava de cima do Cais, entremeada por entre gritos: “P´rá água! P´ra água! Roberto para a água!”
Muito a custo, Mrs Robert lá chegou ao seu esconderijo, enquanto a multidão, dando o espectáculo por terminado, abandonava o Cais. Algum tempo depois, ao regressar a casa, Mrs Robert deu com Ti’Antonho Joaquim sentado à praça. Parou e fixando-o de frente ripostou;
- Senhor António Joaquim, não tem vergonha! Um homem da sua idade, também teve a lata de caminhar para o Cais, a ver o “Fandaine”, para se rir à minha custa… Pois fique sabendo que Robert trabalhou muitos anos num talho, em “Ukiah” e sabe manejar muito bem uma “buchanaife”. Tenho uma lá em casa e vou trazê-la comigo, para ver se o Senhor António Joaquim e os outros voltam a ir ver o “fandaine” e a rir-se de mim. Oh, se voltam!
E a partir desse dia Mrs Robert, para além dos preparos necessários ao seu banho de mar, levava consigo, para o Cais, uma enorme faca de matar porcos
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TOURADA NA RUA DIREITA
O Maurício tinha o palheiro do gado na Assomada, junto à casa das Senhoras Mendonças e possuía relvas no Vale do Linho, lá para os lados da Ponta. O Raulino Fragueiro tinha o palheiro do gado na Tronqueira, junto à casa do Lucindo Cardoso e possuía relvas na Alagoinha, lá para os lados dos Paus Brancos. As vacas do Maurício, conduzidas por ele próprio, todas as tardes, desciam a Rua Direita, com destino às relvas do Vale do Linho e subiam-na, de madrugada, no regresso ao palheiro. Por sua vez, as vacas do Raulino Fragueiro, geralmente conduzidas pelo filho mais velho, o Francisco, todas as tardes, subiam a Rua Direita com destino às relvas da Alagoinha e desciam-na, de madrugada, de regresso ao palheiro. Umas e outras eram vacas robustas, de boa raça, bem tratadas, fortes, valentes, saudáveis, bonitas e boas de leita. Além disso, como era costume na Fajã Grande, quer o Maurício quer o Raulino Fragueiro e os filhos, para além de tratarem muito bem as suas vacas, colocavam-lhes reluzentes ponteiras nos chifres e sonoras campainhas ao pescoço. Assim, umas e outras, nas suas idas e vindas diárias, à tarde e de manhã, transitavam calma e tranquilamente na Rua Direita, enchendo-a de sons, de cores, de alegria e de movimento, mas também de bosta, de incómodo e de cheiro a leite e a palheiro.
Certa tarde, porém, tudo isto se modificou. Por infeliz coincidência ou mero acaso, o Maurício e o Francisco do Raulino saíram com as suas vacas dos seus palheiros a tais horas e com tal rigor que estas haviam de encontrar-se, umas com as outras, logo ali, a seguir à Praça, no início da Rua Direita, as do Maurício a descer, as do Raulino a subir. E eis se não quando, uma das vacas do Maurício, cuidando talvez que as suas oponentes não lhe deixavam espaço suficiente para circular, de mais atrevida e metediça que era, resolveu dar uma valente cornada numa das vacas do Francisco. Foi o bom e o bonito! As outras, entrando em defesa da inocente agredida, resolvem atacar massivamente, à cornada, ao coice, ao empurrão, ao salta por cima e ao encavalita, não apenas a desdenhosa que havia iniciado a guerrilha mas toda a comitiva que se encaminhava para o Vale do Linho. O Maurício, um boca-aberta de se lhe tirar o chapéu, cuidando que as suas vacas sabiam muito bem defender-se e atacar no momento oportuno e que as cornadas a ele não lhe doíam rigorosamente nada, optou por observar, de longe, o “fandaine”, e o Francisco, sempre lento, sempre atrasado e sempre na conversa com um e com outro, quando se aproximou do local da peleja, já esta ia a mais de meio, com consequências desastrosas, pois era de tal modo intensa, envolvente e desalmada que era impossível pôr-lhe cobro. Juntou-se gente, os moradores assomaram às portas, varandas e janelas, uns a divertirem-se com aquele inesperado espectáculo e outros a indignarem-se com as suas malévolas consequências. For fim os donos das vacas, ajudados por voluntários, à paulada, à cacetada, aos gritos, aos berros e ao incitamento às tréguas, lá conseguiram sossegar as rezes, que cansadas, escarrachadas, amarfanhadas e apalermadas lá seguiram o seu destino, as do Francisco subindo a Fontinha, até à Alagoinha, as do Maurício, continuando a descer a Rua Direita e a Tronqueira, até ao Vale do Linho.
Mas os moradores da principal e mais aristocrata artéria da Fajã, sobretudo os das casas ali ao redor, muito se indignaram e ainda mais se revoltaram. É que para além do incómodo provocado, o inesperado e inóspito incidente deixou marcas inqualificáveis e aberrantes, sobretudo de bosta e mau cheiro, nos passeios, nas entradas, nas portas e até nalgumas janelas e varandas. E o Maurício e o Francisco do Raulino, declarados unanimemente com os principais responsáveis por aquela displicente e abominável tourada, não foram poupados aos mais odiosos, variados e vis insultos, vitupérios, injúrias, pragas e imprecações.
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A MORTE DO FOLIÃO DO SENHOR ESPÍRITO SANTO
O Ledesma regressou à Fajã muitos anos depois de ter partido para a Améria. Ainda criança acompanhara o pai, esquivando-se para os States, a bordo duma escuma que ancorara ali para os lados do Canto do Areal, já ao anoitecer, sem que ninguém desse por isso, nem a guarda costeira desconfiasse o que quer que fosse. A «Voice of the Sea» fora rápida na sua escala nos mares da Fajã. Carregara meia-dúzia de clandestinos e pusera-se na alheta, antes que o pior acontecesse. Ainda a noite não escurecera por completo e já desaparecera no mar alto, deixando atrás a mancha negra da ilha e as luzes frouxas dos pequenos faróis que povoavam a sua orla marítima. Algumas semanas depois estavam na costa leste dos Estados Unidos, à espera do “trem” que os havia de levar até à outra banda do mundo, onde se dizia, havia uma espécie de “el dorado” para quantos, de tão longe, demandavam aquelas longínquas paragens. Fixou-se o Ledesma pai, juntamente com a criança, surripiada de entre as brumas e escarpas açorianas, para os lados do Vale de São Joaquim, nos arredores de Fresno. Não tardou o Ledesma filho a crescer, a tornar-se um jovem forte e robusto, começando a ajudar o pai nas lides campestres e no pastoreio. E quando o velho pai, alguns anos depois, resolveu voltar à ilha onde nascera, o filho decidiu não o acompanhar, permanecendo na terra do Tio Sam por mais um bom punhado de anos.
Fez fortuna o Ledesma e, quando se decidiu por regressar às Flores, estava ao que se dizia, podre de rico. Chegou à Fajã, construiu casa na Fontinha, comprou terras de cultivo e de mato, relvas, gado, apetrechos agrícolas e utensílios domésticos. Casou e decidiu-se ficar ali, para sempre. Nada de anormal pois aquela era a terra que o vira nascer. Mas como a estadia na Califórnia havia sido longa e prolongada, o Ledesma demorou algum tempo, quer a inteirar-se dos usos e costumes da terra que o vira nascer, quer a conhecer os seus hábitos e as suas tradições.
Certo dia, pouco depois do seu regresso da Califórnia, decidiu que havia de deslocar-se a Santa Cruz, a fim de registar umas propriedades que comprara lá para as bandas do Queiroal. Levantou-se cedo e partiu sozinho, cuidando que ainda conhecia os atalhos e veredas que em criança havia calcorreado com o pai. Saiu de casa, subiu a Fontinha, atravessou o Alagoeiro e a Ribeira e iniciou a subida da Rocha ainda noite escura, embora já se vislumbrassem, sobre a Caldeirinha, alguns raios de luz esbranquiçada, a anunciar que o dia nasceria em breve. Ao iniciar a subida da Rocha, no entanto, notou que ao seu redor havia um silêncio enorme, medonho e enigmático. Não havia um único pássaro que fizesse ecoar a sua voz por aqueles recantos a anunciar o amanhecer. O mesmo acontecia com os galos das capoeiras da Fontinha que permaneciam mudos como nunca. Talvez fosse mais cedo do que pensava e, por isso, continuou a subir a Rocha, descontraidamente. Ao chegar ao Descansadouro o silêncio parecia ainda maior, o que voltou a despertar a admiração e o espanto do Ledesma. Como poderia estar o dia prestes a nascer e não haver, no meio de todo aquele arvoredo, uma única ave que anunciasse, com o seu belo e alegre canto, o início de mais um dia? À Fonte Vermelha sentou-se e pôs-se a escutar com mais atenção. Nada! Que raio! O que teria acontecido a aquela passarada para estar assim silenciosa? Indignado continuou até ao cimo da Rocha. A manhã já clareara por completo, mas pássaros a cantar… nem um para amostra. Nada de cantorias. Inquieto, admirado, embasbacado e já um pouco confuso, o Ledesma seguiu o seu trajecto até Santa Cruz, sem que, ao longo de todo o percurso, ouvisse cantar um único pássaro que fosse.
Entrou na Vila já a manhã ia a meio. Santa Cruz parecia deserta, assombrada, entristecida. O Sol escondera-se por completo, um denso manto de nuvens cobria o povoado, tornando a vila sombria, soturna e pardacenta. Nas ruas, não se viam pessoas, nos campos não pastavam animais e os ramos das árvores estavam pejados de pássaros, mas, incompreensivelmente, permaneciam todos silenciosos. Ao chegar à Praça, apenas viu um velho, sentado num banco, soturno e sorumbático, como que a olhar o infinito. Dirigiu-se a ele, indagando-o sobre o que se passava e sobretudo porque seria que naquela manhã, estranhamente, não se ouviam os pássaros a cantar. Foi então que o velho, fixando-o com os olhos rasos de lágrimas, esclareceu:
- Só tu vives nesta terra e não sabes o que se passa, no dia de hoje. Os pássaros não cantam, nem cantarão durante todo o dia, porque hoje morreu um folião do Senhor Espírito Santo. No dia em que morre um folião do Senhor Espírito Santo, toda a Terra chora, os Céus ficam muito tristes e até os pássaros não cantam!
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JOÃO E ANGELINA
Tarde de Inverno! Na aba de uma parede da Silveirinha, a abrigaram-se da chuva e a protegeram-se das intempéries. Ela exausta de carregar um cesto de inhames da Alagoinha, ele vergado ao peso de um enorme molho de lenha do Pocestinho. A chuva, cada vez mais intensa, opunha-se ferozmente à pertinente resistência da aba e começava a penetrar-lhe nos corpos, misturando-se com suores e canseiras. Encolheram-se mais, aconchegaram-se em demasia junto à parede e os seus corpos, tolhidos pela chuva e encharcados de inocência, tocaram-se, ao de leve. Ela mais nova, mais tímida, mais triste, mais dolente, mais silenciosa, mais embaraçada e menos requintada de desejos. Ele mais velho, mais ousado, mais afoito, mais conversador, mais habituado a bailaricos e folias e menos comedido em ousadia. A chuva, agora, caía mais forte, em catadupa e, por mais que se encostassem à parede e por mais que os seus corpos se embrenhassem na aba, não podiam resistir nem à intempérie, nem à troca de afectos. Deram as mãos e estremeceram. Olharam-se de frente e enterneceram-se. E com o cair permanente e cada vez mais intenso da chuva e com um simples acenar de cabeça e com um sorriso do tamanho do mundo, perceberam que tudo começava ali.
Os pais dela rejeitaram, condenaram, intimidaram, proibiram e ameaçaram. As irmãs zombaram, chacotearam, escarneceram e ridicularizaram. Um badameco daqueles, que não tinha onde cair morto, um zé-ninguém com o pai a finar-se, a mãe acamada e com uma irmã tola, um simplório sem sonhos e sem futuro que nem à América aspirava. Que não lhes batesse à porta, o palerma, que havia ouvir das boas. Fosse procurar mulher para junto dos da sua laia. Ela triste, deprimida, magoada, chorosa, sentindo cada vez mais o aperto da sua mão, o calor do seu corpo e a grandiosidade do seu sorrisos. Ele insistiu, nas Águas, nos Lavadouros, na Cabaceira, onde quer que fosse, quer ao sabor refrescante da chuva quer ao calor angustiante das tardes solarengas.
Certo dia, ele, subjugado ao amor e enchendo-se de coragem, entrou-lhe pela porta dentro, disposto a pedi-la. Enxovalharam-no, tentaram afugentá-lo, pediram-lhe que desistisse, exigiram que a deixasse em paz. Ele emudeceu mas ela ressurgiu, revoltou-se, interpôs-se e declarou, sem rodeios, a sua vontade. Era ele o seu eleito e dele não havia de desistir. Que se não a deixassem concretizar os seus sonhos havia de fugir. Encolheram os ombros… Que fugisse! Era lá com ela.
Não fugiu ela mas fugiram eles! Uma boda sem bodo, um vestido branco sem folhos e um dia sem festa e sem folia! Apenas uma flor de laranjeira porque isso, sabiam que ela merecia. Mas ele que não lhes entrasse mais pela porta dentro.
João amou Angelina apenas durante catorze anos, porque quis o destino que ela partisse. E ele ficou à espera de também, em breve, ir ao seu encontro.
Destinos cruéis. Traços rasgados a sangue em horizontes perdidos. Sulcos de dor tracejados em sonhos desfeitos. Efémero amanhecer onde a certeza se confunde com a impertinência angustiante de um sofrimento perene.
João e Angelina escreveram, com pinceladas de sofrimento um amargo poema de amor que até as gotas da chuva caídas, naquela tarde de Inverno, sob a aba de uma parede da Silveirinha, não compreenderam ou não quiseram compreender.
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CINCO ESTRELAS
Álvaro levantou-se cedo, muito cedo. Ainda a noite não se havia dissipado por entre as brisas matinais. Era dia de matança do porco!
O pai, nos dias anteriores, perante um chorrilho contínuo de pedidos e uma série infinita de promessas do petiz, acabara por ceder e havia-lhe jurado que “sim senhor!”. “Ele já era um homenzinho e, pela primeira vez, ia ajudar na matança como se fosse um homem.” Na véspera, custara-lhe a adormecer e já se via enterrado na lama do curral, a puxar a corda e a arrastar o suíno pelo portal, a empurrá-lo para cima da mesa e a segurar-lhe uma perna suja e fedorenta, enquanto o tio Luís lhe metia a faca, abrindo-lhe um enorme e profundo buraco no pescoço do qual jorrava grande quantidade de sangue, muito vermelho e fumegante. Depois era um mar de labaredas, atiçadas por ramos de queirós muito secas e estaladiças, a queimar o pelo asqueroso e áspero do cevado! Ondas de chamusco propagavam-se nos ares, desmudando e peçonhentando a pureza ingénua e fresca da brisa matinal.
Até então, para ele, ali debaixo daquelas rochas, isolado numa ilha e, somente, com o mar a indicar-lhe um horizonte deserto e indefinido, o dia da matança era de medo, de receio, de consumição e, até por vezes, de choro. Assustava-se com o grunhir do suíno, chorava quando lhe metiam a faca, tapava os ouvidos para não ouvir os seus gritos agonizantes e temia as enormes labaredas das queirós incendiadas com pingos de petróleo durante o chamusco. Mas este ano tudo havia de ser diferente, pois já sabia muito bem que para comer um pedaço de linguiça com uma fatia de pão de milho, para trincar um torresmo com uma talhada de inhame, ou simplesmente para se deliciar com uma “niquinha” de toucinho na sopa de agrião, era necessária a imolação do cevado.
Entrou na cozinha fria, esconsa, mal iluminada, a cheirar a rama de cebola, a temperos e a vinha-d’alhos, passou umas gotas de água salobra que restava no lava mãos pela cara e saiu a correr para junto do curral, onde o pai e os outros homens já se afanavam nos preparativos para uma caça rápida e eficiente do porco. O bicho era malino e se, eventualmente, se escondesse no chiqueiro, nem o diabo de lá o tirava. Os homens, porém, já o haviam enganado com comida, tapando a porta com uma prancha de madeira, atirada de cima do pátio. Decerto que o malvado não havia de refugiar-se ali durante a luta titânica que se adivinhava. Mas agarrá-lo, prendê-lo, definitivamente, com uma corda, assapá-lo sobre a mesa, lavar-lhe o pescoço e enfiar-lhe a faca no cachaço seria cabo dos trabalhos.
Quando Álvaro se aproximou da cerca os homens haviam suspendido as hostilidades, dando alguns momentos de tréguas ao inimigo, aproveitando-as para passar de mão em mão uma garrafa de Cinco Estrelas, que os ia tonificando, amaciando, deleitando e aquecendo do frio da madrugada.
Álvaro aproximou-se do tio Luís, escalonado para matador, e segredou-lhe com ar ingénuo, aureolado de simplicidade:
- Ó tio, este ano, eu vou ajudá-lo a amarrar o porco e a aguentá-lo, enquanto o tio lhe mete a faca.
- Ai vais! – Exclamou o tio com um misto de gozo e espanto. – Claro! Já és um homenzinho! Pois bem, para o fazeres terás que tomar isto. – E enchendo um cálice com o que sobrava da Cinco Estrelas, passou-lho para as mãos.
Perante a hesitação do garoto, enquanto os outros homens se imiscuíam na espinhosa azáfama de caçar o suíno, insistiu:
- Bebe, bebe. Se não beberes não podes sequer tocar no porco.
Álvaro não hesitou mais. O sacrifício que lhe era exigido até nem seria muito grande. Aguardente devia ser uma coisa boa, porque era muito cara e só se bebia naqueles dias. Por isso, de imediato, pegou no cálice e, de um fôlego, enfiou o precioso líquido pelas goelas abaixo.
Foi tiro e queda! As pernas começarem a tremer-lhe e, à sua volta, tudo circulava e se envolvia numa espécie de neblina cinzenta. Sem demoras, estatelou-se definitivamente no chão. Foi o tio Luís, perante os protestos de recriminações dos outros, especialmente das mulheres, que o levantou e levou em braços para a cama da sala, aconchegando-o entre cobertores e almofadas.
Quando acordou a caçoila já havia esfriado, as morcelas já ferviam no caldeirão, o porco, pendurado na loja, aguardava que o “picassem” e até o irmão mais velho já lhe havia rebentado a bexiga.
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A LUZ À GENTE
Na Fajã Grande, antes da compra da Filarmónica “Nossa Senhora da Saúde”, no início dos anos cinquenta, todas as procissões que se realizavam nos dias festivos, com excepção da festa da Senhora da Saúde, para a qual era sempre convidada uma filarmónica doutra freguesia, eram acompanhadas de cânticos alternados com a reza do Terço ou com o repicar dos sinos. Assim acontecia nas festas de São José, da Senhora do Rosário, do Senhor dos Passos, de Santa Filomena e em muitas outras. Assim acontecia também na procissão da Senhora do Carmo, venerada como padroeira da igreja da Ponta.
Durante esta última procissão, num dos anos do início da década de cinquenta, decidiu o pároco introduzir alguns cânticos novos, na altura, tão em moda no Santuário de Fátima, até porque se tratava de uma festa que também se destinava a venerar a Mãe de Deus, embora sob outra invocação. Entre os cânticos importados do vasto reportório daquele Santuário Mariano, o reverendo decidiu-se por escolher e cantar o “Sobre os ramos da azinheira”. O povo pouco conhecedor daquelas modernices e mais habituado ao “Queremos Deus” e ao “Hóstia Santa”, teve algumas dificuldades em acompanhar a pedalada do pároco, mas lá ia cantando como podia e sabia, não sem atraiçoar, por vezes atroz e drasticamente, uma boa parte da mensagem textual dos versos em causa. Muito a custo lá ia acompanhando o prebendado, cantando um pouco desafinado: “Sobre os ramos da azinheira/Tu vieste, ó Mãe clemente/Visitar… “ e era aqui que começava o imbróglio.
O Antoniquinho, segurando uma vara do pálio que cobria o reverendo transportando o Santo Lenho, com a sua voz esganiçada, bem cantava: “Visitaaaaar a luz à gente…” O pároco logo o corrigia, em voz baixa, uma, duas, três vezes: - Ó paspalho, não é “a luz à gente”, mas “a lusa ” e insistia “Visitar a lusa.”
O Antoniquinho, no entanto, maneando a cabeça em sinal de rejeição, não lhe dava ouvidos e permanecia na sua: “Visitar a luz à gente/ Ó de quem és a padroeira.” Versos que, em sua opinião, caíam como mel na sopa, pois Nossa Senhora do Carmo, a padroeira da Ponta, era uma verdadeira luz que iluminava os caminhos de todos aqueles que imploravam a sua protecção e, sobretudo, dos que vestiam o seu hábito ou usavam o seu escapulário. E quando a procissão terminou, muito senhor de si, bem comentava para um e outro lado:
- Ó home essa! O Sinhô Pade parece qu’está mesme tole! Antão Nossa Sinhora de Fátima nan veie trazer a luz ao munde tode? E ui pastorinhos nan virim ua luz vinda do céu? E o Sinhô Pade a teimá, a teimá que Nossa Sinhora só tinha vinde vsitá ua tal Lusa, qu’ei até nim sei qu’inhé, nim nunca oivi falá.
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O CHARABÃ (VERSÃO ORIGINAL)
A abertura do troço da estrada que liga a ladeira do Pessegueiro aos Terreiros foi de enorme alegria para os habitantes da Fajã Grande. É que não mais percorreriam a pé a difícil e íngreme caminhada até ao cimo da rocha da Fajãzinha, quer nos dias da chegada do Carvalho, quer noutros em que por diversas razões, mormente por doença, tinham que se deslocar a Santa Cruz ou às Lajes.
Foram anos e anos a calcorrear veredas, a subir escarpas, a transpor ribeiras e a saltar grotões, numa árdua e difícil maceração. O percurso iniciava-se no cimo da Assomada, seguindo-se depois pelo Caminho da Missa. Até à Eira da Quada o trajecto era fácil, mas a descida da ladeira do Biscoito consubstanciava um perigo permanente! Mais difícil ainda era a passagem da Ribeira Grande sobretudo depois da derrocada da ponte e em dias de grande caudal. Apesar de povoada de “passadeiras”, temiam-se escorregadelas fatídicas e saltos em falso sobretudo por parte de mulheres e crianças. Os próprios animais tinham muita dificuldade em atravessá-la e eram obrigados por vezes a lutar contra a força da corrente. A seguir a Fajãzinha, com paragem no Rossio para saborear a água fresca e límpida que ali corria em duas bicas, dia e noite. Aí o percurso estava facilitado. Por fim a parte mais temida e perigosa - a subida da Rocha dos Bredos.
Assim, toda a população da freguesia desejava ardentemente o fim de tão acerbo suplício. Por isso, a chegada dos empreiteiros e construtores do troço da nova estrada entre o Porto da Fajã e o Pessegueiro e, mais tarde, entre este e os Terreiros foi um desvairamento. Mas a obra demorou anos. Por um lado as limitações e insuficiências da maquinaria disponível, por outro, a dificuldade em abrir brechas naquele alcantil escarpado, abrupto e pétreo que era a rocha da Fajãzinha.
Ao fim de alguns anos, no entanto, para gáudio de todos, a obra concluiu-se e a nova estrada que ligava a Fajã aos Terreiros foi inaugurada.
Nos dias e meses que se seguiram, porém, o desânimo voltou. Afinal a estrada estava ali, lisa e plana que era um regalo, coberta de asfalto e bagacina, mas de pouco ou nada servia. É que não havia automóveis na Fajã e ninguém dispunha de arte ou engenho e muito menos de dinheiro para comprar um. Assim uma estrada, na opinião de muitos, tornava-se inútil, até porque fora interdito o uso dos velhos e tradicionais corções puxados por bovinos. É verdade que havia algumas camionetas de carga e outros veículos em Santa Cruz, mas eram poucos e vinham sempre cheios. Carros de Praça eram apenas três. Fretá-los só em caso de doença grave e nem era para todos.
Perante este imbróglio, o Venceslau pensou comprar um automóvel. Serviria a freguesia e valorizava o seu estatuto de comerciante. Porém, bem-feitas as contas, considerou de todo impossível. É que os lucros do botequim não davam para meia missa.
Mas o sonho do Venceslau, no entanto, não desvaneceu de todo. Quando o Fra-gueiro regressou do Faial, onde se fora operar ao estômago, segredou-lhe:
- Homem, na Horta a moda agora é comprar automóveis e os tipos estão a vender carroças, charabãs e até coches ao preço da chuva. Vendem-nos aparelhados com animais e tudo! Um charabã, aqui, é que dava... Já que não podes comprar um automóvel, compra um charabã. Eu não trouxe um porque, como sabes, não tenho dinheiro. O pouco que tinha ficou todo no Hospital e na Pensão. Agora tu… Bem podias aproveitar...
Como o Fragueiro era sensato e de confiança, o Venceslau aceitou de bom grado a sugestão. Nos dias seguintes não pensava em mais nada. A ideia parecia-lhe genial, embora sofresse grande contestação por parte da mulher. Mas como ele é que mandava lá em casa, no Carvalho seguinte partiu para o Faial.
O Charabã foi recebido com foguetes, filarmónica e sinos a repicar. Até padre Silvestre acedeu ao pedido da Bernarda e, juntando-se ao povo que se aglomerava à Praça, preparou-se para a bênção de estola, caldeirinha e hissope em riste. O reverendo, inicialmente, havia recusado o pedido da consorte do Venceslau, dado o seu habitual afastamento das cerimónias e celebrações litúrgicas, agravado, vezes sem conta, com o facto de ela manter o botequim aberto durante a missa e, ainda por cima, lhe roer na casaca de vez em quando. Mas decidiu-se pela bênção. É que sendo ele provavelmente um dos mais frequentes futuros utilizadores do charabã, um pouco de água benta e um bocado de latim dariam mais segurança às rédeas do Venceslau ao descer a rocha da Fajazinha ou a Ventosa.
Mal a carripana emergiu na primeira curva da Assomada, por ordem da Bernarda, os foguetes começaram a estralejar, a banda a tocar a Maria da Fonte, os sinos a repicar e o povo a dar uma enorme salva palmas.
O Venceslau saiu do assento do cocheiro em ombros. Nem a Bernarda, com saudades acumuladas de um mês, o pôde abraçar. O povo acotovelava-se para ver de perto a engenhoca que mudaria o seu destino, dificultando a acção litúrgica do padre, que a muito custo atirava para cima do veículo e dos animais água benta e salmos: - “In êxitu Israel Egipto...” Depois, fazendo uma cruz, retirou-se, enquanto todos lutavam por ver de perto e tocar a nova coqueluche dos transportes fajãgrandenses.
O charabã era um veículo grande, de quatro rodas com raios de ferro, sobre as quais assentava uma estrutura de madeira, à qual se prendiam quatro varões que sustentavam o tejadilho – um toldo de lona esverdeada, já muito desbotado pelo sol e pela chuva. Os assentos eram quatro bancos, dois laterais e outros dois transversais, um logo atrás do assento do cocheiro e outro na retaguarda. Puxavam-no três muares devidamente identificados: a Mulata à esquerda, a Moirata ao centro e o Lopes na direita.
O resto da tarde foi de regabofe no botequim onde a Bernarda, na ausência do Venceslau, pontificava. Uma viagem ao Porto para convidados e a garotada toda a correr atrás do charabã. Garrafas de anis, genebra e aguardente a abrirem-se, pirolitos e figos passados para a miudagem, enfim, uma comemoração de arromba. Depois, a Bernarda, transformando o balcão ainda sujo das bebidas em secretária, deu início às marcações com reservas e tudo. A primeira semana em poucos minutos esgotou. Um sucesso!
No dia seguinte às seis da manhã, o charabã partia na sua viagem inaugural. Os candidatos a passageiros eram muitos e excediam, de longe, a lotação. O Venceslau não quis ficar mal e, confiando excessivamente na força dos muares, acrescentou mais três bancos transversais, o que quase permitiu duplicar a lotação da carripana, enchendo-a como sardinha dentro de lata.
Envergando o chicote e sentando a seu lado a Bernarda, que decidiu fechar o botequim, já que não trocava aquela primeira viagem por nada deste mundo, o Venceslau deu o sinal de partida, proferindo a senha de ignição:
- Salta mula lá p’ra diante mula!...
E batendo ao de leve nos três muares, iniciou o périplo, com dezenas de mirones a ver aquela primeira partida, apesar de a manhã ainda não se ter clarificado de todo.
Até à rocha da Fajãzinha a viagem correu muito bem, pese embora os animais começassem a suar e a escumar em demasia. Ainda a rocha não ia a meio e a Mulata, depois de levar uma valente chicotada, porque começava a atrasar-se, ajoujou-se, perante um grito de susto e de espanto da comitiva. O Venceslau, querendo mostrar a força e valentia da mula, ferrou-lhe nova chicotada, mas com tal força que a pobre, muito a custo lá se levantou. Mas pouco depois, quase desfalecida, voltava a ajoujar-se por completo, arrastando consigo a Moirata.
O Venceslau ficou lívido ferrando nova e mais pesada tareia nas mulas indefesas.
Tal violência provocou grande contestação entre os passageiros. Alguns apiedando-se dos animais desceram do veículo, caminhando a pé. Dois homens vieram levantar as mulas, comprometendo-se a empurrar o charabã, se necessário, até ao cimo da rocha.
Ao chegar aos Terreiros, como a estrada fosse plana e a Mulata e a Moirata já estivessem mais descansadas, o Venceslau deu ordens para que todos subissem. A viagem correu normalmente até à Casa do Estado.
Aí procedeu-se a uma paragem devidamente programada. Era metade do caminho entre a Fajã e Santa Cruz. Pessoas e animais deviam abastecer-se e descansar por alguns minutos. Pouco depois reiniciou-se a viagem, que continuou calma e tranquila, apesar de lenta, até ao alto da Ventosa. Aí o coração do Venceslau deu um pulo. Não se contendo, segredou para a Bernarda:
- Isto agora é canja! É sempre a descer até Santa Cruz. Vamos andar depressa porque temos que recuperar o tempo perdido.
Os detrás bem gritavam:
- Vai devagar, Venceslau, que as mulas não aguentam!
Mas ele nem lhes dava ouvidos.
De repente, ao rodar uma curva junto à relva do Mantes, a Mulata, sem que ninguém o esperasse, ajoujou-se de novo e caiu, arrastando desta feita a Moirata, o Lopes, o charabã e todos os seus ocupantes. É que com o balanço a viatura desprendeu-se dos temões e amarras que a prendiam aos muares, rolou pela borda da estrada e, dando duas cambalhotas, foi parar à relva assustando umas vacas que ali pastavam mansamente.
O pânico foi geral entre os acidentados. Os feridos foram poucos e os achaques leves. Para além do susto, apenas umas arranhadelas e algumas mâmulas. O charabã ficou completamente desfeito.
Uma camioneta de carga que passou, horas depois, com alguns trabalhadores, recolheu os sinistrados e trouxe-os de regresso à Fajã, perante protestos e lamentações, enquanto a Bernarda não cessava de atirar culpas ao Venceslau, que maldizia a sua sorte.
O charabã ficou a apodrecer por ali. A Moirata e o Lopes foram vendidos para as Lajes. A Mulata de tão velha e fraca que era, ninguém a quis comparar. Morreu pouco depois. O Venceslau e a Bernarda venderam o botequim e partiram para a América.
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SÃO CORNÉLIO
Todos os anos, no mês de Setembro e após as prolongadas e danosas secas de verão que tanto prejudicavam os campos e as sementeiras, realizavam-se, as “Rogações” ou seja procissões que percorriam algumas das ruas da freguesia, durante as quais, recorrendo à invocação e intersecção dos santos, se implorava a benevolência e a protecção divinas, a fim de que, pura e simplesmente, chovesse. Assim, os produtos agrícolas, semeados e plantados nos campos, de tão raquíticos e definhados que estavam, haviam de tornar-se viçosos verdejantes e, consequentemente, mais produtivos.
Saídas da igreja, estas procissões seguiam, todos os anos, os mesmos trajectos e cumpriam, com rigor quase milimétrico, os seus percursos. Durante a caminhada cantava-se a Ladainha de todos os Santos, uma prece da Igreja Católica dirigida a Deus, mas com pedidos de intercessão à Virgem Maria, aos Anjos e aos Santos mais importantes da Cristandade. Assim e durante a recitação ou canto da Ladainha eram invocados, para além de Nossa Senhora, os Anjos, os Patriarcas, os Profetas e alguns dos Santos que constam no Martirológio da Igreja, a saber: os Apóstolos e Discípulos de Jesus, os Mártires, os Bispos, os Doutores da Igreja, etc. Após a invocação dos santos, a Ladainha terminava com uma série de súplicas a Deus, a fim de que Ele, ouvindo as orações e preces dos fiéis, lhes concedesse os seus mais legítimos desejos e lhes satisfizesse as mais urgentes necessidades. As normas litúrgicas, no entanto, permitiam que, relativamente aos Santos, se pudessem acrescentar outros nomes, o mesmo acontecendo no que às invocações dizia respeito.
Era isso que fazia o pároco, até por que, sendo o giro da procissão bastante longo, a ladainha tal com constava no “Liber Usualis” não chegava para meia missa. Ora entre os nomes que o prebendado, todos os anos, acrescentava aos constantes do cânon, era o de São Cornélio, papa e mártir que governou a Igreja Católica no séc. III, num dos mais difíceis papados da História, embora, também, num dos mais curtos.
Cismou pois o pároco de que havia de acrescentar à lista dos “Omnes sancti mártires” e logo a seguir aos “Sancti Gervasi et Protasi” a invocação de São Cornélio, santo que, na opinião do clérigo, possuía um currículo muito superior ao de outros que constavam oficialmente na ladainha, dado que o Santo, para além de mártir, tinha sido teólogo, pregador, bispo e papa. Ora acontecia que o pároco iniciava o canto da ladainha logo ao transpor do Guarda-Vento, com o “Kyrie eleison” e como a procissão seguia sempre com o mesmo ritmo, as invocações eram cantadas, todos os anos, junto às mesmas casas e sempre em frente às mesmas portas. A invocação de S. Cornélio não fugia à regra. Aquilo era certo e certinho! Sempre que a procissão rondava a casa do Sabino, o pároco, em frente ao portão de entrada, parecendo até que elevava mais a voz, atirava para os ares: “Sancte Cornelius”, ao que o povo humilde e contrito respondia em uníssono “Ora pro nobis”.
O Sabino ouviu um ano, dois anos e começou a não achar muita piada àquilo, até porque já há muito desconfiava que, pelos recantos da freguesia, corriam, à boca pequena, uns estranhos e pouco abonáveis mexericos relativamente à fidelidade da sua consorte. Uma vez ou duas… não se dava por nada. Agora todos os anos, em frente à sua porta, aquela invocação tão estranha e esquisita… aquele santo maldito cujo nome fazia lembrar… Ai dava que pensar, dava. Não seria que o pároco… Não se conteve o Sabino e, em vez de se calar, perante a chacota de todos, começou a indignar-se, a revoltar-se e a ameaçar tirar razões com o pároco. Mas pior do que isso, cuidando que assim publicamente defendia a sua honra e a dignidade da sua consorte, indignou-se em plena Praça, barafustou no Descansadouro e foi tirar razões com o pároco, precisamente à hora da missa. Mas o prebendado retorquiu-lhe que nada podia fazer no sentido de alterar as normas litúrgicas impostas pelo Senhor Bispo ou sequer mudar o giro da procissão, contrariando as tradições e os costumes da paróquia. Além disso, fazendo-lhe uma síntese da vida e obra de São Cornélio, terminou, concluindo que “era uma das maiores figuras da Igreja Católica de todos os tempos, muito para além do actual papa, Pio XII”.
De nada serviram as explicações do pároco, por que mesmo assim, não se calou o Sabino. Pelo contrário, mais barafustou, mais reclamou, mais se zangou, mais se indignou e mais atirou ao ar a displicência do pároco, aqui, acolá e além, que por fim já não era apenas o reverendo a cantar-lhe o nome do santo mártir, uma vez por ano, em frente ao seu portão. Era um chorrilho diário, um coro contínuo, uma revoada permanente de vozes de quantos lhe passavam em frente à casa ou que simplesmente com ele se cruzavam no caminho a cantar-lhe, em alto e bom som: “Sâo Cornélio, ora pro nobis”.
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PESCAR SARGOS
Na Fajã Grande era costume dizer-se que quem dormitava por aqui ou por acolá, ou seja, fora do local e das horas em que o devia fazer e que, consequentemente, demonstrava evidentes sinais de fraqueza, de fragilidade e até de velhice, estava a “pescar sargos”, talvez devido ao facto de que a referida pesca, sendo, por vezes demorada e infrutífera, também, eventualmente, fosse cúmplice do sono.
Verdade é que ninguém, na Fajã, gostava de ser acusado de “pescar sargos”, nem de ser gozado por tão vergonhoso vitupério, pois era sinal de preguiça, de falta de capacidade para trabalhar e, sobretudo, sinónimo de debilidade. Era, de facto, um grave insulto, uma inaceitável ofensa, um imperdoável ultraje.
Certa noite, os homens, como habitualmente, faziam serão no Café da Chica, que de café não tinha nada, a não ser o nome. Dos presentes, uns jogavam à sueca num pequeno cubículo que havia nas traseiras. Outros, a maioria, debruçavam-se ou encostavam-se ao balcão, conversavam em voz alta, discutiam, apostavam, berravam, falavam na vida alheia, em suma, faziam uma algazarra que metia medo. Um ou outro ia bebendo um copo de anis, um traçado, uma cerveja ou uma laranjada. Quase todos fumavam, uns Quarenta e Três, outros Santa Justa e, os mais velhos, Raio do Sol. Sentados num banco, ao lado esquerdo da porta de entrada, alienados de toda aquela barulheira, meu pai e meu tio António Joaquim dormiam calma e profundamente.
Eis senão quando o Justino, pretendendo apreciar as reacções dos dois irmãos quando acordassem de caniço em riste, saiu da loja e voltou, pouco depois, trazendo duas canas, colocando uma na mão de meu pai e outra na de meu tio, simulando que eram caniços de pesca e que os dois estavam ali a “pescar sargos”. De seguida, sacudiu-os, gritou-lhes aos ouvidos e acordou-nos simultaneamente, enquanto os outros observavam atentamente o “fandaine”.
E não é que foi o bom e o bonito. Meu tio levantando-se de rompante, esbracejou, gritou, berrou, barafustou, praguejou e, pegando na cana com ambas as mãos, levou-a aos joelhos, partiu-a em mil pedaços, atirando-os à cara dos seus algozes, que riam às gargalhadas. Depois, levantando-se, saiu porta fora a lançar imprecações e insultos em todas as direcções. Que fossem todos para o raio que os parta, aqueles almas do diabo, aqueles “sanababichas”. Eram todos uns grandes “filhas da manha”!
Meu pai também acordou. Permanecendo sentado no mesmo lugar, em silêncio, viu e ouviu tudo. Depois de meu tio sair, pegou na cana e disse simplesmente:
- Já que me deram o caniço vou aproveitar para continuar a “pescar sargos”.
E fechando os olhos, voltou a adormecer, perante a admiração e o espanto de todos.