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A ENCOMENDA

Sexta-feira, 12.10.18

O aviso amarelo chegou cinco dias após o Carvalho ter demandado a ilha e foi recebido, lá em casa, com enorme alarido e desmesurado alvoroço. Vinha aí uma encomenda da América! Ai vinha, vinha!...

Na manhã seguinte meu pai, aviso no bolso, bordão atravessado sobre os ombros, froca a tiracolo, com um parco farnel numa das mangas, partiu, muito cedo, para as Lajes. Tão cedo que ninguém lá em casa deu por isso, a não ser a minha mãe que se levantou para ir à cozinha aquecer um caneco de alumínio, bem cheio de café, sobre o fogão da luz, que ainda era noite escura. Bem precisava o meu progenitor de forças para fazer tão longa caminhada!

Na véspera, meu pai deixara uma boa parte do dia planeado e todas as tarefas muito bem aclaradas: - O António e eu íamos buscar a Benfeita e os bezerros à Pedra d’Água, enquanto o José limpava o palheiro. Minha mãe tirava o leite à vaca e a Maria ia levá-lo à máquina. Terminada a escola iam todos sachar o milho da Bandeja, que ele quando chegasse haveria de lá ir ter para nos ajudar.

Todas as tarefas, com exceção do milho da Bandeja, foram eximiamente executadas com entusiasmo e competência, mas nenhum deixou de pensar na encomenda, durante todo o dia, por um único momento que fosse. Na verdade sachar o milho da Bandeja era o que mais nos incomodava. Não fosse meu pai chegar a casa com a encomenda e nós não estarmos presentes para a abrir. Por isso, despachamo-nos do milho da Bandeja atabalhoadamente e, cedo, viemos esperar meu pai, sentadinhos na soleta da porta da sala. Uma encomenda da América era de se lhe tirar o chapéu. Não se podia perder por nada deste mundo o momento da abertura. Cada um já se imaginava com um vestido ou uma camisa nova, uns alvarozes, uma froca, umas calças de angrim, um beltro, um caneta de luzinha, lápis de cera e, quem sabe, talvez um brinquedo e muitos candis. Bem desejávamos ir esperar meu pai ao Cimo da Assomada, à Eira da Cuada ou, se pudéssemos, à Ribeira Grande mas… a minha mãe não deixou.

Finalmente, quase ao fim da tarde, meu pai chegou e trazia às costas uma enorme saca branca, com o seu nome escrito a letras azuis, muito grandes, com muitos selos, etiquetas verdes, carimbos pretos e roxos e com a direcção muito certinha. Era remetida de Turlock, Califórnia pelo tio Francisco. Meu pai mal a acabara de colocar no meio da sala e nós atirámo-nos a ela que nem Santiago aos mouros, perante os protestos da minha progenitora que com a tesoura da costura tentava, com dificuldade, abrir o saco sem o danificar, pois daria muito jeito e serviria perfeitamente para levar a moenda ao moinho de tio Manuel Luís. É que o saco que ela usava para levar o milho e trazer a farinha depois de moída, já tinha mais remendos do que lona original. De seguida, com cuidado e perante a nossa exasperada agitação, minha mãe foi tirando as peças de roupa, uma por uma. No fundo do saco, dois pares de sapatos, muito velhos e gastos mas que serviriam ao meu pai, para usar aos domingos. Dentro destes, umas canetas que já nem escreviam, vários lápis usados, borrachas e outras bugigangas. Minha mãe, sempre perante a nossa inquietação, lá foi estendendo tudo pelo chão. Só depois de tudo retirado do saco e de o revirar pelo avesso, não tivesse algum dola lá dentro, deu ordens para que cada ume maneira agarrasse no que quisesse, no que lhe apetecesse ou simplesmente no que os outros deixassem. A sala exalava agora aquele cheirinho tão típico da roupa americana. Parecia que dentro da saca se havia derramado um frasco de perfume. Nós embrenhados não apenas na escolha e na prova mas sobretudo na pesquisa. É que nos bolsos dos casacos e das calças, ou embrulhados em lenços mas muito bem escondidinhos, vinham, por vezes, “candis”, “pinotes”, rebuçados, chocolates, canivetes, sabonetes e frascos de perfume, alguns até vazios. Desta vez, para desânimo nosso, tudo vazio. Apenas roupa, mais roupa, dois pares de sapatos muito usados, um beltro de fivela amarela e pedaços de pano muito coloridos. Mas cheirava tudo tão bem!

Uma vez tudo virado e revirado, vasculhado e apalpado, chegou a hora de dividir o tesouro. Primeiro minha mãe selecionou e guardou as roupas que serviam, com mais ou menos rigor, em cada um e poucas eram. A partir daí a ordem era cada qual ficar com o que quisesse e lhe apetecesse. Mas a minha mãe havia de supervisionar tudo. Foi um ver se te avias: pega, puxa, larga, tira, deixa, mostra e toma. Foi tal escolher e, de seguida, fazer a prova. Sobre as ordens e orientação da minha progenitora, cada qual ficou com o que melhor lhe serviu, embora desajeitadamente, muito desajeitadamente.

Depois de tudo acertado e dividido e da minha mãe guardar o que julgara melhor e de se retirar para a cozinha, decidimos que cada um havia de vestir o que lhe ficasse melhor e iriamos à Fontinha, mostrar à avó e às tias aquelas maravilhas da alta-costura americana. O José vestiu um saiote, que lhe arrastava pelos pés, a Maria um vestido muito largo e comprido, apertado à cintura com um cinto preto, o António umas calças verdes tão largas que tinha que as segurar constantemente com ambas as mãos e eu com um vestido de menina e uma camisa de seda cor-de-rosa por cima. Lá fomos todos vaidosos e contentes com tão adequadas e estéticas vestimentas, todos muito felizes, juntinhos e de mãos dadas. Ao rodar à Praça havíamos de encontrar o Maurício que ao ver aquele quadro estapafúrdio desata numa enorme gargalha e a fazer pouco de nós.

A Maria não esteve com meias medidas e, aproximando-se dele, apontou-lhe o dedo e atirou-lhe à cara:

- Estas a rir porque estás roído de inveja!

E seguimos o nosso caminho, muito felizes, porque uma encomenda vinda da América não se tinha todos os dias.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

SAN FRANCISCO

Segunda-feira, 03.09.18

I

 

Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não dessem pela abalada e deu consigo quase tresloucada, no meio da rua, imersa numa madrugada desentendível e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.

Era Maio, estava muito frio mas a noite clara. Júlia cobriu os ombros quase nus com o xaile de lã que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de armas, prolongando-se por aqui e por além, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, estampando-se em eco nas rochas das Covas e das Águas, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante,

Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do mar, desatou numa correria louca pela canada que dava para o Mimoio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes altíssimas a vedar pequenos cerrados de milho e estreitas belgas a abarrotar de batata-doce e de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-se por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.

Desde há muito que Júlia e António se amavam como ninguém, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitetando construir com harmonia e sublimidade, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam talvez até a impediriam quando soubessem que ali havia muito amor, que havia uma grande paixão e que conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Fora por isso que ele tomara aquela abruta e radical decisão, por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam sempre de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e que por isso mesmo nunca haviam de autorizar aquele casamento. Tudo isso levara a que ele, o seu António, decidisse partir, em busca da aventura, do sucesso, do dinheiro necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia nunca concordara com aquela partida para tão longe, para a Califórnia, naquelas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.

Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projéteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta e que se cruzavam no ar com as respostas vindas da embarcação. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar incerto mas contínuo das balas dos azougados artilheiros. Sabia-se que em tais situações a ordem era atirar a matar.

Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, agora do alto do Mimoio, no sombrio da noite, clarificado momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, àquele terrífico e dramático espetáculo. Apenas uma certeza: o seu António estava ali mas o Senhor Espirito Santo, para quem se voltava com promessas e orações, havia de o salvar.

…E de repente, no meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma pequenina e ténue réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim e, agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Em seguida, saltaram os outros. De imediato o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste. O seu António estava salvo, a caminho da Califórnia!

 

 

II

 

 

Tia Júlia chegou a casa muito tarde, já noite escura. Vinha da novena das almas. Não que a cerimónia litúrgica, realizada na igreja paroquial, demorasse muito, mas por começar, como era hábito, a horas bem tardias. Sim, porque às nove da noite, ali na Fajã Grande, em pleno mês de Novembro, há muito que era escuro, que o Sol desaparecera lá para bem longe, para o fim do mundo, para o infinito, onde tudo era um mistério escuro e desconhecido. Tia Júlia apenas sabia que era naquela direção em que o Sol se punha, que ficava a Califórnia… A Califórnia dos seus sonhos, dos seus segredos, das suas mágoas, das suas tristezas, do seu sofrimento, da sua miséria, da sua solidão e, sobretudo, daquele enigmático luto que desde há mais de sessenta anos carregava sobre si.

Entrou pela porta da cozinha, que a da sala já não abria nem fechava. Emperrara por completo, a maldita, desde aquele dia em que, muito aflita, a fora destrancar para receber a visita do Senhor Espírito Santo, obrigando a Coroa a entrar pela porta da cozinha. Um pecado de que implorava perdão todos os dias e que a havia de amarfanhá-la para sempre.

De cansada por subir aquele martírio que era a Fontinha, sentou-se num banco, junto à velha e desconjuntada mesa da cozinha, apoiando aí os dois braços devidamente cruzados e sobre eles o rosto quase tapado com um lenço em forma de bioco, a cair-lhe sobre os olhos. Para quê acender a candeia se o sono era tanto e já nada havia para fazer?

… Num de repente, sentiu-se a olhar para longe, para muito longe, para onde o Sol caminhava todos os dias, onde havia uma cidade… Era uma cidade enorme, com prédios altíssimos, ruas muito estreitas e apertadas a abarrotar de pessoas, a empurrarem-se umas às outras. Um vento fortíssimo soprava com rugidos roufenhos, ensurdecedores. Gotas gigantes caíam sobre os edifícios e muitos deles explodiam e desmoronavam-se. A cidade cobria-se de nuvens negras de pó e cinza e o céu transformava-se num tenebroso manto escuro, ora a clarear-se, repentinamente, com o faiscar impertinente dos relâmpagos ora a toldar-se, cada vez mais, com o ribombar aterrador dos trovões. A chuva caía forte, diluviana e destruidora. A enorme cidade, agora parecia quase deserta: as pessoas haviam-se escondido e abrigado em todos os resguardos mais recônditos, com medo da chuva, da explosão dos prédios e do desabar das nuvens. Um vento muito frio percorria tudo, entrava nas casas, levava as roupas penduradas nas varandas, formava rolos de espuma, sobre os quais voavam pássaros estranhos e agoirentos. A chuva caía em gotas gigantes, sobre a forma de pesados pedregulhos, destruindo os poucos prédios que haviam sobrado, transformando-os numa poeira que se espalhava pelas ruas, transformando-as em reluzentes riachos, sem árvores nas margens. Já ninguém existia na cidade. Todos os prédios haviam sido destruídos e as ruas desfeitas. Não ficara pedra sobre pedra. Apenas um enorme tapete preto, debruado a amarelo, com quatro gigantescos castiçais com velas a arder nas quatro extremidades. No meio, sobre o tapete um catafalco e sobre este um gigantesco caixão, todo forrado de negro, com um pequeno cruxifixo em cima e uma faixa branca no lado com meia dúzia de palavras, com as letras tão trémulas, tão desfeitas e tão amareladas que nem se entendiam. Ao longe, um leve dobrar de sinos… Três fortes pancadas soaram na porta. Era a Olinda, a filha da comadre Inácia. Desde há muito que lhe prometera fazer umas cortinas para a janela da sala. Seriam de renda, com desenhos de flores e de frutos, com letras e palavras evocando a felicidade, a sorte e a fortuna. A tia Júlia havia de as colocar na janela da sala no dia em que o Senhor Espírito Santo voltasse a sua casa…

Ao meio da tarde a vizinha Jacinta, que na noite anterior lhe fizera companhia desde a igreja até à porta de casa, perante o estranho e misterioso silêncio que emanava do pobre e humilde casebre, bateu-lhe à porta. Como ninguém respondesse, decidiu-se por abri-la. Tia Júlia debruçada sobre a mesa da cozinha estava morta.

Quando mais tarde a despiam para lhe colocar o corpo inerte entre os velhos e rotos lençóis que a haviam de embrulhar na sua caminhada para o cemitério, encontraram num dos bolsos do velho avental que sempre trazia vestido, muito amachucado, muito amarelado, muito amarrotado, muito regado com lágrimas de dor, muito embalado em suor de sofrimento e angústia, aquilo que parecia ser um envelope vindo da América há muitos anos. Dentro estavam duas cartas: a primeira e única que o seu António lhe escrevera e uma outra que a Tia Júlia nunca percebera e rezava assim:

“San Francisco 14 November, 1906

Mss Júlia Silva

We are sorry to report that António Chibante was found dead among the countless victims of the great earthquake that occurred on April 18, in this city of San Francisco. We further inform that since he had no insurance there will be no right to any compensation.”

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publicado por picodavigia2 às 00:09

O SENHOR DA PEDRA

Domingo, 25.06.17

Minha mãe contava uma estória muito antiga que ouvira contar a tia Fraga, uma velhinha que morava numa pequena casa em frente à da minha avó. Pelos vistos tratava-se duma estória que tia Fraga, em criança, ouvira contar às mulheres de uns pedreiros naturais de Vila Franca, na ilha de São Miguel e que se haviam fixado na Fajã Grande por altura da construção da igreja e das casas do Espírito Santo.

Contava então tia Fraga que há muitos anos atrás, na praia do Corpo Santo em Vila Franca do Campo, andavam uns pescadores a lançar as redes quando encontraram um caixote muito grande. Reparando melhor viram que vinha alguma coisa escrita. Mostrando-o a quem sabia ler, descobriram que nas tábuas estava escrita a seguinte mensagem: “ Para a Misericórdia de Vila Franca do Campo”

Foram logo entregar a caixa a quem de direito e procedeu-se à sua abertura. Todos ficaram muito surpresos com o conteúdo: era uma imagem do Senhor Jesus, sentado numa pedra, muito semelhante o Senhor dos Passos, aqui da Fajã Grande.

Toda a gente da vila ficou muito admirada pois ninguém tinha feito tal encomenda, por isso consideraram que era um milagre e guardaram a imagem que passou a chamar-se Senhor da Pedra, numa capela da igreja. Ainda hoje concluía minha mãe, o povo continua sem se saber quem mandou aquela imagem para Vila Franca, mas o que é certo é que a imagem do Senhor da Pedra trazida pelo mar queria mesmo ficar em Vila Franca do Campo.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

FEITICEIRAS

Terça-feira, 10.01.17

Conta-se que antigamente havia um homem que ia levar as vacas a uma relva que tinha no Curralinho. Dizia-se que lá aparecia uma feiticeira mas o homem não acreditava nessas patranhas.

Certo dia, porém, quando regressava a casa, depois de tapar o portal da relva para que as vacas não saíssem durante a noite, viu aproximar-se um vulto de mulher que lhe pediu para lhe dar um pouco de leite que ela estava cheia de sede. Mas o homem disse-lhe que não lhe podia dar leite porque tinha ordenhado as vacas antes de sair de casa e naquele momento elas ainda não tinha leite no mojo que pudesse tirar.

A mulher, enfurecida, respondeu:

 - À manhã falta lhe acharás.

O homem regressou a casa, deitou-se, adormeceu e nunca mais ligou ao que aquela estranha mulher lhe tinha dito.

Mas no dia seguinte, foi buscar as vacas e quando ele regressou com elas ao palheiro foi para as ordenhar, e até vaca melhor, a que dava sempre mais leite estava com o mojo seco e sem pingo de leite. Apesar de tudo da outra vaca ainda conseguiu tirar um pouco de leite. A sua mulher ao ver as latas quase vazias perguntou-lhe o que se tinha passado, porque é que naquela manhã havia menos leite que nos outros dias. O homem respondeu-lhe que tinha sido uma das vacas que tinha dado um coice na lata e virado todo o leite. Só tinha ficado aquela nica.

No dia seguinte o homem voltou a ir levar as vacas à relva, desta feita para os lados do Vale do Linho. Pelo caminho ele voltou a encontrar a mulher e, como a vaca continuasse com o mojo seco e sem pingo de leite, disse-lhe:

- Ou tu devolves o leite à minha melhor vaca ou eu dou cabo de ti, - E começou a bater nela com o bordão. Tantas pauladas lhe deu que por fim ela já suplicava para a deixar que a sua vaca havia de ter novamente leite quando fosse a ordenhá-la.

Conta ainda a estória que no dia seguinte o homem até teve que ordenhar a vaca pelo caminho duas vezes pelo caminho antes de chegar a casa, pois era tanto o leite que ela tinha no mojo que o derramava pelo chão.

Conta-se também que a partir de então o homem começou a acreditar em feiticeiras.

 

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BULOVA

Domingo, 11.12.16

O meu primeiro relógio de pulso foi um Bulova. Tinha eu onze anos. Chegou muito bem embrulhadinho e escondido entre peças de roupa numa encomenda que veio da América. O embrulho vinha com o meu nome e, sem sombra de dúvida, eu era o destinatário legítimo daquela deslumbrante e maravilhosa máquina.

Regozijei de contentamento. Ter um relógio de pulso era coisa rara na freguesia, sobretudo entre as crianças. Muito contente, bem o quis levar para a escola no dia seguinte. Impossível:

- Para dar cabo dele! Nem pensar. – Decretou minha irmã e acrescentou:

- Além disso, usar um relógio de pulso e andar descalço é uma vergonha. Todos se iam rir de ti.

Na verdade, na Fajã Grande, naqueles tempos, dizia-se que não ficava bem usar um relógio de pulso e andar descalço. Era uma tremenda contradição. Por isso passei a usar o meu Bulova somente aos domingos e na hora da missa, único momento da semana em que andava calçado. Apenas no setembro seguinte, quando embarquei para São Miguel a bordo do Carvalho Araújo, a fim de estudar no Seminário Menor, passei a usar o meu Bulova durante todos os dias, porque a partir de então andava calçado.

O Bulova, no entanto, era de segunda ou terceira mão e muito usado pelo que passado algum tempo avariou. Foi o Senhor António Lourenço que me o consertou quando regressei à Fajã, no verão seguinte. Além disso no Seminário não tive grande sucesso com ele, chegando a ser alvo de chacota, porquanto, devido à sua pequena dimensão e ao seu formato retangular, foi considerado por quantos expertos nesta matéria o viam, um relógio de senhora.

- De senhora qual o quê! – Retorquiu o Senhor António Lourenço quando, depois de consertar, o coloquei perante tal imbróglio e esclareceu:

- Olha, tens aqui um bom relógio, um Bulova. Os relógios Bulova são de altíssima precisão e de excelente qualidade. São dos melhores que há no mundo.

Na verdade, algum tempo mais tarde, soube que Bulova é uma indústria de relógios de pulso fundada em 1875 por Joseph Bulova, um imigrante da Tchecoslováquia que em 1870 foi morar nos Estados Unidos. Joseph trabalhou por cinco anos na empresa Tiffany e Young & Ellis. Aos 23 anos de idade abriu uma joalharia de pequeno porte em Maiden Lane, em Nova York, num local próximo da Wall Street, onde se concentrava a indústria joalheira da cidade.

Concentrando o seu estoque em relógios de mesa e de bolso todos de alta qualidade, Bulova prosperou e suas vendas cresceram rápido nos primeiros 35 anos de sua empresa.

Com o crescimento de sua empresa, Joseph mudou sua sede para um endereço de muito prestígio, o número 580 da 5ª Avenida, onde pouco tempo depois instalou o Observatório Bulova, o primeiro observatório instalado no alto de um arranha-céu, comandado por um matemático da época que registrava todas as suas observações eletronicamente. Tratava-se de uma estratégia muito avançada para aquela época. Posteriormente as observações recolhidas eram enviadas para um cronógrafo instalado a dezenas de metros abaixo, orientando todos os relojoeiros de sua empresa na manutenção de uma hora precisa.

E verdade é que o meu Bulova nunca mais avariou e durou muitos anos.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A DÉCIMA PRAGA DO EGITO E A CRUZ VERMELHA

Sábado, 05.11.16

Muitas das estórias que as nossas avós nos contavam nos nossos tempos de criança eram retiradas da Bíblia, embora lhe acrescentassem alguns pormenores ou fizessem algumas alterações, de acordo com os usos e costumes da freguesia, na altura. Uma dessas estórias, das mais emotivas e até arrepiante, era a das pragas do Egito, nomeadamente da décima praga – a Morte dos Primogénitos.

Contava a minha avó, depois de rezado o terço em família a que acrescentava uma série de Padre Nossos por alma dos falecidos e pela saúde dos vivos, que no tempo de Moisés, que era um homem bom e temente a Deus, o povo egípcio fora castigado com nove pragas a fim de que o Faraó se condoesse e libertasse o povo hebreu, deixando-o partir para a terra prometida. Mas o Faraó não se rendeu a tantas calamidades e sobre o seu povo havia cair a maior e a mais dramática praga de todas, a qual atingiria fatalmente o faraó e todos os egípcios: a morte de todos os primogénitos.

Assim, certo dia, Deus, cansado de tanta iniquidade e maledicência do faraó, chamou Moisés e disse-lhe:

- À meia-noite eu sairei pelo meio do Egito e todo o primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito de Faraó, que haveria de assentar-se sobre o seu trono, até ao primogênito da serva que está detrás da mó, e todo o primogênito dos animais. E haverá grande clamor em toda a terra do Egito, como nunca houve semelhante e nunca haverá.

Mas havia uma única exceção à tal mortandade, pois Deus ainda disse a Moisés:

- Mas entre todos os filhos de Israel nem mesmo um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais, para que saibais que o Senhor fez diferença entre os egípcios e os hebreus. Na verdade Deus faz diferença entre justos e ímpios, entre Seus servos e aqueles que servem a outros deuses, ou às suas próprias paixões.

Então Deus marcou o dia e a hora em que seria enviada a décima praga e deu instruções a Moisés, a respeito dos hebreus assim como o que deveriam fazer para escapar à matança dos primogênitos. A ordem era que cada família hebreia deveria escolher um cordeirinho sem mácula, um macho de um ano. Durante a tarde e à mesma hora todos os cordeiros seriam sacrificados e a carne comida à tardinha, antes da partida. Mas antes, com o sangue do próprio cordeiro cada qual deveria pintar uma cruz na ombreira da porta da sua casa. O cordeiro inteiro seria assado no fogo e comido com pães ázimos ou seja com pão sem fermento, juntamente com ervas amargas. O que sobrasse da refeição seria queimado no fogo. Já os sacos a tiracolo, sapatos nos pés e cajados nas mãos, os hebreus deveriam comer o cordeiro apressadamente, para logo em seguida partirem. Durante a ceia o anjo do Senhor passaria por todas as casas matando os primogénitos. Porém nas casas assinaladas com a cruz vermelha, o anjo passaria à frente e os primogénitos dos hebreus seriam poupados e salvos da morte.

Todo o Egito foi atingido pela praga da morte dos primogênitos e mesmo nas casas em que o primogênito já havia morrido, o segundo filho foi morto. Até os egípcios que moravam noutras terras mais distantes foram atingidos e os seus primogénitos igualmente mortos.

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publicado por picodavigia2 às 02:33

O DIA DE APANHAR O MILHO DA FONTINHA

Terça-feira, 18.10.16

Acordei ainda era muito escuro, noite cerrada! Seriam cinco… Seis… Seis e meia... Era outubro e amanhecia tarde. Atirei de supetão o grosso cobertor em que me enroscara toda a noite, sobre o colchão de casca e pragana, e desatei a correr pela sala fora até à cozinha, escura como breu. Já todos haviam saído, apenas minha irmã, ainda em naitigão e muito despenteada e sonolenta, atiçava as labaredas de lume. A cozinha mais parecia um cerrado acabado de lavrar por arados minúsculos. Os garranhos de incenso estavam verdes como cubres. Muito a custo, minha irmã partia-os um a um, ao mesmo tempo que os enfiava debaixo da chaleira, assente num tripé de ferro. Depois de muito soprar o lume tímido e azulado pegou, exalando um fumo ácido e provocante. Minha irmã chorava. Dos olhos inchados saíam-lhe abundantes e grossas gotas de água. Cá fora, junto aos currais, ouvia as vozes de meu pai e meus irmãos a por a ceira no carro e a encangar a Benfeita e a Toucada. Lavei a cara, metendo as pontas dos dedos na água da bacia do lava-mãos, que ali ficara da véspera. Por fim a água na chaleira começou a ferver e daí a nada o café deitado no bule, cheirava que era um consolo. Assomando à porta de trás, minha irmã, agora já vestida e penteada, gritava:

- Venham, venham! O café já está nas tigelas, se não vêm depressa vai arrefecer…

Não demorou muito e estávamos todos sentados à mesa e, daí a nada, na terra da Fontinha a apanhar as maçarocas, grandes, amareladas, com as barbas a saírem por entre as cascas da ponta. Cestos e mais cestos povoavam o chão, atapetado com o trevo já crescidote. Uns atrás dos outros os cestos iam-se enchendo. De seguida eram baldeados dentro da ceira do carro até esta ficar rasa. Meu pai subia para cima do carro e, habilmente, ia construindo com as maçarocas maiores uma vedação de forma que a capacidade da ceira aumentasse e assim a carrada levasse mais uma boa dúzia de cestos. Quando o carro estava cheio e bem acaculado, apertava os queicóes, tangia as rezes, tendo antes dado uma maçaroca a cada uma, e vinha, com um de meus irmãos, despejar o milho pela porta da cozinha. Mais um, mais dois, mais três carros e a cozinha ficava cheia…

Havia tachos deitados ao chão, bancos virados e a mesa de jantar estava totalmente coberta. A amassaria pura e simplesmente desaparecera. E, para lá da cozinha coberta com todo aquele entulho cerealífero, cheia de maçarocas via-se a sala desarrumada, com as camas por fazer e o penico, branco e com uma borda partida, ainda não tinha sido despejado. O Farrusco, encavalitado em cima do monte do milho, miava, esfomeado.

Minha irmã não tardou com a sopa de feijão e toucinho que sobrara da véspera. Cada qual pegou no seu prato e com uma grossa fatia de pão de milho, acomodou-se onde pode….

A tarde foi para encambulhar e descascar as maçarocas mais verdes e mais pequenas. À noitinha o estaleiro estava quase meio.

A colheita da Fontinha, naquele ano fora muito boa…

E já pela noite dentro, com a cozinha arrumada e limpa, sentamo-nos todos à mesa, em frente aos pratos vazios, dentro dos quais, pouco depois, caía em jorro esbranquiçado e quente, umas saborosas papas grossas, feitas como o milho das maçarocas mais verdes, que minha irmã fora escolhendo por aqui e por ali.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A POÇA DAS CATEQUISTAS

Sexta-feira, 14.10.16

A Retorta era a maior, a mais profunda e a mais retorcida enseada de quantas existiam no baixio da Fajã Grande, desde o Pesqueiro de Terra até ao Canto do Areal. Entrincheirada entre rebordos negros e altíssimos mas sarapintados de algas multicolores, escavada entre o restolho da lava basáltica, desenhada pela natureza e cinzelada pelo marulhar secular das ondas, a Retorta quase se assemelhava a um autêntico fiorde escandinavo embora minúsculo e tingido de negro. Uma pequena maravilha da natureza, muito fértil em peixes, moluscos e cavacos.

Entrando pelo baixio dentro, como se quisesse romper ou perfurar a ilha, de forma arqueada, com curvas e contracurvas, na sua parte final, a Retorta, já no seu termo, formava um ângulo de cento e oitenta graus e voltava o seu curso na direção do mar. Era ali que alargando-se substancialmente formava uma espécie de poça oval, uma autêntica piscina natural. Era essa a chamada Poça da Retorta.

Mas o mais interessante é que em ocasiões de maré seca a poça como que ficava separada do corpo da Retorta e, consequentemente, por isso, se chamava de poça, ou seja, segundo o Dicionário Online de Português uma cova ou cavidade, relativamente rasa, encontrada em qualquer terreno, com água em seu interior. No entanto e pelo contrário, com o subir da maré, a água ia entrando na poça até a encher e a unir, assim a corpo da Retorta como se facto fosse uma parte dela.

É verdade que o seu fundo era bastante irregular, atapetado por alguns pedregulhos ásperos e pontiagudos, muitos deles repletos de ouriços e com moreias e moriões a habitar os seus escombros, mas como ficava bastante escondida e rodeada por altas rochas era o local ideal para uma boa banhoca por parte de quem não se quisesse expor aos olhos dos curiosos e muito menos aos seus comentários.

Essa a razão por que o reverendo pároco da freguesia, numa altura em que muitos direitos ainda eram vedados às mulheres e em que os preconceitos relativamente ao sexo feminino abundavam discriminatoriamente, decidiu senão por decreto, pelo menos por mero conselho espiritual ou mandato casuístico que as meninas e senhoras de bem da freguesia, impedidas de se banharem no Cais ou no Porto Velho, locais habitualmente frequentados por rapazes e homens, fossem tomar banho para aquela Poça, situada paredes meias com a Ponta da Coalheira, o pedacinho de terra mais ocidental da Europa.

E, submissas ao mandato canónico, muitas iam, sobretudo as mais púdicas, mais dóceis e mais obedientes às Leis de Deus ou do Seu digno represente na Terra.

Por essa razão a Poça da Retorta passou a chamar-se a Poça das Catequistas. Não sabiam elas, ou pelo menos se o sabiam, algumas não se incomodavam nada com isso, é que muitos rapazes aproveitavam o despautério do prebendado e, sempre que lhes cheirava a corrupio de mulheres para os lados do Areal, rumavam para a Retorta. Escondidos entre os rochedos escuros e escarpados não perdiam a oportunidade de, na sua qualidade de ávidos e tresloucados mirones, espreitarem uma nesga que fosse da perna de uma ou outra menina que, eventualmente, tivesse a ousadia de substituir o saiote com que as mulheres na altura se banhavam por um fato de banho um pouco mais ousado.

 

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A BELA AURORA

Sexta-feira, 02.09.16

Aurora, apesar de pobre e desafortunada, era uma mulher de beleza rara e de uma simpatia contagiante. Essa a razão pela qual na pequena localidade onde vivia, na mais recôndita das ilhas açorianas, todos lhe chamavam A Bela Aurora. Era sobretudo os homens que mais a admiravam mas também a provocavam, não apenas por ser muito bela mas também e sobretudo porque era muito corajosa e anamuda, pois não tinha medo de nada, nem de coisa nenhuma. Aurora vivia sozinha na sua pobre casa. Os pais haviam falecido há muito e, embora tivesse muitos pretendentes, nunca se casara.

Certo dia já não podendo suportar as afrontas e os vis vitupérios de que era vítima por parte dos homens, nem a inveja e as intrigas em que a imiscuíam as mulheres, Bela Aurora, perante o espanto de todos, decidiu abandonar o povoado e ir viver para mato.

Subiu a Rocha, atravessou valados e grotões, rebolou-se sobre a fresca alfombra, sobre a qual dormiu a primeira noite, acordando encharcada com o sereno da madrugada. Cá em baixo, no povoado, todos estavam admirados e não sabiam como A Bela Aurora estava a dormir, sozinha de noite, no mato, naqueles tenebrosos e esconsos andurriais e não tinha medo.

No dia seguinte, decidida a continuar a viver ali, isolada e longe de todos os que a afrontavam, a Bela Aurora procurou uma pequena furna encravada na aba duma enorme pedra, rodeada de um denso arvoredo. Apanhou alguns fetos que vicejavam por ali perto, arranjou uns paus de cedro e fez uma pequenina cama, onde, na noite seguinte dormiu um sono, muito descansada.

Mas ao levantar-se, na manhã seguinte, sentiu muita fome, pois já não comia há dois dias Deu algumas voltas à procura de alimentos e, como nada encontrasse que lhe saciasse a fome, começou a chorar e no seu pranto dizia:

- Desviado de Deus seja, desviado de Deus seja, quem do meu bem se desvia. – E repetia com voz dolente como se fosse em eco - Quem do meu bem se desvia.

Preocupadas, algumas mulheres do povoado, mais bondosas e caritativas, vizinhas e amigas de Aurora, decidiram ir procurá-la, levando um retrato dela, a fim de ser mais fácil identificá-la.

Porém ao aproximarem-se dela, a Bela Aurora recusou-se a regressar com elas ao povoado. Já encontrara frutos, raízes silvestres, leite e mel com que se alimentava e vivia ali muito feliz. As mulheres nada puderam fazer, não conseguindo demovê-la da sua teimosia.

Antes de regressar a casa, despediram-se de Aurora e uma delas, a mais amiga da Bela Aurora, dizia em dolente cantoria:

- Trago o retrato da Aurora

Trago o retrato da Aurora

Na roda do meu vestido;

Na roda do meu vestido;

Antes que a Aurora se vá

Antes que a Aurora se vá

Fica o retrato comigo

Fica o retrato comigo.

Então as outras formando uma grande roda ao redor da Bela Aurora cantaram e dançaram:

- Dá-me os teus braços Bela Aurora

Dá-me os teus braços Bela Aurora

Ó Bela Aurora,

Adeus que me vou embora

Ó Bela Aurora,

Adeus que me vou embora.

Consta que foi assim que nasceu a canção da Bela Aurora que ainda hoje se canta em todas as ilhas e localidades açorianas.

 

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COIMBRA AVEIRO ROSSIO LISBOA OVAR SETÚBAL

Sábado, 04.06.16

A primeira vez que escrevi e enviei um telegrama era ainda uma criança. Estava de férias, num dos meus primeiros anos de estudo e tive que pedir ao Reitor do Seminário onde estudava, que por razões de saúde do meu progenitor, me autorizasse a regressar a Angra mais cedo do que o estabelecido no final do ano letivo anterior. Peguei num papelinho, escrevi o texto. Como por razões económicas, reduzi ao máximo o número de palavrassem, esqueci-me de o assinar e dirigi-me à loja da Senhora Dias, paredes meias com o adro da igreja, onde funcionava a estação de correio da freguesia.

Ao chegar à loja aguardei a minha vez. Foi a Senhora Dias, com o seu ar sisudo e pouco amável que me atendeu. Expliquei-lhe o que pretendia, entreguei-lhe o papelinho e ela fechou-se num pequeno cubículo que existia dentro do balcão e onde ela se refugiava para atender o telefone, para enviar os telegramas e onde tinha uma espécie de pequeno escritório.

Como fechasse a porta, nada ouvi do que ela disse ou o que lhe disseram, nem sequer percebi como enviou o telegrama. Mas no fim, abrindo a porta da pequena cabina interrogou-me com ar repreensivo e intimidatório:

- Quem é que o expele?

Fiquei embasbacado pois desconhecia o significado daquela para mim estranha palavra. Perante a minha perplexidade, ela insistiu;

- Quem assina o telegrama?

- Eu, Carlos. – Retorqui.

A senhora Dias regressou à cabina, sentou-se, deixando, desta feita, a porta aberta. Assim e para espanto meu, pude ouvir com nitidez a mensagem que enviava. Com voz nítida, firme e pausada dizia para quem estava do outro lado da linha:

- Coimbra… Aveiro… Rossio… Lisboa… Ovar… Setúbal.

Fiquei arrebatado de assombro e perplexidade. Eu sabia que cada palavra de um telegrama era paga a peso de oiro e, por isso, tivera tanto cuidado em escrever o menor número de palavras no texto. Até evitara o meu nome e ela obrigava-me a pagar mais seis palavras desnecessárias.

Perante a minha revolta e contestação ela explicou:

- És mesmo parvinho. Não sei de que te serve andares a estudar no Seminário… Aquelas palavras são as iniciais do teu nome. É uma forma que utilizámos no telégrafo para que a informação seja mais segura. Pagas apenas as palavras do texto e mais uma, o teu nome.

Paguei, agradeci e fiquei a saber que em termos de telégrafo me chamava Coimbra Aveiro Rossio Lisboa Ovar Setúbal, o que me fez lembrar a linguagem dos “pês” com que brincava na escola e segundo a qual me chamava Carpalospos.

 

 

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UM MONÁRQUICO ASSUMIDO

Terça-feira, 31.05.16

Dona Josefa e Mestre António deliciavam-se com a astúcia e a sabedoria de Álvaro que, apesar da sua tenra idade, enunciava todos os rios de Portuga e cantarolava, por ordem cronológica, os nomes e os cognomes dos reis das quatro dinastias. Mas com o que mais dona Josefa se admirava era o facto de o garoto recitar de cor o Pecador em latim e de enunciar, na mesma língua, os responsos do De Profundis.

- Como é que tu já sabes isso!? – Perguntava dona Josefa.

Foi o pai que esclareceu:

- Meu cunhado é o sacristão lá na Fajã, D. Josefa. De semana não lhe dá jeito ir ajudar à missa, porque precisa de ir trabalhar para as terras. Então minhas cunhadas pediram-me para deixar ir o Alípio, o outro meu filho, mais velho três anos do que este. É verdade que ele também me faz falta, mas dão-me cinquenta centavos por dia… Bastante jeito me dá! Elas ensinaram-lhe lá os latins da missa ou quê ao outro e este ouviu tudo e foi assim que aprendeu tudo.

- Então Álvaro, tu é que devias ser sacristão. É tão lindo ajudar à missa… Estar ali tão pertinho de Nosso Senhor… - Concluía dona Josefa, olhando o miúdo com ternura.

- Pois… Mas o senhor padre diz que sou muito pequeno e não chego para acender e apagar as velas. Eu já disse que punha uma cadeira e subia para cima do altar para acender as velas. Mas não pode ser… Não se pode por os pés em cima dos altares. – Explicava Álvaro com um misto de inocência e tristeza. Por fim, voltando-se para o dono da casa perguntou:

- Ó senhor António, posso fazer-lhe uma pergunta?

- Todas as que quiseres, meu filho. – Retorquiu Mestre Algarvio com blandícia. - Ora vamos lá, a ver. O que queres saber?

- O senhor chama-se mesmo Algarvio ou isso é um apelido? É que eu nunca vi ninguém com esse nome.

Com um suave sorriso nos lábios e anafando com ambas as mãos as pontas do farfalhudo bigode, o Senhor António explicou pachorrentamente:

- Não! Eu chamo-me António Alves da Costa Cabreira, mas em toda a ilha das Flores sou conhecido pelo António Algarvio. É que cá na ilha vocês tem uma mania muito engraçada e que é a seguinte: como há muitos Antónios e muitos Josés e muitos Manéis e muitos não-sei-quê, resolvem distingui-los com qualquer indicativo a eles ligado, é o José de Tianina, o Manuel do Monte, o António Cambado e a mim batizaram-me por António Algarvio. Sabes porquê? Porque não sou de cá, sou do Algarve. Eu nasci em São Bartolomeu de Messines, a freguesia maior e mais importante do concelho de Silves, no Algarve. Também lá passam dois rios, mas mais pequeninos do que aqueles cujos nomes tu bem conheces: o Arade e o Gavião. São Bartolomeu de Messines é a terra das pedras de amolar, que vocês aqui nas Flores chamam esmorizes e também a terra onde nasceu o ilustre poeta João de Deus. Ainda lá está a casa onde ele nasceu e viveu. Já ouviste falar em João de Deus? Foi ele que escreveu a Cartilha Maternal, o primeiro livro escrito em português para as criancinhas aprenderem a ler.

- Lá está ele com as suas literaturas. Deixa em paz a criança, homem! Precisa é de aprender a rezar e fazer as nove primeiras sextas-feiras em Louvor do Sagrado Coração de Jesus. – Implorava, prepotentemente, dona Josefa

- Não nunca ouvi. Mas, ó Senhora D. Josefa, eu já sei rezar e até já sei responder à missa. Mas eu gosto muito de ouvir as histórias do senhor António. Ele fala tão bem e sabe tanta coisa…

- Então vou contar-te uma história que nem os professores sabem ensinar, porque não vem nos livros da 4º classe. – Acrescentou o senhor António retorcendo, mais uma vez, as pontas do enorme bigode, muito entusiasmado e com grande orgulho e patriotismo. – São Bartolomeu de Messines foi um eficiente baluarte miguelista, por duas razões: primeiro porque foi local de residência de um dos mais célebres comandantes das tropas que apoiavam o nosso rei D. Miguel, de nome José Joaquim de Sousa Reis, mais conhecido pelo Remexido; segundo porque foi lá, junto à ermida de Sant’Ana, que as forças que apoiavam o nosso rei D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, uma pesada derrota às forças liberais, que eram bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira.

- Se fosse o Marquês de Pombal eu sabia quem era, porque vem a fotografia dele no livro da 4ª classe. – Interrompeu Álvaro, com ostensivo orgulho.

– Credo, menino. Esse foi que matou os frades e os padres todos e roubou os conventos e as igrejas… Um herege! Um herege! – Esconjurava dona Josefa

- Pois ficas a saber – continuou o senhor António - para nunca mais esqueceres que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general chamado Tomás António da Guarda Cabreira meu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista.

- Tinha que vir, mais uma vez à baila, o general! E dizem que o homem era ateu e que morreu sem se confessar e arrepender… E tu vais pelo mesmo caminho… - Resmungava dona Josefa.

- Por isso não há messinense que se preze que não seja monárquico e miguelista. Abaixo a República! Viva a Monarquia! Vociferava o Senhor António retorcendo, mais uma vez, as pontas do bigode. Depois voltando-se para meu pai: - António, isto vai mudar! Não demora muito e vamos ter um rei outra vez a governar Portugal…

Dona Josefa benzia e persignava-se, resmungando:

- Foi por falares contra os nossos governantes e contra Deus que fugiste para aqui…

- Ó Dona Josefa, deixe lá! Nesta terra pode-se falar à vontade. Os homens vêem-se é pelas ações e não pelas orações.

- Pois o Antoninho fala assim porque também não põe os pés na igreja, não vai à missa, nem à desobriga. Está com o coração empedernido como este herege. – Dona Josefa punha as mãos e erguia-as ao céu. - Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Mas Deus, através das minhas orações, há-de ter piedade de vocês. E tantos desgostos que ele já teve e tanto que já sofreu por falar de mais. Mas não há maneira de se emendar, de se arrepender e pedir perdão a Deus.

– Juro que enquanto for vivo hei-de pugnar pelos meus princípios monárquicos. Sou um Monárquico convicto, assumido – Afirmava o senhor António, cerrando os punhos.

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PAPEL NADA

Quarta-feira, 04.05.16

No Seminário Menor de Ponta Delgada, assim como no de Angra, era costume o papel higiénico ser da responsabilidade de cada utente das latrinas, medida geralmente aceite por todos. Como era cada qual a usar o seu papel, com o qual sempre se munia quando pretendia ir fazer uma necessidade grande, não havia desperdícios ou gastos supérfluos. Bem recomendo, agora, aos meus netos que também o poupem. Mas eles, nada. Duma só vez gastam mais do que eu utilizava no Seminário durante uma semana.

Mas no Seminário a compra dos bens necessários aos alunos, nos quais, obviamente se incluía o papel higiénico, era feita pelo Prefeito, que para tal distribuía pelos alunos uma requisição onde cada qual escrevia o que necessitava. Normalmente produtos de higiene, material escolar e pouco mais. Tudo o que estivesse para além do permitido era riscado.

Ora logo nos primeiros dias em que cheguei pela primeira vez ao Seminário de Ponta Delgada, recebi a tal folhinha de requisição para as minhas compras. Pouca coisa. Entre elas no entanto teria que requisitar o tal papel que eu já vira nas mãos de alguns colegas mas de que não sabia o nome. Ainda pensei escrever papel de limpar o rabo. Mas como cuidei que isto fosse ofensivo para a dignidade do Senhor Padre Perfeito, contive.me. Enchi-me de coragem, levantei-me e dirigi-me para a secretária do Perfeito, estrategicamente colocada a meio da sala e perguntei-lhe simplesmente:

- Como se chama o papel?

Ao que ele muito atarefado a registar e a somar aquele amontoado de requisições que, aos poucos, lhe caíam em catadupa sobre a mesa, respondeu:

- Nada1 Nada, Vai para o teu lugar.

Cuidando-me esclarecido, regressei para o meu lugar, sentei-me na minha carteira, peguei na requisição e numa caneta e zás. Escrevi de imediato, no meio das outras compras: 1 Rolo de papel Nada.

No dia seguinte recebi as compras, mas o tal papel, nada. Não apareceu e o nome estava riscado na minha requisição.

Fiquei perplexo, porque as compras eram de quinze em quinze dias. Como consequência tive que andar mais duas semanas a limpar o rabo em pedacinhos de jornais e de outros papéis que ia encontrando por aqui e por ali. Num dia de maior aflição até tive que arrancar uma folha do caderno de significados de Francês.

Na véspera da requisição seguinte, perguntei a um colega, mais experiente naquelas andanças, como se chamava o papel com que se limpava o rabo. Ele esclareceu-me, mas confuso perguntei:

-Escreve-se com agá ou sem agá.

- Sem agá. – e comentando para o lado - Bem se vê que és das Felores.

 

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AS ESTRELAS DA MINHA COZINHA

Segunda-feira, 14.03.16

Quando eu era criança, a casa onde meus pais, meus irmãos e eu morávamos era muito pequena e pobre mas tinha estrelas, muitas estrelas. Estrelas brilhantes e reais.

Era na cozinha, vetusta e muita escura, com o chão de tábuas velhas e remendado, que existiam as estrelas. Vinham do céu como aquelas de cá de fora e que eu via apenas nas noites em que juntamente com a minha mãe e meus irmãos íamos fazer serão, à Fontinha, a casa da minha avó. Eu delirava com todas as estrelas. As que habitavam o céu das noites claras e com luar, quando saía de casa para os serões e as que povoavam o céu da cozinha da casa de meus pais e cuja luz caía em catadupa sobre os bois de sabugo, sobre os porquinhos de batata-doce e sobre as galinhas de conchas de caramujos com que eu brincava, num mundo que eu próprio construíra, de que era o criador.

Minha mãe ralhava quando nas suas lides diárias, do lar para a porta, da porta para a mesa, da mesa para o lar, sobretudo se carregada com algum alguidar com bolo escaldado ou com alguma panela com água a ferver, tropeçava em mim, aninhado no chão, encantado com o brilho das estrelas, a admirar e a regozijar-me com as minhas próprias criaturas.

Debaixo do lar, onde proliferara um desarrumo misto, de achas de lenha, de garranchos, de batatas, de inhames, de cestos e até de um caldeirão de cozer morcelas, o Farrusco, emergindo de um ronronar morno, dava saltos e atirava-se a um outro murganho, que saía das buracas das paredes, na procura de comida. Eu fugia com medo daqueles bichos repugnantes, assim como me afastava da porta do forno, debaixo da qual assentava, permanentemente, arraiais um baldo de madeira, ensebado, nojento e sujo que ia armazenando, durante o dia, águas das lavagens, cascas de batatas e de inhames e uma ou outra côdea de pão de milho rijo que nem o diabo a podia comer. Ali ficava até se encher, aguardando que meu pai chegasse a casa para o ir despejar na gamela do suíno. Este ficava louco de contentamento. Grunhia como se tivesse ali um manjar celestial… Eu adorava o espetáculo do porco faminto, louco de contentamento com tão hedionda gamelada.

Voltava à cozinha e à contemplação do mundo de que eu era o criador. Lá estavam as estrelas… Não eram muitas, mas tinham uma luz clara, diluída, fulgurante e florescente que banhavam e concediam um esplendor de graça e uma áurea de santidade à minha criação. Os bois de sabugo ficavam com o pelo mais brilhante, os porquinhos de batata-doce parecia crisparem-se de enfeitiçamento e as galinhas e galos de conchas de caramujo latejavam estonteantes como se fossem aves de verdade. E eu ficava ali horas a fio a contemplar a beleza daquele mundo do qual eu era o criador. Criador de tudo exceto das estrelas. E esse era o meu enigma. As estrelas da minha velha cozinha fortaleciam o meu mundo, enriqueciam a minha criação, iluminavam o que eu próprio construíra mas não fora eu que as criara, nem sequer conhecia a sua origem. E permaneci muitos anos nesta ignorância sem nunca deixar de apreciar a beleza estonteante das estrelas que brilhavam reluzentes no firmamento da minha velha cozinha.

Só algum tempo depois, quando meu pai contratou o senhor Cabral para retelhar a minha casa, eu deixei de ver estrelas na minha velha cozinha. Percebi, então, que afinal elas nada mais eram do que pequenos buraquitos existentes entre as telhas, através dos quais os raios de sol se infiltravam para dentro de casa, em cones oblíquos e florescentes, iluminando todo o meu mundo fantasmagórico que, assim e aos poucos, começava a desfazer-se. E confesso que até fiquei muito triste e passei a odiar o senhor Cabral por ter vindo retelhar a minha casa, destruindo e apagando para sempre as estrelas da minha cozinha.

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CINCO A ZERO

Terça-feira, 16.02.16

Foi numa tarde de maio da década de cinquenta. O Atlético Clube da Fajã Grande estava em grande forma e no auge da sua curta carreira futebolística. Domingo após domingo, muitas vezes até em dias de semana, à tardinha, um punhado de jogadores que constituíam o plantel não se coibia de treinar. O clube havia surgido no final da década de quarenta, resultante duma fusão entre os dois clubes existentes, inicialmente, na Fajã: o Sport e o Salgueiros. Nesses tempos os jogos realizavam-se no antigo campo do Estaleiro, para os lados do Porto, numa altura em que surgiu o melhor jogador de sempre da Fajã Grande, o Nestor.

O Atlético já realizara alguns jogos, no novo campo das Furnas e já se deslocara a Santa Cruz e às Lajes, mas com resultados pouco positivos. Apenas uma vitória frente ao União de Santa Cruz. De resto empates e derrotas

Nestes tempos jogavam no Atlético excelentes jogadores: Abílio (Guarda-redes), João do Gil, Lucindo Fagundes, Elviro, Edmundo Pereira, Teodósio, Albino, Álvaro de João Carlos, David do Raulino, Roberto do Cristóvão, Ângelo João Augusto, Mário do Raulino, Luís Cardoso, Manuel Cardoso (Matateu), Álvaro do Raulino, José Borges, António Nascimento, José Augusto, Ângelo Câmara, José de Lima, Albano, Manuel Blica, José António Marcela, João Luís, António Lourenço, José Augusto e Luís Matareco, entre outros. O treinador era o José Fagundes.

Nessa gloriosa tarde de maio, a vila das Lajes deslocava à Fajã uma nova equipa pertencente à Rádio Naval. Esta equipa surgiu pouco depois de ser instalada naquela vila uma estação de Rádio Naval, em agosto de 1951. Era uma equipa fortíssima constituída não só por jogadores naturais da ilha que, anteriormente, haviam jogado noutros clubes, mas também por marinheiros vindos do continente para trabalhar naquela estação, entre os quais o célebre Virgílio Fraga, um verdadeiro craque, com um currículo notável, pois antes de se deslocar paras Flores, jogara no Tirsense, na altura a militar na 2ª divisão nacional, zona norte e João Rodrigues que jogara no Fayal Sport Clube da Associação de Futebol da Horta. Outros nomes sonantes da Rádio Naval eram Tomás, Roque Sousa, António Raimundo, Mateus Azevedo, Mendes, Lenine, Teixeira, António Freitas, Santana, Manuel Martins e Manuel Moniz.

Mas o Atlético não se atemorizou. José Fagundes preparara bem a equipa para o embate. Equipando com camisola azul e calção branco, alinharam, na baliza Abílio, na defesa os jovens Edmundo Pereira, Lucindo Fagundes e o experiente Álvaro de João Carlos. Como médios o treinador lançou Albino e o veterano Teodósio, jogando com os interiores Ângelo Câmara e Albano. Nos extremos colocou o David do Raulino à esquerda e o Ângelo de João Augusto, à direita, com o Manuel Cardoso, apelidado de Matateu, a avançado centro. O campo encheu-se de gente, na generalidade apoiantes do Atlético, vindos da Fajã e da Ponta.

A partida iniciou-se com uma acentuada supremacia da equipa visitante. Mas o Abílio estava em grande forma e fez um bom punhado de defesas o que conferiu grande confiança às hostes fajagrandenses que o público apoiava calorosamente. O Atlético veio para a frente e ameaçou a baliza dos lajenses. Um penalty bem assinalado, concretizado pelo Manuel Cardoso (Matateu) deu ao Atlético um avanço no marcador. O público aplaudiu e os jogadores empolgaram-se ainda mais. Antes do intervalo o Atlético aumentou a vantagem. Um canto da esquerda, apontado pelo David do Raulino e Lucindo Fagundes a saltar em primeiro na área adversária, a cabecear e a fazer o segundo para a equipa da casa.

O Radio Naval regressou na segunda parte revoltado e disposto a virar o resultado fosse de que forma fosse, cometendo muitas faltas. Um livre apontado exemplarmente por Teodósio e o três a zero. Os ânimos começaram a aquecer, com muitas interrupções, agressões e faltas duríssimas. Dois jogadores forasteiros expulsos, conseguindo o Atlético manter a calma, marcando mais dois tentos, por Manuel Cardoso e Albano.

A equipa das Lajes, apesar de revoltada, abandonou o campo reconhecendo a superioridade do Atlético, cujos jogadores eram aplaudidos e levados em ombros, após a invasão de campo, no fim do jogo, por parte de muitos espetadores que assim celebravam, efusivamente, o maior dia de glória do Atlético Clube da Fajã Grande.

Os jogadores, ao cair da noite, foram recebidos por muitos adeptos na loja da Senhora Dias. Entre cervejas, laranjadas e pirolitos o treinador, José Fagundes, cantava efusivamente:

 

O Atlético trabalha como eu quero,

Agora já não falham cinco a zero.

 

Ó Maria Rita, não te faças tola,

Toma lá sete e cnico p’ra comprar uma cebola

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A VINHA DE NABOTE

Domingo, 14.02.16

Eu, em criança, adorava ler interessantes estórias que vinham narradas numa reduzida versão da Bíblia Sagrada que existia na casa da minha avó, até porque, para além dos escolares, era o único livro que dispunha. Uma dessas belas estórias bíblicas era A Vinha de Nabote, aliciante narrativa que nos transportava a tempos muito antigos em que os reis eram senhores e donos de tudo. Rezava mais ou menos assim a estória da Vinha de Nabote:

Muitos anos antes de Cristo, vivia em Jezreel um homem chamado Nabote que tinha uma vinha nos arredores da cidade onde vivia, situada perto do palácio de Acabe, rei de Israel.

Um dia o rei propôs-lhe comprar-lhe o terreno onde estava plantada a vinha;

- Quero fazer um jardim nessa terra. - Explicou-lhe o monarca - Pois está localizada num bom local, junto ao meu palácio.

O interesse do rei pela vinha de Nabote era tanto e tão grande que o monarca se dispôs a pagar-lhe em dinheiro ou até trocá-la por uma outra vinha melhor, mas afastada do palácio.

Mas Nabote não aceitou a proposta do rei, retorquindo:

-Não, eu nunca poderia vender essa terra porque se trata de uma herança dos meus antepassados, já de há muitas gerações. Deus não mo permite.

Acabe foi para casa muito abatido e triste. Não queria comer e meteu-se na cama, com a cara virada para a parede.

- Que desgosto tão grande é esse que te deixa em tão lastimoso estado? - Perguntou-lhe a rainha Jezabel. - Por que é que nem sequer queres comer?

Acabe respondeu:

- Pedi a Nabote que me vendesse a vinha, ou que ma trocasse por outra e ele recusou!

Indignada, a rainha retorquiu:

- Mas afinal, és tu ou não o rei de Israel? Trata mas é de te levantares, e de andares normalmente, porque eu me ocuparei desse assunto. Sou eu que vou conseguir obter essa vinha de Nabote!”

Jezabel pôs-se então a escrever uma série de cartas, em nome de Acabe, com o selo real, e endereçou-as aos chefes da cidade de Jezreel. Nelas dava a seguinte ordem: Façam uma proclamação por toda a cidade, para que a população jejue e ore. Convoquem Nabote, e arranjem dois marginais que o acusem de ter amaldiçoado Deus e o rei. Levem-no depois e executem-no.

Os chefes municipais obedeceram àquelas instruções. Convocaram uma reunião, acarearam Nabote com dois meliantes, os quais, injusta e falsamente, o acusaram de ter amaldiçoado Deus e o rei Acabe. Nabote foi arrastado para fora da cidade e apedrejado até morrer. Depois, os líderes da cidade participaram a Jezabel que Nabote já estava morto. Quando a rainha tomou conhecimento disso, procurou o rei Acabe e disse-lhe:

- Lembras-te da vinha que Nabote que tanto desejavas e ele não te a queria vender? Pois bem, já poderás tê-la. O homem morreu!

E foi assim que o rei Acabe conseguiu tomar posse da terra onde esta a vinha de Nabote.

Mas a estória da Vinha de Nabote não acabava aqui. Mais dizia que no reino de Israel, onde reinava Acabe, havia um homem, chamado Elias, que, para além de bom e justo, era profeta. Deus chamou-o e disse-lhe:

- Vai ao palácio e fala ao rei Acabe. Ele há-de estar na vinha de Nabote, tomando posse dela. Dá-lhe esta mensagem da minha parte: Rei Acabe: não terá sido bastante que tenhas morto Nabote? Irás ainda roubá-lo? Visto que fizeste tamanha maldade, o teu sangue virá a ser lambido por cães, fora da cidade, tal como lamberam o sangue de Nabote!

Ao aproximar-se de Acabe, Elias disse-lhe:

- Vim aqui para te dar a conhecer a maldição que Deus põe sobre ti, porque te vendeste para fazeres o que é mau. O Senhor trará grande mal sobre ti e te varrerá para longe; não deixará que um só dos teus descendentes masculinos sobreviva! Deus destruirá a tua família, como o fez com a de Jeroboão e a do rei Basha, porque pecaste e levaste todo o Israel a pecar. O Senhor também me disse que os cães de Jezreel despedaçarão o corpo da tua mulher Jezabel. Os membros da tua família que morrerem na cidade serão comidos pelos cães e os que morrerem no campo serão devorados pelos abutres.

E a estória chegava ao fim concluindo que não houve ninguém que se tivesse vendido como Acabe, para fazer o que era mau aos olhos do Senhor, instigado por Jezabel, sua mulher. Mas quando ouviu a sentença divina, o rei Acabe rasgou as suas vestes, cobriu-se com um saco com que até dormia, jejuou, e andava profundamente humilhado. Por isso o Senhor, vendo o seu arrependido, mandou, novamente, o profeta Elias junto dele, dizendo-lhe; - Estás a ver como Acabe anda humilhado perante mim? Visto que tomou essa atitude, não farei o que lhe prometi durante o tempo da sua vida; isso dar-se-á com os seus filhos; destruirei os seus descendentes.

E Elias foi anunciar a Acabe a mensagem que recebera de Deus.

 

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DOM CAIO

Sábado, 06.02.16

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, a ganapada mais astuta e que se considerava mais dominadora, sobretudo a que andava na escola primária, aproveitava tudo o que aparecesse mais à mão, para por um apelido a este ou aquele, sobretudo aos mais desprotegidos. Eu não fugia à regra, como vítima, o que me deixava grandes amargos de boca.

Ora o nosso livro da quarta classe, entre muitas outras estórias, com as quais eu delirava e adorava ler, até porque não havia livros na minha casa a não ser os escolares, tinha uma intitulada Dom Caio, que rezava assim:

Era uma vez um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da sua casa. Como tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir de valente.

Certo dia viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. D'aqui em diante não fazia senão gabar-se:

— Eu cá mato sete de uma vez!

Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o mais valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra o seu reino, porque sabiam que não havia quem pudesse combate-las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: «Eu cá mato sete de uma vez!» foram logo dizê-lo ao rei, que se lembrou de que quem era assim tão valente seria capaz de ocupar o posto de Dom Caio. Veio o alfaiate á presença do rei, que lhe perguntou:

— É verdade que matas sete de uma vez?

— Saberá Vossa Majestade que sim.

— Então n'esse caso vais comandar as minhas tropas, e atacar os inimigos que já me estão cercando.

Mandou vir o fardamento de Dom Caio e vestiu-o no alfaiate, que era muito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas. Depois disse que trouxessem o cavalo branco de Dom Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, mas ele já estava a tremer como varas verdes. Assim que o cavalo sentiu as esporas botou á desfilada, e o alfaiate a gritar:

— Eu caio, eu caio!

Todos os que o ouviam por onde ele passava, diziam:

— Ele agora diz que é o Dom Caio; já temos homem.

O cavalo que andava costumado ás escaramuças, correu para o sitio em que andava a guerra, e o alfaiate com medo de cair ia agarrado ás clinas, a gritar como desesperado:

— Eu caio, eu caio!

O inimigo assim que viu vir o cavalo branco do general valente, e ouviu o grito: «Eu caio, eu caio!» conheceu o perigo em que estava. Disseram os soldados uns para os outros:

— Estamos perdidos, que lá vem o Dom Caio; lá vem o Dom Caio.

E começaram a fugir à debandada. Os soldados do rei foram-lhe no encalço, matando-os e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: «Eu caio.» O rei ficou muito contente com ele, e em paga da vitória deu-lhe a princesa em casamento, e ninguém fazia senão louvar o sucessor de Dom Caio pela sua coragem e bravura

Ora como eu adorava ler esta estória e o meu nome tinha uma sonância semelhante ao do principal protagonista da estória, foi-me imprimido o caráter indelével de um novo apelido: Dom Caio.

Nunca percebi, no entanto, qual o Dom Caio que predominava nas mentes danosas dos meus colegas de infância, se o valoroso general Dom Caio ou o tímido alfaiate numa ou outra das suas aparências: tímido e amedrontado ou consagrado como herói do reino. Mas verdade que a julgar pela galhofa dos que, permanentemente, me atribuíam o epíteto, de certeza que era o pobre e tímido alfaiate, entretido a matar moscas e a vangloriar-se disso. E bem me entristecia!

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AVENTURA

Domingo, 20.12.15

Quando Álvaro Belchior terminou o curso, na escola do Magistério Primário da Horta, respirou de alívio. Para trás ficavam dificuldades, desânimos e, por vezes, uma vontade quase incontrolável de desistir. Agora havia superado tudo. Os anos seguintes, no entanto, apresentavam-se incertos e atordoados com a constante ameaça da tropa e, pior do que isso, com a guerra do Ultramar. Mas custasse o que custasse, havia de singrar numa carreira profissional digna e nobre, de que ele e, sobretudo, os seus progenitores se haviam de orgulhar.

Por vontade dos pais ter-se-ia ficado pela 4ª classe, que frequentara durante dois anos. No primeiro instalara-se uma enorme confusão na freguesia e, sobretudo, na escola. É que a acentuada diminuição da população originara a que a “Escola Mista” da Fajã Grande das Flores fosse, por decisão governamental, transformada em “Posto Escolar”, perdendo o direito a professora diplomada, sendo a mesma substituída por uma regente escolar – a Dona Rita. Mas a Dona Rita nunca granjeou as simpatias da população, nem da maioria dos alunos, sendo considerada, por todos, má e antipática, excedendo-se frequentemente em repreensões exageradas, castigos excessivos e reguadas sem dó nem piedade. Álvaro foi, desde o início, a maior vítima do mau génio da Dona Rita, não pela preguiça ou desmazelo nos estudos, nem sequer pelos erros ou má caligrafia, parâmetros de avaliação em que era exímio, chegando mesmo, nas lições de cor, a ser o melhor da classe. Onde, segundo a opinião da regente, prevaricava, contínua e permanentemente, o mais novo rebento dos Belchiores, era na limpeza e arranjo do Caderno Diário. Não eram os erros ortográficos nem sequer a caligrafia – era pura e simplesmente a sujidade. Todos, na classe, primavam por uma limpeza excessiva e por um requinte desmesurado nos seus cadernos o que acentuava mais e mais a imundície e o desmazelo do Caderno do filho do Joaquim Belchior, fruto das míseras e degradantes condições da casa em que viviam. Assim o caderno diário do garoto, normalmente, se transformava numa execrável, sórdida e hedionda bodeguice, com a qual a Dona Rita nunca se compadecia e implicava continuamente, tomando-o de parte e acertando-lhe vezes sem conta, uma série de reguadas que lhe deixavam marcas nas mãos e faziam aumentar o ódio pela mestra. Além disso, a despromoção que a vinda da Dona Rita trouxe à freguesia provocou no povo uma sistemática e contínua onda de protestos e manifestações que aumentaram o ódio acentuado contra a regente. O ano escolar foi uma catástrofe! Faltas, tareias, participações, queixas, deslocações às Lajes, ao Delegado Escolar... Uma miséria!... Conclusão: no final do ano, dos quatro inscritos na quarta classe, apenas uma aluna fez o exame. Os restantes, entre os quais Álvaro, por incitamento dos pais, recusaram-se a fazê-lo, como forma de protesto e, consequentemente reprovaram, sendo forçados a repetir a 4ª classe.

Para apaziguar os ânimos e acalmar as revoltas, foi prometido ao povo que tudo regressaria ao normal e que no ano seguinte, viria novamente uma professora diplomada para a freguesia. Álvaro ansiava a sua chegada, dada a enorme vontade que tinha de completar a quarta classe. E a nova professora chegou no Carvalho de setembro. Vinha do Faial, de Castelo Branco e chamava-se Madalena. Hospedou-se em casa das Garcias, na Assomada, mesmo ali, pertinho da casa dos Belchiores. Tal vizinhança e a enorme vontade do Álvaro em completar a 4ª classe provocaram no garoto um carinho e uma amizade excessiva pela professora. Álvaro adorava-a e ela gostava imenso dele. Como morava ali perto, fora da escola, era ele que lhe fazia os recados e as compras. Para além disso, vezes sem conta, ia levar-lhe meio litro de leite ou um quarto de bolo de milho, quentinho e a fumegar, acabadinho de sair do tijolo, que a mãe lhe mandava. Ela, com ternura e carinho, solicitava-lhe, então, que entrasse e ficasse um bocadinho. Ele, embora tímido e envergonhado, aceitava o seu convite. Umas vezes ficava horas a conversar com ela, outras lendo histórias maravilhosas de livros que ela lhe aconselhava e emprestava. Mas era sobretudo na escola que o Álvaro mais a apreciava a professora. Acostumado às reguadas e ódios do ano anterior, habituara-se a uma preguiça sistemática e a um desinteresse efectivo. Agora, porém, considerava a escola um oásis de ternura e carinho a fazer-lhe esquecer as agruras e canseiras da vida. Alem disso, motivado pela doçura da D. Madalena, revelava uma vontade gigantesca de aprender tudo o que ela, de modos tão meigos e ternos, ensinava. Nunca levou uma reguada e nunca foi posto de castigo. É que a Dona Madalena aboliu a palmatória e, embora mantendo o caniço, usava-o apenas para bater levemente nas carteiras, chamando a atenção dos mais distraídos e acordando os dorminhocos. Os da quarta, nesse ano, eram oito, dado que aos três que se haviam recusado a fazer o exame da quarta no final do ano anterior se juntaram os cinco que passaram da terceira. Mas o fim do ano aproximou-se rapidamente e, com ele, finalmente o exame da quarta, nas Lajes.

Foi na viagem de regresso à Fajã, que a dona Madalena aproximando-se de Álvaro, lhe segredou:

- O Senhor Delegado Escolar deu-me os parabéns pelo brilhante exame que tu fizeste. E sabes o que ele me disse mais?

- Não sei, senhora professora, não sei.

- Pois ele disse-me o que eu já te disse tantas vezes. Uma cabecinha como a tua tem que continuar a estudar. Ouviste bem? Tem que continuar a estudar. Os teus pais já te disseram alguma coisa?

- Não senhora professora, não me disseram nada. Mas eu sei muito bem que eles não me podem pagar os estudos e precisam de mim para os ajudar nos campos.

- Vou falar com eles e vou convencê-los.

- Não adianta Dona Madalena, não adianta.

Mas a Dona Madalena não desistiu e no dia seguinte apareceu em casa dos Belchiores.

- É uma injustiça – argumentava ela – uma criança com as capacidades do Álvaro ficar-se pela quarta classe.

O Joaquim Belchior bem ripostava. Estudar é para os malandros e vadios. Vida digna é a do trabalho, ficar por aqui, na ilha, vergado ao peso da enxada ou agarrado à rabiça do arado, acartando molhos de lenha e cestos de inhames, galgando as encostas da Rocha ou transpondo as veredas dos Matos. Isto é que é vida…

Foi difícil a libertação dos entraves paternos e da oposição dos irmãos, atormentados pelas lides árduas dos campos. Mas a D. Madalena, não cessava de proclamar aos quatro ventos a inteligência do garoto. E a muito custo, com a intervenção de uma tia da América, que assumia colaborar nas despesas, foi-se demovendo o persistente carracismo do velho Belchior. Eram os irmãos de enxada às costas e foice na mão a caminho da Eira-da-Quada e dos Lavadouros e Álvaro a tomar a camioneta para Externato de Santa Cruz, que Liceu nas Flores não havia,

Terminado o 5º ano, seguiu para o Faial, com destino à Escola do Magistério, enquanto os outros, por entre protestos execráveis e reclamações improfícuas, mais se excruciavam a cavar as belgas do Mimóio ou a sachar as courelas do Areal e viam o leite mingar na tijela das sopas. Tirar o Magistério e seguir as pegadas da dona Madalena foi a escolha inequívoca de Álvaro.

Os dois anos que passou na Horta não foram fáceis. Dinheiro apenas para a pensão. Livros emprestados. Gastos supérfluos, nem pensar. Além disso, o Carvalho que chegava mensalmente das Flores e atracava à doca da Horta, trazia, juntamente com o correio e uma caixita de vitualhas diversas, uma enxurrada de ameaças:

- Olha lá se me reprovas! Acaba-se tudo!... Teu pai diz que há muitos fetos e cana roca para ceifar no Pocestinho e o cerrado das Furnas está à espera do arado e da enxada.

Nas férias matava-se a trabalhar. Os irmãos atiravam-lhe para o lombo os molhos mais pesados e os cestos maiores. O pimpolho havia de trabalhar no verão, para compensar a boa vidinha que levava durante o inverno.

Mas chegou o fim do Magistério e o concurso para professor. Como lhe segredassem que as vagas nos Açores eram poucas e, porque há muito sonhara abandonar o arquipélago, decidiu concorrer para o Continente. A Graça, a colega de curso que por ele se havia perdido de amores desde há algum tempo, bem o tentava demover, assustando-o com Trás-os-Montes e com o Alentejo, locais onde, na opinião da apaixonada, proliferavam aldeias mais pobres e mais isoladas do que o Corvo ou as Fajãs de S. Jorge.

A decisão, porém, estava tomada e nada ou nenhum argumento o demoveu.

Seguiram-se dias de ansiedade. Finalmente chegou a colocação – Terronhas.

Foi o Dr San-Bento que esclareceu. Terronhas era um lugar da freguesia de Recarei, no Concelho de Paredes. Tivera muita sorte. Uma excelente colocação. Terronhas, apesar de ser um pequeno lugar situava-se num grande e próspero concelho. Além disso ficava perto do Porto, sendo também apeadeiro da linha do Douro, entre Paredes e o Porto. Se assim quisesse até se poderia hospedar no Porto

Ao pedido do Dr. San-Bento, o Rodrigo, filho do amigo Dr Reboredo que morava no Porto, veio receber Álvaro a Campanhã, levando-o à Rua do Bonfim, onde já lhe havia garantido alojamento.

Mas só depois de se despedir do Rodrigo, quando ficou só, no pequeno quarto da Sá e Sá é que o Belarmino teve consciência que começava ali o princípio duma nova aventura no norte do país.

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O MANETA

Quinta-feira, 17.12.15

Júlia Rodrigues escapuliu para a América, ainda muito nova. Nada e criada num emaranhado reboliço de quase uma dúzia de irmãos, por ser mais velha, cedo foi condenada a ajudar, permanentemente, o pai nas lides agrárias, cavando, sachando, mondando, carregando, umas vezes, cestos de inhames e de batatas, outras molhos de lenha e de incensos. Por isso se revoltava vezes sem conta nesta quase espécie de escravatura a que fora condenada pelo próprio progenitor. Mas como isso de nada lhe servisse ou sequer a aliviasse, começou a germinar-lhe na alma o desejo íntimo de seguir as pegadas da irmã mais velha: esgueirar-se para a América. As cartas que recebia davam-lhe ânimo e permitiam-lhe sonhar com uma vida digna, folgada e feliz.

Feita a carta de chamada, contra a vontade dos progenitores, no primeiro Lima que demandou a ilha, partiu sozinha. Depois de uma longa e atribulada viagem, atravessando o oceano e o continente chegou à Califórnia, sendo recebida com muito gáudio pela irmã e pelo cunhado.

Alguns meses depois envolveu-se de amores com o Frederico Portela, de Ponta Delgada, também ele emigrado havia poucos anos. Casaram fixando residência em Benícia, perto de Pinole, onde vivia a irmã. Dois anos depois, nascia Glória, a única filha que lhes havia de fazer companhia até ao fim dos dias. Primeiro Frederico, depois Júlia.

Glória nunca casou. Vivendo sozinha, após a morte da mãe, conservava um enorme sonho, que nascera e germinara no tempo dos pais. Visitar a ilha onde os seus progenitores haviam nascido. Eles muitas vezes também o desejaram fazer, mas nunca o conseguirem. Inicialmente por falta de meios, mais tarde, quando já viviam mais folgados porque os pais de um e outro já haviam partido e segundo diziam, nada lá mais tinham que os atraísse. Mas verdade é que nunca haviam esquecido a sua ilha, da qual sempre lhe falavam, contando estórias, recordando costumes e ditos, descrevendo pessoas, lugares, tradições e festas. Os pais haviam-lhe deixado um legado memorável e inaudito, a memória de uma ilha pequena, pobre, repleta de trabalhos e canseiras mas local de rara beleza e de brandos costumes, a ilha da Flores, nos Açores. Mas era sobretudo a mãe que mais falava e contava estórias, acontecimentos e costumes do pequenino lugar onde nascera, a Fajã Grande. Glória conservava toda essa informação, como um tesouro precioso, reavivada em encontros e convívios com primos e amigos e jurara a si mesma que um dia havia de visitar a ilha de seus pais.

Se bem o jurou, melhor o cumpriu. Contatou uma agência de viagens e, no verão seguinte, rumou aos Açores, mais concretamente às Flores.

Em Ponta Delgada já não se lhe conheciam antepassados ou parentes. Mas na Fajã Grande vivia um primo, filho de uma das irmãs da mãe. Professor de História em Santa Cruz, nas horas vagas dedicava-se à agricultura e à criação de gado. Era pessoa culta, detentor de grande sabedoria e conhecia a ilha das Flores como ninguém. Recebeu a prima com agrado, disponibilizando-se para lhe mostrar a ilha e lhe revelar os mais recônditos recantos da terra onde a mãe nascera e onde ele sempre vivera. Deram longos passeios pela ilha, visitando as vilas, os matos e as lagoas, apreciando os mais belos miradouros. Vasculharam a freguesia de lés-a-lés, percorrendo muitos dos caminhos que a mãe pisara em criança, agora cobertos de silvados e ervaçais. O primo descobria, mostrava, descrevia, narrava, dando-lhe uma perfeita imagem da Fajã Grande, nos anos cinquenta, coincidindo os seus relatos com tudo aquilo que a mãe lhe havia contado.

Certo dia, Glória voltando-se para o primo disse-lhe:

- Primo, quando em minha casa se partia um prato, uma tigela, avariava um mechim, ou sempre que se destruía ou estragava alguma coisa, minha mãe dizia logo: “La se foi para o Maneta”. Segundo ela tudo o que se quebrava ou destruía ia para o Maneta. E eu nunca percebi quem era este Maneta. Primo quem é este Maneta de quem a minha mãe tanto falava?

O primo sorriu e explicou:

- Isso é, na verdade, uma expressão muito usada não só aqui nos Açores mas também no norte de Portugal Continental, para indicar que algo foi quebrado ou destruído. A origem desta expressão prende-se com as invasões francesas. Conta-se que durante as mesmas, um general francês, chamado Loison, que acompanhava o general Junot, comandante supremo da primeira das três invasões que a França fez a Portugal, perdera um braço numa das batalhas anteriores, o que o impedia de combater. Por isso Junot o nomeou como responsável pelas torturas e castigos a aplicar aos prisioneiros de guerra. Ora o general Loison parece que não era nada meigo, pelo contrário era muito cruel e malvado. Os seus castigos eram tão duros e tão violentos que causaram muitas mortes entre os prisioneiros que lhe eram confiados. Por ser tão terrível nas torturas que executava, o povo tinha muito medo dele e chamavam-lhe o Maneta, por não ter um braço. Quando havia o perigo de alguém ser capturado em combate e, posteriormente, ser castigado, ouvia-se logo o conselho: "Tem cuidado, que ainda vais para o Maneta" ou então “Aquele já foi para o Maneta”. A expressão alastrou-se e, mais de duzentos anos depois, ainda é, habitualmente, utilizada.

- E eu que andei toda a vida sem saber quem era aquele Maneta de que a mamã tanto falava! – Exclamou Glória cada vez mais entusiasmada.

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MADRUGADA DE DEZASSEIS DE DEZEMBRO

Quarta-feira, 16.12.15

Era o dia dezasseis de dezembro. A noite estava escura e fria. Era o primeiro dia de Novenas de Natal. Na véspera, por mandato expresso da minha irmã mais velha, havíamo-nos deitado muito cedo. A ordem até foi cumprida com a alegria. Deitar cedo para nos podermos levantar de madrugada e ir à igreja. Na verdade era nessa manhã que começavam as novenas do Natal. Não podíamos nem queríamos faltar

Ainda o velho exemplar da Ansónia Clok de Nova Iorque, encastoado numa peanha, na parede da sala, não tinha dado as cinco da madrugada e já minha irmã nos abanava, sucessivamente, em violentas tentativas de nos afastar dos braços de Morfeu. Sonolentos, virávamo-nos para o outro lado, mas ela insistia. Por fim acordávamos esbaforidos com a persistente convicção de que ouvíamos o repicar dos sinos na torre da igreja. Na cama ao lado, meu pai ainda dormia. Levantar-se-ia depois de nós, mas com outro destino. Ceifar e carregar um molho de erva à lagoa das Covas. Vestíamo-nos à pressa, passávamos pela cara um pingo de água que ficara da véspera no lava mãos da cozinha e partíamos em correria esbaforida. A noite continuava escura e, agora, mais fria. Das encostas do Pico da Vigia e do Outeiro desciam sibilos de vento que se diluíam sobre os telhados das velhas casas da Assomada, perdendo-se na imensidade escura da noite. Das janelas semicerradas de uma ou outra casa saía uma luz trémula, baça e insegura.

Na torre da igreja, os sinos continuavam a badalar, sobrepondo-se aos sibilos angustiantes do vento e ao bramido roufenho do mar. Ao chegar à Praça cruzamo-nos com as tias que vinham da Fontinha. Seguimos juntos, pela Rua Direita, até à igreja. Como que misteriosamente, de todas as ruas e da maioria das casas saiam vultos negros. Como nós, também enrolados em agasalhos. Os homens em grossos casacões, de gola virada ao redor do pescoço, com bonés a proteger a cabeça e as mulheres cobertas com xailes de lã, apertados com as mãos sob o queixo e a tapar-lhes o cocuruto. Alguns seguiam em pequenos ranchos, transportando lanternas de vidro tisnado e luz amarelada, baça e trémula. Outros seguiam só, guiando-se no escuro, amparados a bordões, às paredes ou aos muros dos pátios. O silêncio escuro da noite era apenas entrecortado pelo contínuo silvar do vento e pelo bater emaranhado das passadas nas pedras da calçada.

Finalmente chegámos ao adro e entrámos no templo quase às escuras. Apenas a lâmpada do Santíssimo e, no altar-mor, algumas velas acesas. Mas já estava repleto de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. De repente, meu tio Chico, o sacristão, de opa vermelha, saindo da sacristia tocou, veementemente, uma enorme campainha. Toda a gente se levantou e, de imediato, fez-se um enorme silêncio. O pároco saiu de seguida, todo de branco, envergando, na cabeça, o barrete negro das três quinas. Fazendo uma enorme genuflexão diante do altar-mor, tirou o barrete e entoou:

- Deus in adjuto-o-rium meum intende.

- Um grupo de mulheres desafinadamente respondeu de imediato:

- Domine, ad adjuvandum me festina.

O pároco continuava:

- Gló-ó-ria patre…

***

Começavam, assim as tão desejadas e maravilhosas novenas de Natal, na igreja de São José, da Fajã Grande. Para além do seu conteúdo religioso orientado no sentido de anunciar preparar os fiéis para a celebração de tão majestoso acontecimento cristão, as Novenas do Natal tinham uma característica interessantíssima: eram sempre celebradas de madrugada, muito antes do romper do dia ou do despontar da aurora. Esse ancestral hábito dava-lhes um sentido especial, um significado transcendente, fazendo com que fossem amplamente desejadas por todos. Na verdade em cada uma das manhãs dos nove dias que antecediam o dia 25 de dezembro, alta madrugada, as crianças e os mais novos acordados pelos adultos, levantavam-se muito cedo. Passavam um pingo de água pela cara, que não se devia sair para o frio da madrugada com o rosto quente da cama, vestiam umas roupas selecionadas de véspera e, bem agasalhados porque o frio era muito. De lanterna de petróleo na mão encaminhavam-se para a igreja, acompanhados pelo alegre repicar dos sinos. As ruas enchiam-se de pequenas e trémulas luzinhas e de vultos apressados. O templo, num de repente, enchia-se de gente e iluminava-se com as titubeantes luzes emanadas das frouxas lanternas de candeeiros tisnados, com o pavio muito baixo a formar uma espécie de penumbra e a exalar um mefítico cheiro a petróleo mas como que a simbolizarem que a verdadeira luz havia de chegar em breve.

Entre preces, cânticos e orações ali ficámos uma boa meia hora à espera que os rituais, os cânticos, o sermão e as orações, liturgicamente, apresentados pelo pároco se esgotassem. Depois era o regresso a casa ainda a noite estava escura.

Nesse dia as vacas iriam para perto, por isso, minha irmã, autorizou-nos a voltar para a cama. Ela também interessada nisso… Nem que fosse mais uma pequenina nesga de tempo.

Mas o que todos mais esperávamos era o canto final, o mágico e deslumbrante, verdadeiro precursor da grande festa que dias depois havia de vir:

 

“Quando virá senhor o dia,

Em que apareça o Salvador,

E se efectue a profecia:

- Nasceu no mundo o Redentor?

 

Aquele dia prometido,

Da antiga fé dos nossos pais,

Dia em que o mal será banido,

Mudando em risos nossos ais.”

 

Quando virá senhor o dia,

Da suspirada redenção,

Encha-se o mundo de alegria,

De Deus se faça a encarnação.

***

Nesse dia coube-me ir levar as vacas, ordenhadas por meus irmãos mais velhos, à Pedra d’Água. Ao subir a ladeira do Covão ainda parecia ecoarem os cânticos que pouco antes ouvira na igreja.

Regressei pela Bandeja e pela Fontinha. Às nove horas em ponto estava na escola.

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AS POMBAS E O MUNDO

Sexta-feira, 11.12.15

Quando eu era criança estava condenado a ver o mundo, exclusivamente, da janela da sala da minha casa que ficava voltada a oeste. Minha mãe havia falecido há pouco e eu, apesar dos meus sete anos, era obrigado a permanecer em casa e a associar-me aos adultos a fim de, juntamente com eles, guardar o devido luto, como se isso a trouxesse de volta.

O mundo que eu observava dali era pequeno, simples e diminuto mas belo, sublime, deslumbrante e, sobretudo, repleto de pombas. À minha frente, separada das dos meus vizinhos por bardos de faias do norte e muros de basalto negro, a pequena courela onde meu pai trabalhava, semeando milho e batatas, plantando couves e cebolinho - por vezes quase tudo era devastado e destruído pelas pombas - e onde construíra o estaleiro, o cepo da lenha, o largo do estrume, o estendal de corar a roupa e os currais do porco e das galinhas. E até no estaleiro as pombas se metiam. Um pouco mais além a canada do Pico, com casas de arrumos, palheiros de gado e algumas moradias, onde viviam os vizinhos de meus pais e alguns dos meus amigos. Mais atrás a pequena montanha, raiada de verde e de silêncio, povoada de faias, canaviais e belgas de batata-doce, encastoada numa claridade azulada e maviosa, que se iniciava nas Courelas e que ia subindo muito lentamente até se perder nos contrafortes do Pico da Vigia. Sobrevoavam-na bandos e bandos de pombas, à mistura com melros, lavandeiras e tentilhões. Eram, incontestavelmente, as pombas que viviam em maioria neste meu pequeno e limitado mundo e que, consequentemente, mais prendiam a minha atenção. Ao lado da minha, a casa do meu vizinho faroleiro e, mais além, os telhados duma pequena parte do casario das Courelas, lá para os lados do Areal e que, de tão baixo que era me deixava visionar uma pequena parte do oceano, sulcado, umas vezes por enormes navios, lá longe, a delinear melhor a linha do horizonte, outras por pequenas embarcações costeiras, na safra da pesca. Mesmo em frente à porta da cozinha da minha casa, um pátio de cimento, cuja parte inferior era constituída pelos chiqueiros do porco e das galinhas. Era neste pátio que a minha irmã secava o milho novo quando o velho se acabava no estaleiro. Nos dias de sol quente, logo de manhã, varria muito bem todo o pátio sobre o qual espalhava cuidadosamente o milho que recolhia à noitinha. E eu escalonado, de vara em riste, para ali ficar, durante todo o dia a espantar e afastar as malditas pombas que, loucamente, se atiravam ao milho. No fim do dia, por mais que varrêssemos e por mais cuidado que tivéssemos ficava sempre um ou outro grãozito escondido num canto, aqui e além. Eram esses que as pombas, esvoaçando dos esconderijos da encosta do Pico, com uma avidez desmesurada e com uma incúria premente, procuravam, muitas vezes, em vão.

Ora certo dia, em que a minha irmã decidira não secar milho, assolou-me a ideia de que deveria apanhar uma daquelas pombas que atafulhavam o meu mundo. À mão, seria impossível. Eram pombas bravas, traumatizadas pelas minhas persistentes enxotadelas. Mal sentissem abrir a porta haviam de esvoaçar todas pelos ares numa correria louca. Mas decidi que havia de me vingar.

Fui à loja de arrumos que ficava por baixo da cozinha e trouxe um cesto e duas folhas de espadana. Desfiei-as muito finas e, atando os fios uns aos outros, fiz um enorme cordão. Prendi uma das extremidades à janela da sala e na outra amarrei, pelo meio, um pedaço de pau, devidamente cortado, com uma altura aproximada de três dos meus palmos. Voltei ao pátio e virei o cesto de fundo para o ar, colocando-lhe em cima uma pedra. Depois, com muito cuidado levantei-lhe, levemente a borda, do lado voltado para a janela, até uma altura igual à do pau que amarra na ponta do fio. De seguida ajeitei o cesto sobre o pau erguido ao alto, como se estivesse a calçá-lo, mantendo-o, assim, levemente levantado. Fui buscar meia-dúzia de grãos de milho que espalhei no pátio, colocando três, de forma visível debaixo do cesto. Espalhei os restantes fora, mas perto do cesto e vim esconder-me à janela agarrando o fio com ambas as mãos.

Não demorou muito. Duas pombas, acicatadas pelo milho, vieram pousar no pátio. A medo, talvez desconfiadas de tão grande esmola, foram-se aproximando do milho e do cesto. Enquanto a primeira se ocupava a comer o milho que estava fora, a segunda não hesitou. Muito lesta entrou para debaixo do cesto na mira do milho que lava estava. Com firmeza puxei o cordão, descalçando o cesto que de imediato e com o peso da pedra que tinha sobre o fundo, caiu ao chão, impedindo a pomba de sair. A outra, muito espantada fugiu. Mas a armadilha resultara em cheio.

Na minha ingenuidade de criança, cuidei que a partir de agora tudo seria fácil. Dirigi-me, novamente, ao pátio e, com muito cuidado, levantei um pouquinho a borda do cesto, de maneira que pudesse caçar a pomba sem ela fugir. Eu tentava e ela esvoaçava e esquivava-se. Nesta luta permanecemos algum tempo. De repente e sem me aperceber levantei mais um pouco a borda do cesto e a maldita: zás! Pirou-se. Saindo da prisão muito veloz, em voo picado foi pousar lá longe, juntando-se às suas congéneres, pousadas nos beirais da casa da vizinha Maria do Rosário, nos contrafortes da pequena montanha do Pico, onde tinham os seus esconderijos.

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O NECASPICIAS

Quarta-feira, 09.12.15

Desde que entrámos em casa do senhor Algarvio, ele, a mulher e meu pai não haviam cessado de lamentar a morte da minha mãe. Era sobretudo a dona Josefa quem mais se desfazia em lágrimas e lamentos. Foi o senhor Algarvio que, colocando o braço sobre o ombro do meu progenitor, interrompeu as lamúrias da sua consorte, ordenando, meigamente:

 - Ora vamos deixar coisas tristes e vamos conversar é com este nosso homenzinho, que desde que chegou ainda não disse nada. – E voltando-se para mim com um olhar terno e mavioso:

- Como te chamas?

Como eu permanecesse calado, insistiu

 - Perdeste a língua?

- Álvaro. – Respondi tímido e envergonhado.

Meu pai, vendo a minha atrapalhação, interveio em minha defesa.

- Ele está um bocado mal disposto. É que nós viemos de barco…

- No do Gregório, que foi levar farinha à Fajã? – Indagou o Algarvio

- Sim, sim. Mestre Gregório apareceu lá na Fajã e ofereceu-se para me trazer. O pequeno, quando soube que o trazia comigo ficou todo contente, porque nunca tinha andado no mar. No início da viagem, vinha bem-disposto, mas depois o mar piorou e ele começou a enjoar. Vomitou e passou mal durante quase toda a viagem… Uma desgraça! Sorte foi ter adormecido a partir da ponta do Albarnaz.

Dona Josefa, olhava-me com um misto de ternura e piedade tentando consolar-me:

- Coitadinho! Então deve estar muito fraquinho e cheiinho de fome.

- Ó mulher, - Exclamou o Algarvio com um enorme vozeirão, recriminando o estaticismo da consorte - E tu aí parada a fazer o quê!? – Depois, retorcendo as pontas do enorme bigode que quase lhe enchia o rosto, ordenou em tom imperioso – Vá lá. Vai buscar alguma coisa para esta criança comer.

Dona Josefa, levantando-se agarrada com ambas as mãos às ancas, aproximou-se de mim:

- O menino quer uma tigelinha de leite e uns biscoitinhos que tenho ali dentro, ainda quentinhos? Quer?

Cada vez mais tímido e envergonhado, imerso num mundo a que não estava habituado fiz sinais negativos com a cabeça:

 – Não senhora. Não quero nada. Obrigado.

O senhor Algarvio é que não desistia:

- Ó Josefa, francamente. Isso é pergunta que se faça a uma criança, ainda por cima a uma criança que enjoou toda a viagem, da Fajã até aqui, a Ponta Delgada, que deve estar cheia de fome? – E voltando a retorcer as pontas do bigode, voltou a ordenar com alguma rispidez – Vai imediatamente buscar alguma coisa para esta criança comer. Nunca se pergunta a um doente se quer saúde.

Dona Josefa, arrastando os pés nuns chinelos de veludo acastanhado, entrou na cozinha, chamando:

- Muda! Ó Muda! Despacha-te mulher! Ai meu Sagrado Coração de Jesus! Esta mulher nunca me ouve. Está cada vez mais surda.

O senhor Algarvio, tentando aliviar a minha timidez, continuou:

- Então chamas-te Álvaro. Sim senhor. Bonito nome. Fazes muito bem em acompanhar sempre o teu pai. – E voltando-se para o meu progenitor – Ainda tens dois mais novitos, não tens?

- Tenho uma menina de três e um rapaz de meses. Mas estão quase sempre em casa de minha sogra.

Dona Josefa não demorou. Entrando na sala com uma bandeja com biscoitos e uma tigela de leite, dirigiu-se para mim:

- Ora vamos lá a comer, que deves estar mortinho de fome.

Perante a minha insistente recusa, mais gerada pela vergonha que sentia do que pela falta de fome que tinha, meu pai ordenou:

- Álvaro, não te faças rogado. Se a dona Josefa oferece é de boa vontade. Bebe o leite…

Levantei-me e, levando à boca a tigela do leite, bebi-o sofregamente. Esboçando um leve sorriso e feliz por sentir que eu agora já estava mais à vontade, o senhor Algarvio comentou em tom jocoso:

- Então o leite das vacas cá do Algarvio não é melhor do que o das do teu pai? Quantas vacas tens, agora, António?

- Duas. Mas vou embarcar uma, a Toucada. Já está à engorda. Quero ver se me dá pelo menos um conto, para por água em casa e mandar fazer uma pia para lavar roupa. A água faz muita falta numa casa e a pequena é muito novinha e fraquita, não pode andar a acarretar baldes e baldes de água ou ir lavar sozinha para a ribeira. Tenho uma bezerra deste ano, que vou criar para fazer vaca. – E voltando-se para mim que terminara o bródio: – E agora? Como se diz à senhora Josefa?

Mais animado e recomposto, respondi prontamente:

- Obrigado, senhora dona Josefa!

O senhor Algarvio, continuando a alimentar o seu velho hábito de retroceder o bigode, voltando-se para mim, perguntou:

-Sim senhor! Muito bem, Álvaro. Agora que já recuperaste as forças, diz-me lá: já andas na escola?

- Não senhor. Só tenho seis anos, mas em Março faço sete e a senhora Professora já disse que no dia a seguir entro logo para a escola.

O pai esclareceu:

- Ele já sabe ler. São minhas cunhadas que o ensinam. Depois ouve os irmãos a estudar as lições de cor e aprende tudo.

- Depois de fazer a 4ª classe deves pô-lo a estudar, que ele parece muito inteligente

- Ui! Como, António? Isso é uma loucura. Só se for com conchas de lapas. Já a Amélia também era muito esperta e quando acabou a 4ª classe a senhora professora disse-me o mesmo. Mesmo que fosse aqui na ilha eu não podia… Mas então, ir para o Faial… Nem pensar…

- Isto é uma vergonha! Numa ilha como esta só haver escolas primárias! Não há um liceu! Quem quer continuar a estudar tem que ir para o Faial, para a Terceira ou para S. Miguel. Isto não se admite!...

- As crianças fazem muita falta aos pais para os ajudar nas terras. Olha em toda a Fajã, que me lembre, só duas raparigas é que foram estudar para o Faial.

Enchi-me de coragem e interrompi, orgulhosamente:

- Eu já sei os rios de Portugal todos. Quer ver senhor António: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana. E também já sei os reis da 1ª dinastia e os seus cognomes…

- Álvaro, não aborreças mais o senhor António.

- Deixa lá gosto de ouvi-lo. Além disso, com esta idade e já saber tudo isso não é muito vulgar.

- E rezar? Também já sabes rezar? – Interveio dona Josefa, voltando-se para mim.

- Claro que sei dona Josefa. Até já sei o Pecador em latim e o Necaspicias. Sabe o que é o Necaspícias? É a resposta que se dá ao De Profundis, o responso que o senhor Padre reza quando morre alguém: O senhor Padre diz: “De profundis blábláblá até domine.” E a gente responde: “Necaspicias nevisonis”, três vezes seguidas.

- Louvado seja o Sagrado e Imaculado Coração de Maria! – Exclamou, pasmada dona Josefa: - Até já sabe o Necaspicias.

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O MILHO DA FONTINHA

Quarta-feira, 02.12.15

Naquele ano, meu pai encheu de milho uma terra que tinha na Fontinha, em frente à casa de Tio José Teodósio, junto a um fontanário que ali existia. O terreno era muito fértil, produtivo, fora bem estrumado e o ano bom de milho. A Fontinha produziu milho como nunca. Maçarocas enormes, robustas, admiravelmente suculentas, admiradas e elogiadas por quantos ali passavam e olhavam por cima das paredes.

Perante tão desabitual abundância, que em anos anteriores meu pai nunca enchia aquela terra de milho, meu tio Luís logo se disponibilizou para acarretar tão exuberante colheita para casa, de carro. Criara uns bezerros, agora gueixo e gueixa, fortes e possantes, bons para a canga. Ele um belo modelo de bovino, quase todo branco, manso, robusto, filho da Mimosa, a puxar pela direita e a quem alcunhara de Damasco. Ela lavrada de preto e branco, um projeto falhado de vaca parideira que permanecia teimosamente incólume na sua virgindade, incapaz de parir e de se tornar uma vaca boa de leite como a mãe, a Formosa. Tio Luís, com uma arte e paciência desusadas, ensinara-os e habituara-os na canga que era um regalo. Trabalhavam na perfeição, de dia ou de noite, puxando carros, corsões, lavrando, gradeando sem ninguém diante, o que fazia inveja a muita junta de bois.

Meu pai mostrou algum desinteresse e, inicialmente indeferiu a disponibilidade do cunhado. A terra era muito perto de casa. Sempre acarretara o milho da Fontinha em cestos, às costas. Mas como Tio Luís insistisse, meu pai anuiu e combinou-se o dia.

Meu pai levantou-se muito cedo e, ao amanhecer, quando chegámos, já tinha meia terra apanhada. A meio da manhã a tarefa estava terminada e as belas e amareladas maçarocas jaziam, amontoadas umas sobre as outras, em enormes montículos, à espera do transporte que as havia de trazer até à nossa casa, na Assomada, baldeando-as pela porta dentro, atafulhando a cozinha quase até ao teto. De tarde haviam de ser encambulhadas e dependuradas no estaleiro.

Chegou tio Luís com os gueixos encangados a puxar o carro. A Maria Pedra, filha adotiva de Tio José Teodósio, a quem catrapiscava o olho desde há muito, apareceu, de imediato, por dentro dos vidros e por detrás das cortinas. Mais para se vangloriar junto da amada, talvez para a impressionar e ser admirado, tio Luís não se fazia rogado. Meu pai preferia que o carro estacionasse fora da terra, junto à parede e que o milho, enchido nos cestos, fosse baldeado lá para dentro, de cima da parede. Mas o tio Luís não lhe deu ouvidos. Abriu, de rompante, o largo portal de pedras pesadas e irregulares que só se abria no dia em que se acarretava o esterco e entrou com o carro pela terra dentro, desfazendo milheirais, calcando uma ou outra maçaroca e cravando profundas rilheiras no terreno amolecido pelas chuvas dos dias anteriores.

De seguida o milho foi sendo, aos poucos e às macheias, atirado para dentro da ceira de vimes que o tio Luís havia prendido aos fueiros do carro, até ficar cheia. Depois, escolhendo as maçarocas maiores, tio Luís fez uma espécie de borda falsa, espetando-as umas a seguir às outras, muito bem apertadas e prensadas, o que permitiu aumentar a capacidade da ceira, que se encheu de novo. Tio Luís, pachorrentamente e com alguma arte e sabedoria, voltou a fazer uma outra borda e depois várias outras até terminar no centro do carro, formando assim uma espécie de zigurate do antigo Egipto. Terminada a obra, para encanto meu e mais uma vez contra a opinião do meu progenitor, sentou-me em cima da carrada de milho. De seguida deu ordem às rezes para que andassem e conduziu o carro na direção do portal. Agora, já com a janela aberta, a Maria Pedra observava e admirava, encantada, todas estas operações.

A saída do portal da terra para o caminho era irregular e, para descer a Fontinha, obrigava os bovinos a virar à esquerda, com alguma celeridade, pois o caminho era apertado. Além disso as rezes eram acicatadas pelos desejos cada vez mais evidentes em tio Luís de impressionar a Maria Pedra. Eu, escarrapachado em cima do carro de milho, delirava em deslumbrante aventura.

De repente, a roda esquerda do carro salta sobre um enorme calhau bem encravado no limiar do portal. O carro dá um enorme solavanco e tomba por completo para a direita, espalhando-me a mim e à quase totalidade do milho no meio do caminho. A minha sorte foi de que ao embrulhar-me com as maçarocas, estas serviram-me de almofada protetora, pelo que apanhei apenas umas arranhadelas e um enorme mamulo na cabeça.

Eu chorava. Tio Luís vergastava os gueixos para que se levantassem e culpava-os. A Maria Pedra punha as mãos e rezava. Meu pai barafustava e praguejava:

- Ó alma do diabo, para além de me espalhares o milho quase todo, mais um nada e davas-me cabo do pequeno!

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UM BONECO DE MASSA PARA SANTO AMARO

Segunda-feira, 23.11.15

Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não se apercebessem da abalada e deu consigo quase tresloucada, no meio da rua, imersa numa madrugada ingente e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.

Era Maio e a noite estava muito escura e fria. Júlia cobriu os ombros quase nus com um xaile de lã grossa que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de tiros, prolongando-se por aqui e por além, ecoando nas rochas das Águas e das Covas, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante. Um temor imenso arrasava-a por completo. Mas persistiu.

Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do lado mar, aterrorizou-se mais e desatou numa correria louca, pela canada que dava para o Mimoio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes singelas a vedar os pequenos cerrados de milho, as compridas belgas de batata-doce e uma ou outra courela a abarrotar de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse ainda mais naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-a por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.

Desde há muito que Júlia e António se amavam, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitetando construir, dentro em breve, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam quando soubessem que ali havia muito amor, que havia uma grande paixão e que conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Talvez por isso é que ele tomara aquela abruta e radical decisão. Por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e, por isso mesmo, nunca haviam de autorizar aquele casamento, é que ele, o seu António, decidira partir, em busca da aventura, do sucesso, do necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia nunca concordara com aquela partida, para tão longe, para a América e naquelas terríveis e perigosíssimas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.

Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira, já quase no Mimoio, desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projéteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar contínuo das balas dos azougados artilheiros. A ordem, inequivocamente, era atirar a matar.

Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, do alto do Mimoio, no escuro da noite, apenas clarificada momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, aquele terrífico e dramático espetáculo. Apenas a certeza de que o seu António estava ali, misturada com a esperança de que havia de salvar-se. Nossa Senhora da Saúde havia de o ajudar e se ele salvasse prometeria um boneco de massa a Santo Amaro para o dia da sua festa, em janeiro próximo. E no meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma enorme réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim. Agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice, saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Outros seguiam-lhe o exemplo. Para desespero dos guardas, todos se salvaram. Pouco depois o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste.

O seu António estava salvo e Santo Amaro havia de ter um grande boneco de massa no dia da sua festa!

 

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ÌNGREME

Quinta-feira, 05.11.15

Estafado, exausto, a verter suores por todos os poros, vermelho que bem um pero, o pároco, na companhia do Gervásio, subia a Ladeira do Covão, a mais desnivelada e a mais abrupta ladeira de todas as que possuíam os sinuosos caminhos da Fajã Grande. Situada logo a seguir ao Cimo da Assomada, plantada a este do Vale da Vaca, nos contrafortes do Covão, ligava o antigo caminho da Cuada, das hortas e dos Lavadouros com a Canada do Covão, ou seja com a penhascosa e escarpada vereda de acesso à Pedra d’Água e ao Outeiro Grande.

Acompanhava o reverendo, o Gervásio, muito leste e apressado. Iam ver uma terra de mato lá para os lados do Pocestinho, mas a confrontar com o Outeiro Grande. Por ali, na opinião do Gervásio era bem mais perto. Encurtava-se caminho. Tratava-se de uma pequena propriedade, deixada à igreja por uma benemérita recentemente falecida. O Gervásio com uma relva ali ao lado era quem melhor a delineava, uma vez que grande parta da divisória que a separava de outras propriedades ao redor e cujos proprietários se haviam ausentado para a América, era constituída por malhões. Mas a maioria destes estavam encobertos entre fetos e cana roca que ali cresciam à bruta. Só o Gervásio conhecia aqueles contornos.

A meio da ladeira, o pároco cada vez mais atafulhado em suores, com o lenço de bolso já totalmente encharcado, maldizia a sua sorte e recriminava o Gervásio:

- Não devíamos ter vindo por aqui. Esta ladeira é muito íngreme.

- Não é nam, snhô padre. O snhô está é bem engade! Ela é ´mum inclinada! – Esclarecia o Gervásio muito orgulhoso da sua sabedoria.

- Ó grande paspalho! É ingreme. Não vês que esta ladeira é muito íngreme.

- É inclinada, snhô padre. Ei conheça bem. Passaqui todesos dias!

- Mas é íngreme, paspalho. – E soletrava – Ín-gre-me… - Uma, duas, três vezes

E a discussão prolongou-se até ao alto sem se entenderem ou chegarem a acordo. E o Gervásio tão convencido de que a razão estava do seu lado, que alguns dias depois à Praça, ainda rezingava, glorioso:

- O snhô padre diz ca Ladeira du Quevão é ingreme, mas nã tem razão niuma. Ela é é ben inclinada quele até se cagou tode prá subir…

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publicado por picodavigia2 às 00:05

PREGAR PARTIDAS

Sexta-feira, 30.10.15

O José de Lima era exímio no pregar de partidas. Calmo, bonançoso, bom conservador e amigo do seu amigo não se furtava, no entanto, de se divertir um pouco, sobretudo com aqueles com quem tinha maior amizade e mais confiança. Fazia-o, no entanto, sem magoar ou ofender. Apenas pelo prazer de se divertir. Eu, apesar de mais novo, era um dos seus maiores amigos e mantínhamos, durante os meses de verão, uma cumplicidade recíproca. Convivíamos, conversávamos, sobretudo à noite, uma vez que andando ele a caiar e a retelhar casas durante o dia e ainda por que o pai tinha terras para trabalhar e gado para criar, ele, na verdade e como era costume na Fajã Grande noutros tempos, trabalhava de sol a sol e, por vezes, pela noite dentro. Incontestavelmente eu era uma das maiores vítimas das suas partidas, geralmente inofensivas e por vezes até jocosas.

Certo dia decidi que me havia de vingar.

À tardinha o Lima, como era seu hábito, subia a Fontinha com duas ou três rezes levando-as a uma relva que o pai possuía para os lados da Escada-Mar. Passou à porta da casa da minha avó, onde eu morava e parou um pouco de maneira a que o gado não se distanciasse nem se confrontasse com outro que descesse a rua. Conversámos vagamente e seguiu o seu caminho. Decidi, então, que aquele seria o dia da vingança.

Chamei um miúdo meu vizinho e perguntei-lhe se queria ganhar um escudo. Que sim. A tarefa era simples: fazer-me o favor de ir à Via d´Água, a casa do Senhor José de Lima, avisar a esposa dele, a minha prima Minerva, de que o enteado hoje não ceava com eles. Não esperassem por ele para a ceia, pois ele ia cear em minha casa. Eu sabia que a prima Minerva, sabendo da nossa amizade, havia de acreditar. Além disso, enviar um miúdo a avisá-la era coisa de respeito e nunca uma brincadeira.

O Lima regressou já quase noite, pois nunca se apressava nas suas tarefas. Vi-o passar por entre os cortinados da sala, descer o Caminho de Baixo, a Rua Direita e Via de Água. Quando calculei que estivesse prestes a chegar a casa, segui-lhe as pisadas e, em breve, estava a bater-lhe à porta da sala.

Entrei e começámos a conversar. Na cozinha o pai e a madrasta ceavam tranquilamente. De vez em quando ouviam rumores da azáfama de preparação da ceia. Mas chamar o Lima para o bródio é que nada. Nem o pai, nem a madrasta. E eu a tentar prolongar a conversa de maneira que não desse a entender o que quer que fosse e que a ceia que se desenrolava na cozinha terminasse. Às tantas o Lima começa a olhar para o relógio. Primeiro espaçadamente, depois com frequência, até que muito admirado se levanta, de rompante e, dirigindo-se para a cozinha, reclama em voz alta:

- Ómessa!  Hoje não se janta nesta casa!?

A Minerva ouviu a reclamação e, assomando à porta, de avental ao peito, tenta explicar muito aflita e confusa:

- A gente já ciou. Cuidava que não vinhas cear…

- Não vinha cear… Então porquê?! – Interrogou o Lima muito indignado.

- Por que veio aqui o piqueno do Ângelo do Tisoireire dezê que tu hoje nam vinhas ciá a casa. Que ciavas em casa do….

Nessa altura já não contive a risada e o Lima nem precisou de mais explicações. Apenas, virando-se para mim avisou:

- Vais pagá-las bem pagas… Vais… Óh, se vais!

 

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publicado por picodavigia2 às 00:04

OS VAGÕES

Sábado, 24.10.15

Quando, em plena década de cinquenta, chegaram à Fajã Grande os empreiteiros que iriam construir o troço de estrada entre o Porto da Fajã Grande e a ladeira do Pessegueiro, junto à Ribeira Grande, trouxeram um acervo de material e maquinaria de que não havia memória. Entre esta panóplia de carros, carrinhas, pás, enxadas, picaretas, maças, e muitos outros apetrechos, vieram três ou quatro interessantíssimos e enormes vagões.

Os vagões eram uma espécie de carrinhos de mão, gigantes, que se apoiavam sobre quatro ou seis rodas, do tipo de rodas de comboio, pelo que só podiam deslocar-se sobre carris ou linhas férreas. Depois de desenhado o trajeto, era necessário desfazer os montes e, com o entulho retirado destes, encher os vales, operação que a ser efetuada nos simples carrinhos de mão, novidade também trazida pelos empreiteiros para a Fajã, nunca mais teria fim. O entulho era muito e, grande parte dele era constituída por enormes pedregulhos, incompatíveis com a reduzida capacidade dos carrinhos de mão, que tinham apenas uma roda na extremidade oposta à dos dois cabos que eram transportados apenas por um homem. Os empreiteiros sabiam-no e, por isso, se muniram dos potentes vagões e das respetivas linhas férreas. Um transporte difícil e dispendioso mas compensador. As linhas foram montadas no trajeto ainda virgem da nova estrada e os vagões não paravam, toca para baixo, toca para cima, a carregar o entulho da rocha da Volta do Delgado e a despeja-lo nas terras baixas do Vale da Vaca e do Descansadouro, o de Santo António a ser baldeado nos cerrados do Delgado, o da Volta do Pinheiro a encher os desníveis da Cabaceira e o da Ribeira do Ferreiro e do Pessegueiro a encher e a atulhar o Vale Fundo.

Mas os vagões que circulavam sobre os carris não tinham nenhuma locomotiva ou sequer motor que os locomovesse. Apenas rolavam sobre as linhas, tendo numa das extremidades uma pequena plataforma onde um ou dois homens se podiam dependurar. Quando carregados desciam na direção do povoado e, sobretudo porque carregados, deslocavam-se impelidos pela força da gravidade. Não necessitavam de condução, dispondo apenas de um potente travão, ativado por um dos homens que se pendurava nas traseiras do mesmo e que assim não só lhe controlava a velocidade nos locais mais inclinados como os imobilizava por completo, nos locais indicados para o descarregamento. Para cima é que era o diabo. Eram necessários dois homens parra empurrar cada vagão até ao local onde havia de ser novamente carregado de entulho. Felizmente na subida os vagões iam vazios.

Ora como havia muitas terras de mato e de inhames para aqueles lados, os vagões mesmo cheios com o entulho, lá iam carregando, de vez em quando, um saco de inhames, um molho de lenha ou de incensos, pertença de um familiar ou de um amigo dos que trabalhavam nos vagões. A moda pegou, foi alastrando e os vagões, durante o seu curto reinado, passaram a ser um dos principais meios de transporte dos produtos agrícolas das terras do Vale Fundo, Cabaceira, Cancelinha, Delgado e Santo António. Mas não se ficaram por aqui os interessantes vagões. Sobretudo aos domingos passaram a ser os responsáveis por interessantíssimos passeios que por vezes atingiam velocidades estonteantes. Não faltava quem os empurrasse na subida e muitos eram os que os enchiam na descida, substituindo o entulho. Tornou-se uma moda passear, aos domingos nos vagões. Não gastavam combustível, não se deperdiam e eram bastante seguros.

O entusiasmo foi tanto que até o Eleutério, um pobretanas inocente e meio atoleimado, se decidiu por um passeio de vagão. Entontecido pela rapidez do veículo, não se fartava de rir, atirando ao ar, a determinada altura:

- Neste andar, qualquer dia chegamos à Amerca. 

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BENTA E JERÓNIMA

Sexta-feira, 16.10.15

Desde criança que se haviam colado numa amizade recíproca, inebriante. Nas veredas da inocência foram as mães a juntá-las. Depois elas próprias a caminharem lado a lado para a catequese, para a escola, para o moinho, para a máquina e até para a festa da Senhora dos Remédios, na Fajazinha. Sempre juntas, sempre amigas, sempre cúmplices, galhofeiras, até a Jerónima se casar. A Benta invejou-a. E tanto cismou, tanto hesitou, tanto desesperou que acabou por ficar para tia. E como que fazendo jus ao nome, decidiu dedicar-se às coisas de Deus. Muito de igreja, muito de rezas, muito de missas. Casas paredes meias, seguiam vidas paralelas. Sem se falarem. Não se podiam ver. Metera-se uma ciumeira enorme, entre elas. Domava-as uma inveja arreliadora. Fora o namorico da Jerónima com o filho do José Dias que destruíra toda amizade de outrora e construíra o terrível muro que agora as separava. Dizia-se à socapa que a Benta também gostava do Dias. Alguém os vira acaçapados, muito encostados um ao outro, a abrigarem-se da chuva, junto a uma aba das paredes da ladeira do Batel. Toda a amizade se esmoronou como um castelo de cartas. Depois a Jerónima a mexericar, a inventar, a por aleives e a Benta a dar ouvidos a umas e a outras. Não se podiam ver. Se se encontravam faiscavam lume por todos os lados. Mal se encaravam bramiam um odio recíproco e ameaçador.

Tudo se acamou no dia em que a Jerónima, já com três pimpolhos ao colo, partiu para a América. A Benta respirou de alívio. Mas ou porque a distância amainara o ódio, ou porque as sobras de uma paixão frustrada lhe ativassem os sentimentos, passado um ano estava cheia de saudades, passados dois escreveu-lhe uma carta e, ao fim de vinte anos, quando a Jerónima regressou viúva e dolente decidiu ir visitá-la afim de lhe levar uma palavra de conforto, um gesto de ternura, talvez um abraço de reconciliação.

A América porém mudara a Jerónima. Para além de lhe casar os filhos, levara-lhe o marido, deixando-a sozinha entre mágoas e álcool. Chegou à Fajã domada pela bebida e tresmalhada. Uma sem vergonha desmiolada.

Mas a Benta, que cada vez se santificara mais e que nas suas rezas e meditações percebera que Deus ensinou a perdoar, decidiu ir visitá-la, na tentativa de enterrar para sempre o machado de guerra. Apanhou-a de surpresa. A Jerónima apareceu-lhe à porta muito bêbada e tal e qual Nosso Senhor a havia posto no mundo. Nua.

A Benta nem entrou. Fugiu a sete pés, benzendo-se, persignando-se e gritando bem alto aos sete ventos:

- Aquela mulher está doida! Não tem vergonha! Aparecer assim à porta… in coire…

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O CANDEEIRO DA MINHA TIA ADELINA

Quinta-feira, 15.10.15

Havia na casa da minha tia Adelina, moradora nas Courelas, um candeeiro que me deslumbrava sempre que lá ia e me era dada oportunidade de o observar. É verdade que a minha tia nunca o acendia e eu também nunca ia a casa dela de noite, por isso eu não sabia como seria a luz que dele emanava, a claridade que produzia, o brilho que ainda mais o deveria consagrar. Ela mantinha-o sempre apagado, colocado em cima da mesa da sala como se fosse uma relíquia ou mais um objeto de adorno do que um apetrecho de grande utilidade. Mesmo assim, rodeado de sombras e de mistérios, sem irradiar sequer uma frágil e ténue luz que se pudesse ver, eu adorava aquele candeeiro e das poucas vezes que ia às Courelas a casa da minha tia, ficava perplexo perante aquela preciosidade. Não sei se o que mais me fascinava era o fogão de vidro bojudo, todo pintado com desenhos multicolores como se fosse o vitral de uma catedral gótica, se o pé esguio, estampado de um azul a fazer lembrar o mar e encimada por uma enorme bolha redonda, também ela azul mas ramificada de outras cores e que seria o depósito do petróleo. Era talvez único, talvez o mais belo candeeiro da freguesia que mesmo apagado dele parecia desprender-se e difundir-se uma luz benfazeja, serena e que, apesar de muito ténue parecia atrair e contagiar quantos dele se aproximavam.

Mas havia um enorme mistério acerca da origem deste candeeiro que, estranhamente, estava sempre apagado. De dia e de noite. Na verdade, nunca a minha tia o acendia nem ninguém sabia o motivo por que não se servia dele para iluminar a sua sala nos longos serões de inverno, sobretudo quando a casa se enchia de visitas. Mais, se alguma criança brincasse na sala, junto à cómoda sobre a qual estava o candeeiro, rodeado de fotos antigas e pagelas de santos, logo a minha tia corria a protegê-lo e a implorar à ganapada que saísse dali ou que tivesse cuidado para não lhe partirem o seu candeeiro. Minha tia, na verdade, protegia-o como se fosse um tesouro. E no dia em que eu, já mais crescidote, lhe perguntei, onde arranjara aquele candeeiro e porque não o acendia e o poupava e protegia tanto, minha tia simplesmente respondeu: - Essas perguntas não se fazem, - e mudou de conversa.

Percebi, então que ali, na verdade, havia mistério. Que a minha tia escondia alguma coisa ou não queria que se soubesse a origem daquele belo e enigmático candeeiro, daquela magnífica preciosidade. Até a minha mãe me ralhou quando lhe disse que tinha perguntado à tia Adelina onde o tinha arranjado e disse-me que nunca mais fizesse tal pergunta, pois eu nada tinha a ver com origem dos nossos candeeiros, muito menos com os da tia Adelina ou de quem quer que fosse. Não era bonito eu meter-me na vida dos outros. Mas eu não me continha. Por vezes até sonhava que a tia Adelina me havia de deixar, em testamento, aquele magnífico candeeiro e então sim, eu, para além de o acender todos os dias, havia de descortinar a sua origem e o que ele tinha de misterioso e enigmático e que permaneceu oculto em mim durante muitos anos.

Mas não foi preciso. De tanto me intrigar e de tanto indagar anos mais tarde descobri o mistério. Afinal a origem daquele candeeiro era mesmo inédita e estranha, pois tinha sido retirado do acervo deixado no mar pelo naufrágio do Slavónia, o luxuoso e gigantesco paquete inglês, popularmente designado, na ilha das Flores por "Salavónia" que no dia 10 de Junho de 1909 naufragara, junto à Costa do Lajedo. A tragédia aconteceu, segundo alguns relatos da época, por voltada das três horas da madrugada, num baixio das Flores, a cerca de 25 metros de terra e provocou um enorme alvoroço em toda ilha, muito especialmente nas povoações e freguesias da costa oeste, sobretudo, por se tratar de um navio que transportava centenas de passageiros e um precioso recheio. Segundo rezam as crónicas da altura, alguns dos passageiros ao saberem que o paquete passava perto das Flores, fizeram chegar ao comandante, um pedido escrito para que este alterasse a rota de maneira a que se aproximasse da ilha e pudessem observar, em pormenor, a sua beleza. O comandante acedeu ao pedido e planeou rodear as Flores, pelo sul para depois prosseguir no seu curso original. Mas um forte nevoeiro que se abateu sobre a ilha e uma forte corrente marítima que ali se fazia sentir, terão desviado o paquete da rota prevista, levando-o a encalhar. Consta que todos os passageiros e toda tripulação se salvaram mas apenas uma pequena parte da bagagem foi recuperada, pouca a carga se reouve e o luxuoso recheio ficou soterrado no oceano.

Nos dias seguintes, muitas pessoas, não apenas da Costa e do Lajedo mas também de outras freguesias da ilha terão demandado aquelas redondezas, apesar de a zona estar sob vigilância da Guarda Fiscal, na tentativa de procurar, recolher do mar objetos valiosos e algumas sobras da carga do navio. Além disso, era voz corrente de que, para além de parte da carga, estaria perdida, por ali, uma mala do correio com valores declarados e dinheiro. Não consta que tenha sido encontrada, mas muitos populares recolheram louças, talheres, travessas, pratas, mobílias, camas, portas e candeeiros, entre os quais o da minha tia Adelina, cujo destino, hoje, desconheço.

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A CAIXINHA MÁGICA DA SENHORA MADALENA

Sexta-feira, 14.08.15

A Senhora Madalena vivia na Ponta e era filha do Senhor Afonso, o mais abastado comerciante daquela pequena localidade pertencente à freguesia da Fajã Grande. Depois da morte do pai, o negócio na Ponta como que entrou em decadência e a Senhora Madalena, algum tempo depois de casar decidiu mudar a sua residência para a Fajã, embora ela e o marido continuassem a trabalhar as propriedades que tinham na Ponta, para onde se deslocavam quase todos os dias. Mas a dona Madalena tinha o gene do negócio que lhe havia sido transmitido pelo pai e, ao fixar residência na Rua Nova, alugando uma casa apalaçada que existia naquela artéria, mais pequena rua da Fajã Grande, decidiu montar negócio ali por perto, fazendo frente aos quatro comerciantes existentes na freguesia: a Senhora Dias, Martins & Rebelo sob a orientação do Senhor Roberto, a Firma sob a orientação do Senhor António Augusto e a Senhora Bernadete. Para tal adquiriu um terreno nas traseiras da Casa do Espírito Santo de Baixo no qual construiu, junto à empena sul e atrás do fontanário ali existente, um pequeno edifício exclusivamente dedicado ao comércio. O negócio da Dona Madalena floresceu, fazendo frente aos dois gigantes, a Senhora Dias e Martins & Rebelo, enquanto a Senhora Bernadete e a Firma enfraqueciam a olhos vistos.

Na sua loja a Senhora Madalena vendia de tudo e até da Ponta vinha gente ali fazer as suas compras. Aliás, a dona Madalena não se poupava em simpatia, disponibilizando a todos muita atenção e muito carinho, transformando tudo isso numa profícua bandeira publicitária, condição inequívoca para o notório crescimento do seu negócio.

Mas o que de mais interessante e apelativo, para a ganapada e não só, a Dona Madalena tinha no seu, na altura, moderno estabelecimento comercial era uma curiosa e quase mágica maquineta, sempre disponível a todos os clientes e visitantes. Quem pagasse meio escudo tinha direito a dar um furo com um pauzinho numa espécie de ecrã de uma caixa cheio de números. Ao escolher um número, o interessado que pudesse esbanjar cinquenta centavos, dava um furo e saía, por baixo, uma bolinha de uma determinada cor. Era esta cor que decidia o chocolate a que o cliente tinha direito. Uns chocolates eram muito pequeninos, mas iam crescendo, crescendo até um único, muito grande, embrulhado em papel dourado e que toda a gente almejava que lhe saísse. Não se sabia como, mas ou a dona Madalena ou a própria caixa possuía um truque que retardava a saída do chocolate grande, pois só assim se mantinha o interesse em ir dando os furos sucessivos, na mira do saboroso chocolate gigante. Como a escola primária ficava ali ao lado, na Casa do Espírito Santo, nos recreios a dona Madalena bem incentivava a ganapada:

- “Meninos, venham dar um furinho.”.

O problema, no entanto, é que a maioria da criançada nunca tinha os cinquenta centavos para dar o furinho na caixinha mágica da Dona Madalena.

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A MORTE DA VELHINHA

Domingo, 09.08.15

aConta-se que antigamente, numa casa muito isolada lá para os lados do Areal, muito próximo do mar, vivia, sozinha, uma pobre velhinha. Nunca se casara, nem tivera filhos e não se lhe conheciam parentes. Apesar de muito pobre, era muito honesta e bondosa, sempre disposta a fazer o bem e a ajudar os outros.

Certa noite um grande temporal desabou sobre todo o povoado, do Cimo da Assomada ao Outeiro da Ponta, assustando e amedrontando todos os que dormiam nos seus pobres e frágeis casebres, feitos de pedras soltas e cobertos de palha. O vento era fortíssimo, a chuva caía a cântaros, o mar rugia assustadoramente, os trovões ribombavam devastadoramente e os relâmpagos eram tão fortes que rompiam a escuridão, iluminando o pequeno povoado como se fosse dia.

Na sua casa, a mais pobre e isolada do lugarejo, a pobre velhinha, tolhida de medo, não pregara olho até altas horas da madrugada. De repente bateram à porta, três pancadas muito fortes. Muito aflita e assustada, a velhinha deu um salto na cama e levantou-se. Mas, de seguida, aquietou-se e voltou a deitar-se. Pouco depois voltaram a bater à porta. Três pancadas. A velhinha benzeu-se: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. De seguida, cuidando que fosse alguém acossado pelo temporal, a necessitar de ajuda, a pedir abrigo, levantou-se e foi abrir a porta. Daria abrigo na sua casa a quem quer que fosse e que andasse ao relento àquela hora da noite, debaixo daquele temporal. Talvez algum pescador… Talvez algum náufrago,… Alguém que se tivesse perdido.

Mas nada disso. Era um homem ainda novo, de aspeto resplandecente como um anjo, com uma saca de serapilheira a fazer de capucho, todo encharcado dos pés à cabeça. Vinha pedir-lhe para ir com ele e ajudá-lo a acudir à sua mulher que estava a parir um filho. A criança entalara e não havia maneira de nascer. A pobrezinha já estava assim há muitas horas e ele não sabia que fazer, nem tinha ninguém mais perto a quem pudesse pedir ajuda. Só ela o podia ajudar e evitar que a mulher e o filho morressem.

A velhinha ao princípio hesitou. Como poderia ir debaixo daquele temporal! O tempo estava horrível, a chuva caía a cântaros e o vento soprava tão forte que havia de a derrubar. A sua avançada idade não permitia que saísse àquela hora de casa, debaixo daquela tempestade. Decerto que morreria pelo caminho. Tinha tanto medo!

Mas como o homem insistisse e, com os olhos rasados de lágrimas, lhe pedisse que, por amor de Deus, o acompanhasse, que fosse com ele, a velhinha comoveu-se e, colocando um grosso xaile sobre os ombros e um lenço de merino na cabeça, decidiu acompanhá-lo.

Partiram. Os trovões pareciam agora mais fortes, os relâmpagos mais intensos e o vento ciclónico. A chuva caía como Deus a dava e os caminhos pareciam rios cheios de água. Mal saiu de casa a velhinha ficou toda molhada e uma rajada de vento mais forte atirou-a ao chão. Levantou-se e continuou, a muito custo, a caminhada. Pouco depois voltou a cair e desejou voltar para casa. Mas o homem suplicava, chorava e pedia-lhe que não desistisse de o ajudar a salvar a sua mulher e o seu filho. Na sua enorme agonia, prometia que ela seria a mulher mais rica do mundo se lhe salvasse a mulher e o filho.

Depois de uma longa caminhada por caminhos e veredas desconhecidos, chegaram junto da Rocha, enorme, altiva e abrupta. Mas era muito escuro e a velhinha não via nada. Apenas ouviu o homem bater como se estivesse a bater a uma porta.

De repente a velhinha viu a Rocha abrir-se e lá dentro um palácio todo iluminado como aqueles das estórias das Mil e Uma Noites que ouvira contar quando era criança. Sempre acompanhada pelo homem entrou no majestoso palácio. Parecia-lhe que estava no Céu. Um luxo como ela nunca pudera imaginar.

No meio do seu deslumbramento viu uma linda mulher que estava a parir com grande dor e sofrimento um filhinho. A velhinha arregaçou as mangas, foi encher uma bacia com água, pegou numa toalha e foi ajudar a mulher. Pouco depois nasceu um lindo menino. Mãe e filho haviam sobrevivido e estavam de excelente saúde. Choraram todos de alegria e contentamento. Ao longe ouvia-se uma música suave e bela. Era como se fossem os anjos a cantar. O pai, agora muito feliz e agradecido, levou a velha a uma sala onde se amontoavam pedras preciosas, ouro, pratas e joias. Perante o seu pasmo, o homem disse-lhe que pegasse e levasse as moedas e as jóias que quisesse mas que nunca dissesse quem lhe dera tão grande tesouro e como arranjara tanta riqueza. A velhinha, porém, em nada pegou e, como a tempestade já amainasse e um novo dia tivesse começado com um Sol radioso, decidiu voltar para sua pobre casa. O homem opôs-se e tanto lhe pediu e tanto insistiu que a velhinha ficou a viver com eles, para sempre, naquele rico e belo palácio, a ver crescer o menino que ela salvara.

No dia seguinte, umas mulheres que iam trabalhar os campos e que passavam em frente à casa da velhinha, vendo a porta e as janelas fechadas estranharam. Ela levantava-se, todos os dias muito cedo e abria sempre as janelas ao raiar da aurora. Bateram e voltaram a bater à porta mas, de dentro, ninguém respondeu. Assustadas, abriram a porta e entraram. A velhinha estava morta na sua cama. Morta de susto com o terrível temporal daquela noite.

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