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SÓNIA MIRANDA NA CUADA

Sábado, 03.01.15

Após terminar a sua apresentação em público, durante mais de seis meses, com a peça Espera pela Tua Vez, a atriz Sónia Miranda encontrou, numa das casas rurais da Aldeia da Cuada, na Fajã Grande das Flores, um espaço feito à sua medida para o necessário e merecido repouso, após uma ininterrupta e desgastante atuação.

O que mais encantou esta jovem atriz portuguesa, neste magnífico recanto paradisíaco açoriano, para além do silêncio e de um misterioso envolvimento com a natureza, na sua pureza original, foi a proximidade do mar. “Se o mar chama por mim não posso resistir ao seu apelo”, declarou a atriz à revista francesa Succès.  Mas nas Flores em geral e na Fajã Grande em particular, se o mar, por vezes, bravo e altivo impede que tome banho nas suas águas límpidas e puras ou se zarpe de barco até aos recantos da baía dos Fanais e ao ilhéu de Maria Vaz ou até de dar uma volta à ilha, as serenas e doces águas dos poços do Bacalhau, da Alagoinha e de tantos outros, alguns ali bem perto, podem embalar-nos em encanto e fantasia. Ao redor do pequeno povoado, cenários deslumbrantes e paisagens maravilhosas. O paraíso ideal para descançar.

O trajecto pedestre e que não pode ser feito de outra forma, após a viagem do Aeroporto de Santa Cruz até ao Vale Fundo, entre a estrada e o antigo povoado, agora transformado em resort, é curto, mas suficientemente esclarecedor em termos de paisagem natural, daquilo que a atriz poderá encontrar naquela belíssima ilha açoriana e aguça-lhe o apetite para pequenos passeios pedestres, de que tanto ela gosta, nos arredores do pequeno planalto, onde se localiza a aldeiea turística. Ali perto, o alto da Eira da Cuada, com a secular Pedra da Missa, a desfrutar de uma bela vista sobre o vale da Fajãzinha e o oceano. De relance, pode passear no silêncio deserto das ruas empedradas, ladeadas por muros rústicos e os pátios de pedra do velho mas recuperado casario, outrora casas habitadas e palheiros de gado que, dourado por um radiante sol outonal, deixa saudades a quem ali se fixa, mesmo que seja por uns escassos dias. Com a Ribeira Grande aos pés, a esplanada do restaurante Por-do-Sol, jã na Fajãzinha, mas ali bem perto, é um porto seguro para Sónia sacear-se dos melhores peixes, carnes, queijos e petiscos que a ilha produz. Depois de um revigorante mergulho no mar, nas magnícas águas do cais da Fajã Grande, ou de um passeio de barco, nada melhor do que ganhar novas energias com a mais-valia gastronómica da ilha – o peixe, nomeadamente, o cherne,

Aberto aos fins de semana, a atriz, que não se demorará por ali mais do qur uns escassos oito dias, aproveitou o primeiro sábado após a sua chegada para ali se deslocar e saborear as especialidades da casa, toda ela elaborada à base de produtos locais e tradicionais; peixe, lapas, carne guisada, feijoada, algas marihas, linguiça e morcela. A atriz começou pelas  tradicionais tortas de musgão. De seguida e enquanto saboreava umas rodelas de morcela e linguiça intercaladas com pedacinhos de bolo do tijolo, Sónia recordou as suas origens e formação teatral. “Nasceu em Mirandela, mas, em miúda, passava ali muito pouco tempo, apenas no mês de Agosto. Os pais, pouco tempo depois de ter nascido, emigraram para a França, fixando-se nos arredores de Paris. Já adulta regressou a Portugal, desta feita para estudar teatro em Lisboa, onde se fixou definitivamente e onde trabalha”. Uma bela posta de cherne grelhado com batata e um cativante molho cru interrompe o desfilar de memórias. Adoçada a boca com um belíssimo pudim de laranja Sónia parte, desafiada em subir a rocha dos Bredos, até à mítica cruz da Caldeira. Mas aina é cedo e o Sol muito quente. Umas horas passadas no Rossio, a ouvir o canto dos pássaros e os murmúrios das fonts são lenitivo para a subida.

O regresso à Cuada, até o percurso pedestre é de automóvel. Espera-a o silêncio, o mistério, a serenidade e o encanto.

Velozes com o vento os dias passam rápidos. Chega ao fim o idílio. Sónia promote voltar… “Se puder, claro.”

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publicado por picodavigia2 às 09:54

NATAL EM ENTREVISTA

Terça-feira, 30.12.14

Jovem professora, recentemente colocada em Oleiros de Cima, com um horário semanal de 12 horas, mãe de uma filha de dois anos, Natália Semedo está obrigada a uma deslocação diária de mais de cem quilómetros entre a sua residência e o local de trabalho. Além disso, está forçada a entregar a filha aos cuidados de uma senhora que, apesar de merecer a sua confiança, é uma desconhecida, por não haver jardins-de-infância na localidade. O marido trabalha numa pequena empresa de construção civil e recebe pouco mais do que o ordenado mínimo, pese embora consiga algumas horas extraordinárias e fins-de-semana, o que lhe permite duplicar o frágil e débil ordenado. Apesar de tudo, Natália, o marido e a filha viveram um Natal feliz e repleto de tradições, conforme o revelou na seguinte entrevista.

Pico da Vigia 2 – O seu Natal? Foi feliz.

Natália Semedo – O meu Natal, aliás o “nosso” Natal foi muito feliz. É verdade que pela primeira vez o vivi separada de meus pais e dos pais do Cristiano, dado que, este ano, fomos obrigados a nos mudamos para muito longe das residências deles. Mas em contrapartida vivemos o Natal, pela primeira vez, sozinhos, com a nossa filhinha. A longa distância, as dificuldades com que vivemos e a neve impediram-nos de nos deslocarmos à terra onde nascemos. Ficamos tristes por isso. Mas o viver o Natal pela primeira vez sozinhos, como família, trouxe-nos uma enorme alegria

P V 2 - Natal com frio ou com sol?

N S – Sempre adorei o frio e a neve do Natal. Quando decidimos mudarmo-nos aqui para o sul, cuidava que havia de ter um Natal mais quentinho. Afinal este ano o frio, pelos vistos atingi-nos a todos.

P V 2 – Pai Natal ou Menino Jesus?

N S – Ainda sou do tempo em que, na aldeia onde nasci, todas as crianças acreditavam que era o Menino Jesus que trazia os presentes. Depois tudo se modificou. Rapidamente, a atraente e bondosa imagem do Pai Natal cresceu, ultrapassou as grandes cidades chegou às mais pequenas e isoladas aldeias. Tudo se transformou e hoje nenhuma criança resiste à simpática figura daquele velhinho vestido de vermelho, de longas barcas brancas e carregado com sacos cheios de presentes com que nestes meses antes do Natal persiste em todos os meios de comunicação social. Nós, adultos acompanhamos, com muito amor e carinho, este fantástico sonho das crianças.

P V 2 - Esperar pela manhã ou abrir os presentes à meia-noite?

N S – A resposta é muito semelhante à anterior. Antigamente este salutar reboliço do Natal era menor e nós adormecíamos, com facilidade, embalados pelo sonho de acordar na manhã seguinte e ver, junto ao presépio, uma boneca, um carrinho, um conjunto de cozinha ou um embrulho de figos passados. Hoje os ruídos e as imagens são tantas que não é fácil resistir. Muito antes da meia-noite está tudo aberto. Em pequena, eu e os meus primos, não resistíamos ao sono e só abríamos as prendas de manhã.

P V 2 - Cânticos de natal? Sim ou Não?

N S – Adoro-os! O Natal sem eles não era Natal. Alguns são deliciosamente belos e duma musicalidade adorável. E o interessante é que só por altura do Natal têm este sabor mágico. Sempre enchi a minha casa com luzes e cânticos no dia de Natal. Vou continuar a fazê-lo, tentando deixar este legado à minha filha. A Música de Natal é eterna e transmite-se de geração em geração..

P V 2 - Qual o menu da consoada? Deu continuidade às tradições que trouxe da sua aldeia?

N S - Na minha casa sempre se comeu bacalhau com batatas, ovo e couves, na noite de Natal, como era tradição na terra. No dia de Natal imperava a roupa velha e mais tarde, também, o cabrito assado no forno. Nos doces tinham lugar na mesa as rabanadas, os formigos, as filoses de abóbora e o bolo-rei, claro. Neste nosso primeiro Natal abdicámos do cabrito, até porque nem temos forno de lenha. Em contrapartida introduzimos a carne de peru, sob a forma de bife, sobretudo pela Joana, um pouco alérgica ao “fiel amigo”. Mantivemos todos os doces.

P V 2 – E no que a prendas diz respeito? O que recebeu ou gostava de ter recebido neste Natal?

N S – A melhor prenda que tive foi a de estar com a minha família, ou seja com o meu marido e a minha filha. Quando criança, em casa dos meus pais, passávamos este dia todos juntos. Quero manter essa tradição de estarmos juntos. Em relação a prendas propriamente ditas, a situação que vivemos não nos permitiu concretizar vontades. Apenas tentámos perceber os desejos da Joana. Felizmente e sem grandes gastos, conseguimos concretizá-los quase por completo. Aproveitamos a época para comprarmos algumas roupas e im ou outro utensílio necessário para a nossa casa.

P V 2 – Se pudesse escolher onde gostava de passar o ano?

N S – Precisamente onde e com quem passei o Natal.

P V 2 – Desejos para 2015?

N S – Só dois: saúde para a minha família e paz para o mundo.

 

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publicado por picodavigia2 às 21:12

A PADEIRINHA

Quinta-feira, 25.12.14

Era uma vez um rapazinho chamado Carlos que vivia sozinho e trabalhava como guardador de sonhos, trabalho difícil, cansativo e extenuante o de manter bem vivos os sonhos dos outros e, sobretudo, os seus. Mas Carlos não se importava com a dificuldade do trabalho, dado que, em contra partida, todas as pessoas que conhecia e de quem guardava os sonhos, eram muito simpáticas para ele, pois enquanto passeava pelas ruas, as pessoas aproximavam-se dele e contavam-lhe os seus sonhos para que os guardasse. Assim, Carlos estava sempre tão ocupado com os sonhos dos outros que tina muito pouco tempo para se ocupar e guardar os seus.

Certo dia aproximou-se dele uma bela padeirinha muito simpática, com um sorriso no rosto, sempre disposta a partilhar os seus sonhos e fantasias. Ao vê-lo, exclamou, de imediato:

- Gostava tanto de poder ficar aqui um bocadinho e partilhar contigo os meus sonhos, talvez te os entregar para que me os guardes.

Ela nem por sombras sabia que o trabalho dele era o de guardador de sonhos e por isso ficou muito admirado quando Carlos lhe pediu dinheiro como forma de pagamento por lhe guardar os sonhos. Mas ela não tinha dinheiro para lhe pagar e, por isso, como o Natal estava próximo, propôs-lhe:

- Não tenho dinheiro para te pagar. Mas vou pagar-te doutra forma. Convido-te para vires passar a Noite de Natal comigo…

Carlos aceitou e aguardou, ansiosamente, que a noite mágica chegasse.

Finalmente chegou e Carlos dirigiu-se para a morada que a padeirinha lhe indicara. Foi ela que o recebeu, juntamente com o pai:

- Pai, este é o meu amigo Carlos. Ele é guardador de sonhos! Como recompensa por guardar os meus sonhos, convivei-o para vir passar o Natal connosco. Assim ele vai ter a oportunidade de guardar o mais belo sonho da minha vida e da dele, o sonho de um Natal muito feliz, do qual ele nunca mais se esquecerá…? Sabes, ele não tem família e não pode celebrar o Natal com ninguém porque vive sozinho…

O pai sorriu e disse:

- Claro que podes vir consoar connosco, Carlos, és muito bem-vindo. Mas agora vamos depressa, senão o peru ainda arrefece

Enquanto a padeirinha corria para o quarto para vestir o vestido mais bonito que tinha, o pai levou Carlos para a cozinha onde estava a mãe muito atarefada a preparar uma deliciosa consoada e que ao vê-lo logo o abraçou com muito carinho.

Pouco depois, sentaram-se todos à mesa repleta de louças e talheres a brilhar. No meio uma enorme travessa com um peru recheado e a fumegar. Ao redor, filoses, rabanadas, formigos, aletria e muitas outras gulodices.

Antes de começar o repasto, a mãe da padeirinha levantou-se aproximou-se de Carlos e, debruçando-se sobre ele, apertou contra o peito e, com os olhos rasos de lágrimas, exclamou:

- Bem-vindo à nossa casa, Carlos! Feliz Natal… Nenhuma criança deveria passar um Natal sozinha.

Depois, pegou-lhe na mão e seguidos pela padeirinha e pelo pai, entraram todos numa sala – a sala mais bonita que Carlos alguma vez tinha visto. Num dos cantos estava uma maravilhosa árvore de Natal enfeitada e junto à qual havia muitos presentes, que todos muito animados desembrulharam.

Foi o mais belo sonho que Carlos guardou.

 

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publicado por picodavigia2 às 21:03

A SEREIA E O PESCADOR

Sexta-feira, 12.12.14

Era uma vez um pescador que, certo dia, na sua ida para o mar, a fim de se dedicar à faina diária, ao chegar junto aos rochedos do baixio, ouviu um choro muito triste. De imediato parou e, pondo-se à escuta, percebeu que o choro vinha duma pequena furna que se encontrava ali perto entre as rochas negras. Seguindo na direção da furna, aproximou-se da entrada, espreitou e viu, lá dentro, uma linda sereia a chorar. O pescador, condoído com tamanha dor mas encantado com tão grande beleza, embora um pouco hesitante e tímido, entrou na furna e aproximando-se daquele estranho mas sublime ser, perguntou:

 — Porque estás assim tão triste?

A sereia, erguendo-se, explicou que tinha vindo até à praia e que sem que se apercebesse, a maré tinha descido. Estava ali, isolada, triste porque com a maré baixa não conseguia regressar para o mar. Um pouco a medo, pediu ao pescador que a levasse para o mar.

O pescador, cada vez mais nervoso por se aproximar de um ser tão belo mas estranho, aceitou o pedido, dizendo:

 — Levo-te, sim, se tu em troca voltares aqui amanhã para que eu te possa contemplar mais uma vez.

O choro da sereia acalmou-se. Com um suave gesto de cabeça concordou e, deslocando-se a muito custo, aproximou-se do pescador, a fim de que lhe pegasse ao colo e a levasse para o mar. O pescador, cada vez mais admirado com o que encontrara, pegou na sereia com cuidado e levou-a até ao mar, onde ela logo mergulhou com agilidade e graça.

No dia seguinte o pescador voltou ao mar. Passado pouco tempo a sereia emergiu das águas, conforme o combinado. Muitas outras vezes o pescador voltou a passar pelo lugar onde encontrara a sereia. Algumas vezes ficava parado à espera da sereia e pouca depois ela voltava, outras, porém, ficava horas a fio à espera e ela nunca aparecia. E um dia, finalmente, a sereia partiu e nunca mais voltou.

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publicado por picodavigia2 às 09:08

ENSEADA DE CRISTAL

Sexta-feira, 05.12.14

Açoriana de nascença emigrou muito nova para os Estados Unidos, acompanhando os pais, numa estranha e descodificada aventura, porém, não se esquecendo nunca de que os Açores eram a sua terra e as Flores a sua ilha. Nascida debaixo de rochas, embalada entre os murmúrios das brisas matinais, alimentada com a seiva dos maroiços, saltitando sobre as rochas negras dos baixios, mantém-se uma verdadeira açoriana dos sete costados. Com o rosto ao vento, traz no olhar o murmúrio das ribeiras e nas veias corre-lhe o ancestral sangue dos avós. Teima em manter os cabelos soltos, ao vento e a embrenharem-se nos meandros das ribeiras e nos valados dos grotões. Mantém a alegria de viver e segura, nas palmas das mãos, a infinita ternura das manhãs de primavera. Herdou a frescura dos regatos e guardou, em silêncio, o suave vaivém das marés. Dos primórdios do povoamento da ilha houve nome e agarrou-se à vontade de crescer, de se tornar vibrantemente enternecedora, em terra alheia. Fez seu lema a vontade de mudar o mundo. Mas a sua maior herança foi a estonteante viagem que fez, atravessando mares e oceanos, balouçando-se sobre as ondas, embalando-se nos estonteantes gritos dos vulcões. Brincou com as conchinhas da praia, procurou grilos em luras, saltou à corda, rolou o arco e sujou o rosto com terra ressequida. Correu por canadas e veredas, a pé descalço, subiu montes e outeiros e espreitou, de madrugada, o nascer do Sol. Brincou com bonecas de trapo e cabeça de loiça, construiu cadeirinhas de junco, porquinhos de batata-doce e sentou-se à janela a observar o voo titubeante das gaivotas. Ao sol e à chuva foi levar os bois ao pasto, alimentar o porco no curral e juntar, na cerca, os ovos das galinhas. À tardinha, misturava o seu canto com o dos tentilhões a respigarem os trigais e sentava-se, ao serão, no escuro da cozinha a ouvir as estórias da avó. No fim dava-lhe as boas noites e adormecia no seu regaço.

Voltava ao mar sempre que queria e banhava-se nas suas águas, transformando-se numa espécie de sereia reluzente. O bafo das marés acariciava-lhe o corpo e os caranguejos lambiam-lhe o suco das feridas. O mar era de lã e a água tinha perfume de alecrim. Deitou-se em praia deserta e, numa manhã de bruma cerrada partiu. Partiu para uma terra longe e distante mas que decidiu nunca ser sua.

Tornou-se mulher, senhora e dona. Recheou-se de poucas palavras e fez do silêncio o baluarte da sua defesa. Mas o que nunca se apagou e jamais se apagará da sua memória é apenas o mar e aquela pequena enseada mítica e de cristal, onde, em criança, misturava o seu corpo, meigo e doce, com a doçura fresca da água.

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publicado por picodavigia2 às 09:13

RIO SECO

Segunda-feira, 24.11.14

Carla nunca entrara no elétrico tão assombrada. A rua parecia-lhe uma nuvem de espuma a desfazer-se entre labaredas de silêncio, as pessoas vultos de árvores sem folhas, o café, onde se encafuara a tarde inteira, um túnel sem luz e sem fluxos de esperança. Encontrava ali, todos os dias, aquele sujeito frio, absorto, distante, a resvalar entre jornais, sem levantar sequer os olhos para a televisão, muito menos para ela. Apenas lhe sorrira uma vez, uma única vez, ao cruzarem-se na porta de entrada. De resto, aquela pasmaceira institucionalizada.

Carla acabara de se escapulir de um casamento curto, amargo, permanentemente ameaçado em desfazer-se. Um pesadelo que lhe trouxera a decisão de não se emaranhar noutro. Mas que diabo, uma mulher é uma mulher, sente, anseia, suspira, deseja, quer. Toda a sua adolescência já suportara o trauma de ser filha de pais divorciados. Isso marcara-a, impingira-lhe uma espécie de carácter sacramental. Apesar de tudo e, talvez por isso mesmo, sonhara sempre com um casamento feliz. Ser mãe. Mas tudo se desfizera e tudo se apagara. Agora, um homem, fosse ele quem fosse, havia de lhe interessar apenas ao convívio, às saídas à noite e até, eventualmente, a uma amizade séria, decente. Mas a verdade é que sexo em condições dignas, não seria de esbanjar

Talvez fosse essa circunstância que a levasse a olhar aquele homem com tanta insistência. Era atraente, simpático, bonito, desejável, mesmo sexy e não tinha aliança. Antes do casamento e do namoro com o Jorge envolvera-se em três relações, profundas, sublimes, mesmo divinais mas que pouco mais tinham do que sexo. O amor, amor verdadeiro viera com o Jorge e dera no que dera. Família, amor, filhos tudo se esmoronara como um castelo de cartas. Talvez se tivesse amado a sério um dos primeiros tudo teria sido diferente. Agora, apenas o trabalho e uma vida fútil, no meio de tantos homens e mulheres que, como ela, batalhavam num viver inócuo, martelado, alvoroçado apenas por uma ou outra aventura momentânea. Pouco a diferenciava de muitas colegas fúteis que conhecera na Faculdade ou daquelas que, cheia de dificuldades, medos e temores, labutavam, dia a dia, na fábrica, em cujo escritório pontificava.

Mas, apesar de tudo, não podia deixar de reconhecer que, no seu íntimo, de vez em quando, parecia subsistir uma névoa esbranquiçada e límpida que se consubstanciava no desejo de constituir uma família sólida, diferente daquela em que fora criada, cheia de ódios, ameaças, discussões, a desembocar num divórcio litigioso. E aquele, o indiferente, o apático, o absorto no jornal, podia muito bem ser o que havia de se transformar no seu novo marido. O seu libertador.

 

Carla foi mãe de um casal, cujo pai foi o homem do café e a sua vida mudou. A fábrica ruiu e Carla mudou de emprego, de casa e até de cidade. Agora havia eu conjugar as exigências da escola com a vida familiar, o marido e os filhos. Apesar de tudo era feliz e amava.

Mas nem a felicidade nem o amor são eternos. Gastam-se, desfazem-se e deixam-se abalroar por sentimentos estranhos e inexplicáveis. No sufoco da escola era o colega de grupo o único que a compreendia, que a ajudava, que a animava, que a fazia sorrir. Com ele partilhava o gosto do trabalho e alegria da profissão, a excelência da vida e a sublimidade da amizade, enquanto o marido ia dando sinais de desgaste, de afastamento, de se sentir preterido. Verdade é que a vida deles como casal havia parado, cristalizado. Tornara-se monótona, morna, desinteressante, com rituais obrigatórios e atitudes convencionais. Carla sentia que o colega, também ele a desmoronar um casamento, permanecia em cada hora, em cada dia, em cada momento, em cada espaço e em cada local, no seu pensar, no seu agir, no seu viver. Tentou inverter a marcha mas não conseguiu. Era tarde, muito tarde.

Outro divórcio era impossível. Havia os filhos e ele, agora parecia ter regressado à pasmaceira do tempo do café, não se importando com nada nem com coisa nenhuma. Conhecia os sentimentos dela, mas pouco se importava. Não havia nem barulhos nem discussões. Apenas havia silêncio. Bastava que ela se mostrasse sua mulher sem o ser, que lhe criasse e educasse os filhos.

Os anos foram decorrendo sem amor, sem felicidade. Carla conformou-se, adaptou-se. Tornou-se uma pessoa diferente. O colega com quem continuava a partilhar vivências e sentimentos estava sempre com ela. Em pensamento. Em casa, na rua, nos fins-de-semana. E era a ele que ela se entregava nos sonhos de amor, como se estivesse voando sobre um rio seco, sem água.

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publicado por picodavigia2 às 10:04

A MATANÇA

Quinta-feira, 04.09.14

O Silvestre todos os anos, uns dias antes do Natal, matava um porco. Engordado ao longo do ano com os cuidados excessivos da mulher que passava horas e horas a alimentar o bicho, os porcos que o Silvestre matava em cada ano eram coisa que de se ver. Grandes, gordos, pesados, com uns bons palmos de toucinho no lombo, os porcos do Silvestre eram sempre muito gabados por todos.

Para a matança, um verdadeiro dia de festa, o Silvestre convidava sempre os familiares e os amigos, muitos amigos. E no dia da matança, a casa do Silvestre enchia-se como nunca. Muitos ajudavam-no a apanhar o bicho, a meter-lhe a faca, aparar o sangue, lavá-lo, raspá-lo, barbeá-lo e até a abri-lo. Depois de um lauto almoço, onde não faltava, inhames, peixe assado, polvo guisado, molha de carne e até bifes de toninha, tudo acompanhado com o vinho de cheiro que o próprio Silvestre ia buscar à adega, era o “desfranchar” do suíno, esquartejando-o, partindo, cortando, serrando, picando a carne para a linguiça, derretendo os torresmos. As mulheres numa azáfama medonha, a lavar tripas, a preparar as morcelas e a fazer os bifes para a ceia.

E à noite a casa do Silvestre enchia-se, não apenas dos que haviam ajudado durante o dia mas também de muitos outros amigalhaços que, a convite do Silvestre, ali chegavam apenas com a intenção de jantar e depois, quiçá talvez jogar as cartas.

Quem nunca faltava â matança do Silvestre era o amigo Matias. Era um costume de há muitos anos, uma espécie de tradição que não podia diluir-se. Todos os anos o Matias, a mulher e os filhos eram presença certa na matança do Silvestre.

Um ano houve em que o Matias tinha em sua companhia um sobrinho, filho duma irmã que morava na Serreta, na Terceira. O rapaz ao acabar os estudos no liceu de Angra, fora estudar economia para Coimbra, onde se formara. Terminado o curso, ao regressar aos Açores, decidiu-se por concorrer para as Finanças. Como rareassem vagas na Terceira, a pedido da mãe, concorreu para o Pico, sendo colocado na Madalena, para gáudio da progenitora, que assim via o filho hospedar-se com segurança e requinte em casa do irmão. Ora o convite que o Silvestre fazia era para toada a família, incluindo o sobrinho.

O rapaz, embora tímido e pouco à vontade, acabou por aceitar ao convite, comparecendo em casa do Silvestre, apenas à noitinha, para a ceia. Sentaram-se à mesa, exagerando-se nas atenções e cuidados que em casa nunca lhes havia entrada tão ilustre visitante. O senhor doutor merecia todas as atenções e comidinha à farta. A abundância do cardápio e a excelência do repasto havia de ocultar e sublevar a pobreza e humildade da casa do Silvestre.

Quem mais se esmerou em cuidados e atenções à volta do senhor doutor, foi a filha mais velha do Silvestre, a Lucília, muito solícita, a colocar-lhe na frente travessas de inhames fumegantes, bifes de lombo muito bem temperados e rodelas de morcela frita, a cheirar a cebola e temperos. Lucília não era bonita, mas era deliciosamente bela e encantadora. Não era linda, mas era fascinante e atraente. O rosto acentuadamente moreno, com uma boa parte encoberta por um cabelo muito negro, liso e sedoso. Tinha um ar destemido, ousado, quase selvagem embora simulasse, sobretudo ao aproximar-se de tão ilustre hóspede, uma evidente timidez. Tinha um sorriso muito límpido e transparente e resplandecia-lhe do rosto um encanto sublime e uma ternura atraente.

Terminado a ceia os homens fumaram, a maioria tomou um traçadinho, outros, um copo de aguardente pura, boa, da safra do Silvestre. Mas o senhor doutor não estava habituado a estas bebidas… O Silvestre que sim e ele que não… Insistência daqui e recusa dacolá, até que a Lucília veio resolver a contenda com um cálice de angelica,ao mesmo tempo que, com unhas e dentes, defendia o senhor doutro das risotas e garçolas dos outros que afirmavam, à socapa, que aquilo era bebida de mulheres.

Sentaram-se, de novo à mesa para as cartas. E como o senhor doutor, que fizera par com o Silvestre, logo após a primeira partida a dar um capote, fosse muito elogiado pela sua hábil e sábia arte de jogar, Lucília nem por nada queria perder aquele momento. Inquieta, a arfar desejos e a vassalar-se numa tremenda paixão que o primeiro olhar dele, terno meigo e sedutor consubstanciara, veio sentar-se ao seu lado. Pouco depois os seus corpos tocavam-se, ao de leve, num enlevo recíproco que foi crescendo e intensificando-se, ao longo da noite

No dia seguinte foi ela que se adiantou, como era costume, a ir levar uma postinha de carne e uma morcela a casa do amigo Matias. Foi o senhor doutor que a recebeu porque não estava mais ninguém em casa. Ele muito preocupado e aflito e ela nervosa e decidida. Iam despedir-se. O tio Matias havia de agradecer ao pai.

Mas antes de sair, Lucília, no impulso da sua gigantesca e indomada paixão, sem que ele o persentisse, deu-lhe um beijo que havia de selar, para sempre, o enorme amor que entre eles, nascera na noite anterior, na noite da matança do Silvestre.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:56

PEDRAS DA VINHA

Sábado, 12.07.14

Pedras da Vinha é um lugar simples, silencioso, afável, mas mítico e misterioso. Plantado à beira-mar, encafuado entre os socalcos que anunciam a rugosidade das montanhas circundantes, projecta-se e prolonga-se como um tapete aveludado de verde, rendilhado, aqui e além, de amarelo, anil e lilás, estendendo-se, sorridente e profundo por entre currais de lava e maroiços de cascalho, recortado por ondulantes e pedregosas veredas.

Terra de homens fortes, permanentemente agarrados ao cabo da enxada, à rabiça do arado ou a redes, canas de pescas e enchelevares, Pedras da Vinha reveste-se, no Verão, duma sublimidade verde e húmida enquanto que, no Inverno, se cobre de um manto amarelado, sereno e acariciador. Terra de mulheres labutadoras, destemidas, ousadas e corajosas, Pedras da Vinha é o local perfeito e adequado a estórias como a que a seguir se relata.

Conta-se que, em tempos antigos, viveu ali, uma mulher possante e robusta, mas pobre e alquebrado por muitas canseiras e desgostos. A mulher tinha uma filha muito bonita e saudável mas muito preguiçosa e irreverente que não ajudava a mãe em nada. Passava as manhãs a dormir e as tardes sentada à janela, a dar conversa a uns e a outros que por ali passavam, ávidos de apreciar tão rara beleza. A boa mãe ralava-se consumia-se com tamanha indiferença e com tão tresloucado desmazelo. Ela com tantos afazeres, labutas e a filha, uma preguiçosa que com nada se ralava, em nada se empenhava e, pior do que isso, nem sequer ajudava a mãe, gastando-lhe, em ninharias, grande parte do pouco dinheiro que a mulher conseguia angariar, como resultado dos diversos trabalhos que realizava.

Certo dia a rapariga foi junto da mãe pedir-lhe mais dinheiro. Pretendia, simplesmente, comprar um vestido novo a um rico comerciante de sedas orientais que por ali passava. Já farta de tantos gastos e sobretudo, de tanta preguiça, a mãe muito chateada, meio furiosa, virou-se contra ela vociferando:

- Vai-te com o diabo que te carregue, rapariga malvada e preguiçosa."

Era um desabafo como tantos outros e ninguém prestou atenção a estas palavras.

Passado algum tempo, porém, a mãe apercebeu-se de que a rapariga não se encontrava em casa. Procurou-a por toda a parte e não a encontrou. Nem à janela, nem na cama, nem noutro lugar qualquer. A moça desaparecera, não deixando rastos. A mulher, muito preocupada e aflita, chamou os vizinhos e amigos e contou-lhes o sucedido. Achando aquilo muito estanho, começaram a procurar a rapariga por todos os cantos e recantos de Pedras da Vinha. Mas da rapariga nenhum sinal. Não a encontraram e ninguém sabia dela ou sequer a tinha visto.

As povoações vizinhas, também foram alertadas para o sucedido e, imediatamente, todos se puseram à procura da rapariga, por todos os lados, de casa em casa, no porto, nos chafarizes, em casa dos amigos, nos moinhos, palheiros, em todos os locais possíveis. Mas nada!

Depois dos povoados, estenderam as buscas aos campos, às pastagens e às montanhas circundantes onde, finalmente, junto a um enorme e fundo grotão, que se dizia ser morada do diabo, encontraram aquilo que poderiam ser os primeiros vestígios da presença da rapariga. Um grupo de homens mais anamudos e destemidos, desceram aquele perigoso e esconso valado. Na descida encontraram as galochas da rapariga, em cima de uma rocha, fazendo com que todas as dúvidas se dissipassem. Estavam no rastro da jovem. Se ela não estava ali, pelo menos devia estar por perto. E se não estava em local visível, só podia estar bem no fundo do temível grotão. Mandaram vir cordas para amarrarem dois homens que descessem lá ao fundo, onde nunca, segundo a memória dos vivos, alguém havia penetrado. Estavam todos ansiosos pois muitos acreditavam que aquele buraco era a entrada do Inferno. Cheios de medo, os de cima foram folgando as cordas e os outros dois descendo pelo buraco negro e medonho.

 Foi lá no fundo que encontraram a rapariga, a tremer de frio e de medo, com um ar muito apático e indiferente. Amarram-na às cordas e foram os três puxados para cima.

Tinham encontrado a rapariga e ela estava viva e saudável. Mas quando lhe perguntaram o que se tinha passado e como tinha ido parar aquele buraco, ela pura e simplesmente não sabia responder. Mas a mãe, muito chorosa e arrependida, lembrava-se da blasfémia que tinha dito ao mandá-la para o diabo, que, pelos vistos e segundo se dizia, em Pedras da Vinha, andava sempre à procura de almas para as levar para o Inferno.

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publicado por picodavigia2 às 10:35

SUICÍDIO DE SONHOS

Domingo, 18.05.14

Desde pequenina que Josefina queria ser professora. Sonhava com uma vida futura, digna e nobre mas, também, calma e tranquila. Ter um marido que a amasse, filhos que educasse e visse crescer. Construir uma casa com um pequeno jardim, onde pudesse ter um cão e um gato e, sobretudo, flores, muitas flores. Depois, com os filhos já crescidos, viajar, viajar muito.

Sonho legítimo, o da Josefina...

Os anos, porém, foram passando, vácuos e céleres. Josefina foi crescendo e o seu sonho, aos poucos, foi-se desfazendo entre dificuldades e limitações, esfumando entre esperas e incertezas, desconcertando-se entre ilusões e quimeras.

Chegaram os trinta! O destino, aparentemente, fintara Josefina. Mas inda não era tarde para nenhum dos sonhos em que, serenamente, se embalara, se evaporasse, por completo. A nível profissional, porém, não conseguira completar o décimo segundo, nem, consequentemente, tirar um curso universitário e ser professora. Os pais enfermos de há muito, obstruíam-lhe desejos, cerceavam-lhe vontades. O destino levou-me para outros caminhos. Primeiro foi a caixa de um supermercado da pequena cidade onde vivia e, mais tarde, uma perfumaria de um Centro Comercial, a uns quilómetros de distância.

O mardo e os filhos não chegaram. Nunca se lhe deparara o homem ideal que a amasse e estimasse e que com ele partilhasse a sua aventura sonhadora. Começava a pensar que lhe bastaria o marido e os filhos. Era tempo de abdicar do jardim, do cão, do gato e, até, das flores de que tanto gostava. Um apartamento serviria perfeitamente…

Chegaram os trinta e cinco… tudo mais se enevoou, esfumou e como que desapareceu quando o emprego na perfumaria, onde trabalhava, cessou. Declarada falência, regressou a casa sem emprego… A morte dos pais deixou-a desolada. O desemprego trouxe-lhe consumições.

E voltou a abdicar. Primeiro das viagens com que tanto sonhara e, sobretudo, daquilo que mais desejava e com que mais sonhara: os filhos. Restava-lhe uma pequena parcela do sonho inicial - o marido. Um companheiro e amigo com quem comungasse alegrias, partilhasse desilusões e esquecesse sonhos.

Chegaram os quarenta… E o seu último e talvez mais legítimo sonho desvaneceu-se… O companheiro com que sonhara partilhar a vida, não apareceu. Josefina sentiu-se velha, triste, solitária e, sobretudo, sem os sonhos que não conseguira concretizar!

Uma amiga de longa data bem a reconfortava:

- Nunca é tarde para sonhar e nunca devemos deixar de fazê-lo porque se o deixarmos de fazer a nossa vida pára. A tua vida não pode nunca parar. Ninguém consegue realizar todos os sonhos, mas se desiste nada há-de conseguir.

Nada!

Mas no silêncio das madrugadas perturbantes, em que, entontecida, despertava, Josefina, um dia, escreveu:

 

Era a ti que eu queria

era contigo que eu sonhava.

A ti eu me agarrava

e me prendia,

 

Eram os meus sonhos

que te traziam até mim,

desfazendo a escuridão do meu caminho

anulando os destroços

dos pesadelos em que navegava.

 

Tu eras o eco que ouvia,

a luz que me iluminava.

Caminhávamos, lado a lado, de mãos dadas,

Pelos caminhos que eu delineara.

 

Agora, os meus sonhos são quimeras,

desfeitas, assoladas por temporais,

onde me sinto só.

O silêncio do meu corpo

é o eco da sua ausência definitiva.

 

O suicídio dos meus sonhos

transformou o meu sentir

e rodeou-me de escuridão e medo.

 

Vagueio sozinha num tempo,

sem fim, sem sentido e sem ternura…

O meu corpo, dorido, rodopia

num silêncio, estranho, esquisito,

que quebrou e destruiu, por completo,

a minha inocência de menina

os meus sonhos de adolescente,

os meus desejos de mulher.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:43

O PROMONTÓRIO DOS COXOS

Sábado, 10.05.14

Caminho sem destino, ilha fora, em direcção incerta. Emerjo de entre uma floresta jovem, repleta de faias, incensos, urzes, sanguinhos, um ou outro pau branco e figueiras raquíticas. Como se tivesse deixado a noite a meio e partido numa madrugada tímida mas deslumbrante e surpreendente. Surge à minha frente o mar, num vai e vem contínuo e caricioso, de ondas meigas, suaves, maviosas, a baterem com blandícia nos baixios e escolhos, que do alto do miradouro avisto. O espectáculo é belo, doce e sublime, pintado numa paisagem maravilhosa. Ao redor o silêncio dos rochedos negros, o odor das figueiras a definharem, amordaçadas, como que perdidas entre os silvados arrogantes. Apenas o mar domina o mundo, ligando-o ao universo do silêncio, quebrado, apenas, pelo esvoaçar erótico das gaivotas em cio. Lá longe, muito longe, um pequeno ponto entre o céu e o mar reflecte, num mítico raio de luz, a beleza infinita e enigmática duma esperança que urge solidificar.

Desiludido com o inatingível do distante, concentro-me no perto e procuro a pujança duma visão rígida, serena e real. Este mar não pode ser feito só de espuma amuada, nem de ondas entontecidas ou de reflexos de raios de sol perdidos no horizonte. Aqui bem perto, há, neste mar, uma rigidez tremenda, uma força telúrica como que presa, agarrada à lava embriagada e adormecida sobre os rochedos que as gaivotas escolheram como habitat. O mais mítico e emblemático de todos estes rochedos é o metamorfoseado em promontório, a que deram nome dos Coxos, a emergir do seio da ilha, na sua exuberância pubescente, como se fosse um falo intumescido e húmido.

Quando pelas primeiras vezes o vi, quer na sua exorbitante ostentação de ubérrimo e fertilíssimo recanto de pesca, quer como inexaurível e indelével marco de um roteiro, sob a forma de trilho tortuoso e íngreme, mas inebriante e sonhador, evitei as palavras que agora me são ditadas pela emoção. Emoção de ter emergido daquela floresta, outrora inexistente, resultante da desertificação dos vinhedos primitivos, originais e puros, agora floresta florescente, cativante e atractiva mas sem utilidade e proveito. Emoção forte e vibrante, conjugada com a serenidade incongruente do oceano.

As lembranças chovem como sonhos suaves duma história apenas contada que não deixa de ser verdadeira, somente por não ser escrita. Os rumores do passado reclamam para ali um cais natural, desenhado no recorte das falésias, patrocinado pela rigidez milimétrica das formas, estampado na alternativa dos posicionamentos. E assim, na inebriante penumbra dos penhascos enegrecidos, vejo, como se existissem, vultos de homens de albarcas, calças de cotim e chapéus de palha, a subir e a descer, a carregar pipas de vinho, molhos de lenha, sacos de trigo, rolos de couro, o que a terra ressequida mas trabalhada produzia. Lá em baixo, batelões vazios, à espera de serem carregados com todo aquele entulho lávico que, depois se há-de guiarem na direcção do Faial: pão, vinho, bolo do forno, peixe salgado, fruta, e uma ou outra garrafa de bagaço. Tudo rasteja e se esgana por entre as pedras negras, tingidas com excrementos de gaivotas.

Nunca me sentei sobre o rochedo dos Coxos, demandando o prazer da sua essência, nem se quer circulando os rebordos das suas extravagâncias, mas sentei-me ali, ao lado, tantas e tantas vezes, sonhando como se tivesse partido para terras distantes.

Para lá do oceano, numa América imensa e sempre sonhada, há os que estão prisioneiros do sonho e lutam por uma vida melhor. Apenas sorvem, nos momentos em que filtram o barulho das festas e o tédio do trabalho, a saudade, imensa, infinita e perene.

Tantas foram as vezes com que sonhei com aquele rochedo na sua magnífica e vivencial exuberância. Dali partiram barcos e barcos cheios com o suco da lava, muitas vezes ainda a verter o enxofre, sufragando uma insustentável coragem de enfrentar a aventura do sonho, onde tudo é tido e possuído. Mas todos os sonhos nos abismos deste rochedo promontório, onde há a magia necessária para tentar construir um futuro sustentável, apesar de inverosímil e cerceado pelas agruras do destino. A proposta de ali se construir um marco turístico e histórico já foi engavetado. Cuidei que era o dono deste rochedo, que o envolvia num cometimento ousado e perturbador, que o purificava de algas destruidoras e o edificava como baluarte eterno e infinito dos meus sonhos de deficitário pescador. Sou descendente das partilhas naufragada, das entregas dolorosas, das supremacias desoladas e das constâncias, definitivamente, obstruídas. Sou herdeiro dos que tentam preservar as memórias não escritas, dos que decalcam a tradição, dos que despejam, em vasos de terra ressequida, as mágoas dos sonhos desfeitos.

Não sei se no promontório dos Coxos existem vestígios de escolhos intumescentes e  libidinosos, colónias de recifes multicolores e petrificantes, nem restolhos de navios naufragados ou magia de destinos perdidos. No rochedo dos Coxos há sim, memórias vivas de um passado escrito com lágrimas, embalsamado com sofrimento, galvanizado de honra e dignidade.

E se de nome ouve assim, talvez a sua génese esteja gravada na gesta dos que ali subiam e desciam, vergados às estravagâncias da lava vulcânica, a coxear, não porque fossem “coxos” mas que apenas e tão só, porque pareciam “coxos”, devido aos carregamentos que transportavam e às íngremes agruras do trilho. Nem sempre o que parece é.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:16

A DERROCADA DE RED RIVER

Sábado, 12.04.14

Durmo sobre uma sebe de sobreiros, muito bem podada e ainda melhor tratada. Inicialmente, ali plantara faias, paus brancos, sanguinhos, loureiros e folhados, mas nenhuma destas árvores resistiu a intempéries e vendavais. Agora nasceu e cresceu ali uma sebe, uma espécie de obra de arte, simétrica e verde. O vento é um terrorista mascarado de videira podada. Destrói tudo por onde passa, até desfaz os regos das batatas, antes delas nascerem, mesmo que estejam entrelaçadas com girassóis floridos ou cobertas com farelo de serra. Mas o vento não destrói apenas os batatais e as sebes imberbes. Também entra pelas chaminés de prédios antigos e modernos, sacudindo e abanando alunos que estudam, com afinco, latim, língua difícil e de grandes e profundos meandros morfológicos. O padre Jacinto ensinava latim com uma sabedoria danada, mas também com um rigor tremendo e com uma exigência endiabrada, espalhando o terror pelos cantos das salas, onde eu, geralmente, me escondia a fim de não ser chamado e ler e traduzir, ir ao quadro, e dar um grande estandarete. Prefiro ficar, num canto da minha velha e rústica cozinha, a roer um côdea de pão de milho, rijo e bolorento. Lá fora faz muito frio e há neve no Marão. Faz pouco mais de um ano que eu comprei um camisola esverdeada, com desenhos de marujos a subir e a descer as escadas do Carvalho. Não era Verão mas eu fui à festa do mato, junto à Casa do Estado, nas imediações do Pico da Burrinha, onde meu irmão António me deixou sozinho. Tinha que ir, imediatamente, às Lajes, a pé, atravessando relvas, até à Boca da Baleia. Eu chorava como uma Madalena, sem encontrar remédio para o meu problema e sem descobrir solução para a minha dor, cuja origem desconhecia e, em boa verdade, não me interessava absolutamente nada conhecer. Já há algum tempo que procurava um espaço para levar a minha frenética ovelha a pastar. Era na ladeira do Fernando, no estendedouro onde a mãe, a minha vizinha Lucinda, punha a roupa a corar. Não adivinhava eu, era que estivesse ali sentada, na aba duma pedra, a abrigar-se da chuva a Rosa Maria, toda encharcada e pobremente vestida. Parecia uma pedinte. Apenas os dentes brilhavam por entre um sorriso deliciosamente atraente e reflectiam-se na Caldeira da Água Branca, onde se enfiou a velha Tenenta. Logo a seguir, entrava na estação de metro do Areeiro, onde um grupo de freiras bailava como se estivessem a simular uma solene adoração da cruz. Era Sexta-feira Santa e havia pessoas a correr na Fontinha, com baldes e latas, ávidas de encher água na Fonte Velha…

Depois vinha a professora de Linguística convidar-me para ver o local, onde tinha construído um restaurante. Ela, a Rosa Maria e eu, ao finalizar a aula, fomos lá jantar. Não havia mesas e na cozinha o chefe só falava em migas de brócolos, com salsichas de soja grelhadas. A doutora Andreia, com a sua varinha de condão, bem desejava substituir as salsichas por alheiras e a Rosa Maria, sempre simpática e solícita, amiga de ajudar e de bem-fazer, numa corrida louca, partia para Mirandela, a pé. Andava, andava e nunca mais lá chegava. Mas em Mirandela só havia um talho que estava dividido em duas partes, uma era realmente um talho com alguns produtos de mercearia personalizados, e a outra parte, um edifício muito velho, onde, apenas, havia restos do que teria sido, outrora, um restaurante. Ali era proibido comer carne de vaca, favas e ovos cozidos. Havia muitas pessoas sentadas ao redor de mesas, mas apenas partilhavam os seus pratos vazios, trazidos das cozinhas do Ikea ou mandados vir da Rússia. A Rosa Maria, indignada, dizia que os pratos haviam sido roubados ao Putin. Na viagem de regresso da Rússia, vinha a meu lado um homem com a sua mulher, extremamente gorda. Ao andar, a mulher esquartejava-se e mostrava um traseiro esférico, flutuante e libidinoso. Disseram-me que haviam viajado por dezenas de países asiáticos e nunca tiveram sequer um acidente aéreo, por isso chegavam à Fajã, sãos e salvos, dispostos a empreender novas viagens. Das cozinhas da Via d’Água saíam rolos de fumo. Os sinos repicavam e eu tinha que subir a rocha, debaixo de uma chuva intensa. A Rosa Maria dizia-me para ter cuidado, com a chuva pois com ela a probabilidade de caírem grandes derrocadas, era bem maior. E contava que há dias uma grande derrocada caíra em Red River e destruíra um talho, onde desapareceram todas as salsichas de soja. Tudo ficara destruído com a derrocada de Red River. Pedia-lhe que me guardasse o livro de Francês e que subisse a rocha comigo, mas ela recusava-se. Só me falava naquela temível e trágica derrocada de Red River. Eu, então, subia a rocha sozinho, numa correria louca… mas tinha um medo enorme e terrível… Tinha medo de ser vítima de uma derrocada como aquela de Red River… Uffa!

Levantei-me, assomei à janela e subi a persiana. Um sol danado, lá fora, preanunciava um dia primaveril.

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publicado por picodavigia2 às 15:04

ÁLVARO E EDUARDA

Segunda-feira, 31.03.14

Álvaro e Eduarda partilham, desde há alguns anos, um pequeno apartamento na rua Braancamp Freira, em Lisboa. São licenciados em Economia, possuem e dirigem, actualmente, um escritório de contabilidade, na Brandoa, onde ambos trabalham.

Conheceram-se na Faculdade de Economia de Lisboa, onde se formaram e foram colegas de curso. Obtidas as respectivas licenciaturas, candidataram-se a estágios em empresas de contabilidade. Quando Álvaro terminou o estágio, foi-lhe proposto continuar a trabalhar na mesma empresa, enquanto Eduarda, após alguns meses de grande ansiedade e expectativa, conseguiu, simplesmente, um contrato a prazo, numa empresa de “transitários”, em Algés. Ambas as empresas, porém, anos mais tarde, embora em tempos diferentes, haviam de falir, enviando os dois para o desemprego. Primeiro foi a Eduarda. Uns tempos depois ele, o Álvaro.

Na altura em que Eduarda foi despedida, assumindo já uma relação conjugal íntima e profunda, consideraram que o desemprego dela em nada lhes havia de ser prejudicial. Antes entenderam que lhes trazia algum benefício, porquanto poderiam aproveitar aquela espécie de interregno laboral, em que, embora contra a sua vontade, Eduarda se imiscuíra, para terem o filho que há tanto desejavam. E o menino veio, trazendo, aos pais, uma enorme alegria e uma felicidade inexaurível. Cresceu a criança e, por opção dos progenitores, passado algum tempo, começou a frequentar um infantário, enquanto a mãe, infrutiferamente, começava à procura de novo emprego, na sua área. Não só não o conseguiu como viu o emprego do marido, de um momento para outro, também se eclipsar, deixando os dois sem trabalho e, consequentemente, sem dinheiro para criar o filho e sobreviverem. Bem tentaram procurar o que quer que fosse. Mas nada. Os tempos não corriam de feição e os caminhos da esperança tapavam-se em cada momento e em cada porta a que batiam. Cada currículo que enviavam para uma ou outra empresa considerada, financeiramente, mais estável, ou era devolvido ou nem tinha resposta.

Vindos de longe, Álvaro e Eduarda haviam demandado Lisboa com os mesmos objectivos: não apenas o de se formarem mas também o de se fixarem, definitivamente, e trabalharem na capital, abandonando a pacatez e, sobretudo, a desertificação, das pequenas e distantes localidades, aparentemente, muito semelhantes, onde haviam nascido. Ele nos Açores, na Fajã da Ribeira da Areia, em São Jorge. Embora uma das maiores e mais populosas fajãs da ilha, começava cada vez mais a ser votada ao abandono, não só por causa do grande terramoto, acontecido precisamente no ano em que ele nascera, mas também porque o envelhecimento da população crescia de forma galopante. Ela de São Pedro-Velho, uma das mais pequenas e isoladas freguesias do concelho de Mirandela, lá para os lados da Torre de Dona Chama, bem no interior transmontano, também ele cada vez mais desertificado e abandonado.

Chegados a Lisboa, frequentando a mesma Faculdade e integrados na mesma turma, depressa se conheceram e se depararam com uma amizade reciproca, colaborante, íntima e verdadeira que, aos poucos, foi aumentando, desenvolvendo e transformando em paixão. Para além dos estudos, das disciplinas comuns, dos objectivos traçados, unia-os a singularidade das suas terras de origem, a pobreza das suas famílias e a convicção de que o seu futuro passaria, necessariamente, por se fixarem na capital, onde poderiam dar aso ao desenvolvimento dos saberes, da experiência e das capacidades que, dia a dia, iam adquirindo e acumulando. Ambos, há muito, já antes de se conhecerem, haviam decidido fixar-se por Lisboa. Por isso, libertos de preconceitos patéticos, a decisão de viverem em comum, foi inevitável. Agora porem caía-lhes em cima, em catadupa, a ameaçar-lhes o futuro, a destruir-lhe os sonhos, o execrável e ignominioso fantasma do desemprego. O subsídio dela há muito que caducara. Agora viviam do dele e de uma pequena economia feita em tempos idos.

Mas Álvaro e Eduardo conjugavam a garra açoriana com a pujança transmontana. Entre desânimos e sonhos, arquitectaram que poderiam emergir do imbróglio que os rodeava. Cuidando que de braços cruzados não haviam de ficar, por não lhes adiantar nada e que o regresso a São Jorge ou a Trás-os-Montes estava posto de parte, Álvaro decidiu-se por solicitar o subsídio de desemprego a que tinha direito, na totalidade. Da empresa ainda recebeu uma pequena indeminização. Tudo somado e acrescentado a umas pequenas poupanças, dava muito bem para montarem, eles próprios, um pequeno e simples escritório de contabilidade. Faltava-lhes, apenas, o espaço que, na Brancamp Freire, era impossível adquirir. Apontaram outros locais, mais distantes mas bem servidos de transportes públicos. Foram dar com uma sala, ali para os lados da Brandoa. Por feliz coincidência, debatia-se o proprietário com problemas de contabilidade. Acordo feito: a nova empresa de contabilidade “Alvorarda”, agora constituída, responsabilizava-se por toda a contabilidade dos negócios imobiliários do Senhor Costa e este, em contrapartida cedia-lhe uma das lojas que, por ali, tinha disponíveis, num dos seus prédios e que não conseguia vender ou alugar. A acrescentar o restaurante, a dois passos d’ali, onde Álvaro e Eduarda almoçavam todos os dias, também se debatia entre contas incorrectas e impostos desordenados. Uma conversa mais íntima e um novo acordo: a “Alvorarda” havia de lhe “endireitar” as contas, simplesmente pelo custo das refeições.

Com o aluguer da sala e as refeições pagas através da prestação de serviços, as despesas da “Alvorarda” tornavam-se bem menores. Os clientes começaram a surgir. A competência, o trabalho digno, o esforço e a simpatia dos economistas Álvaro e Eduardo depressa se espalharam pelas redondezas e a empresa foi crescendo e, actualmente, é uma das mais reconhecidas na zona.

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publicado por picodavigia2 às 12:27

VOZ DO SILÊNCIO

Sexta-feira, 28.03.14

Noite intensa… Acordei e assomei à janela como se quisesse desfazer o enigma de um pesadelo. O mar, um torrão de espuma prateado e o céu a teimar que se havia de espelhar nele. Mantenho-me vigilante porque sinto que um sopro de voz ciciada, abafa o murmúrio roufenho dos grilos. Algum tempo depois, no entanto, volto a deitar-me cuidando que se me levantasse, definitivamente, havia de dissipar, por completo, o pesadelo que a voz deste silêncio tão profundo, cada vez parecia tornar-se mais real. Afigura-se-me que tombavam pedras gigantes sobre os frágeis arbustos do jardim em frente. Levanto-me, de novo, e volto a espreitar o silêncio, através da janela. As ruas estavam apinhadas de gente, apressada, sisuda, destemida, mas silenciosa. Tento sintonizar o ciciar que ouvira, inicialmente, quando assomei à janela... Mas nada. Nem um som. Tudo parece silêncio e tudo se transforma em silêncio, mas num silêncio que se torna preocupante porque sobre os arbustos do jardim, em frente, já não caíam pedras gigantes mas blocos de neve, enigmáticos, mudos, silenciosos e brancos. Em compensação, a parecer quebrar este silêncio, apenas o irritante, permanente e martelado tique taque do Asónia, colocado numa peanha, presa a uma parede da sala, como se fosse um santo de igreja. Mas não há bater de horas, nem rumores de maresia ou roçar de vento nos ramos dos salgueiros. Um ramo desprende-se, morto, batendo-me na porta, sem ruido, como se fosse uma criança recém-nascida, mudo, silencioso, dissipando, na noite cada vez mais intensa, um profundo silêncio que, apenas, se desdobra em eco. E o céu cada vez cada vez mais a teimar em espelhar-se no oceano.

Agora é a voz ciciada que volta a fortalecer todos os silêncios, perturbando-me, cada vez mais. A manhã está distante e reveste-se de um carisma que a torna quase inatingível. Os cães não uivam e o canto dos galos tornou-se um enigma indecifrável. Tudo se transformou num silêncio opressivo, vácuo e, aparentemente, inútil.

Decido sair, mas todas as portas estão obstruídas e, tentar saltar pelas janelas, para além de correr o risco de me considerarem saído de um manicómio, teria que pular por cima dos arbustos do jardim, desfazendo os blocos de neve e quebrando o silêncio em que florescem. Salto. Subo as escadas do sótão, abro uma de vidro fosco e saio. Conquisto a rua, como se fosse uma ilha, deserta, sem ruídos, sem árvores, sem vento e sem pessoas, Lá ao longe abanam suspiros de pessoas mortas, saídas de túmulos cinzentos onde caem todos os ecos dos ruídos ainda existentes. Ouve-se um silêncio agonizante sob as campas dos que não se erguem dos túmulos. A morte parece entrelaçar-se com a vida e cercear-lhe todos os silêncios.

Uma voz doce de mulher chama-me, sem falar. Traz ao peito, como se fosse um colar, sementes de trevo amarelado. Quer avisar-me, prevenir-me, dizer-me que não me deite junto com os mortos, porque eles são os donos e senhores de todo este silêncio que me rodeia, em que emirjo. 

A mulher insiste, desenhando com os braços gestos de uma tremenda inquietação. Não a conheço porque traz sobre o rosto um lenço ornado com flores, semelhante ao que usava a minha mãe, no dia em que a vi pela última vez e que lhe tapa o rosto, quase por completo. A intensidade da noite desfez-se e a manhã cresce. Já não há sinais nem do mar prateado, nem do céu estrelado. Os mortos, mas apenas os que se ergueram dos túmulos, conversam, em silêncio, com a mulher do lenço igual ao da minha mãe Os mortos evadem-se como se fossem nuvens de fumo e o rosto da mulher, a do lenço igual ao da minha mãe, apesar de apenas meio descoberto, está ornado de silêncio mas transmite-me um gigantesco sorriso de confiança.

De súbito, todas as portas da minha casa se destrancam e todas as janelas se abrem. O dia desabrocha silencioso, mas com um sol enternecedor. Há pássaros a entoarem, em silêncio hinos de louvor à natureza. Prossigo este caminho de silêncio. As ruas abrem-se como se fossem rios secos, sem necessidade de pontes.

Um clarão abre-se, sobre as sombras dos salgueiros. Pela primeira vez, nesta noite de silêncio, ouço, ao longe o doce repicar de sinos, como se fosse o baptizado duma criança acabada de nascer. Abro a janela e apetece-me berrar, juntar-me à voz dos sinos e desfazer por completo aquele tenebroso e inquietante silêncio.

… Mas é o despertador toca, quebrando todos os sonhos, desfazendo todos os silêncios, esclarecendo todos os ruídos…

Afinal é no escuro da noite e no emaranhado dos sonhos que a voz do silêncio se torna mais ruidosa e menos aterradora.

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publicado por picodavigia2 às 14:44

MEDEIA

Sábado, 22.03.14

Medeia, filha de Eetes, rei da Cólquida, sobrinha de Circe foi uma esperta e subtil feiticeira que se apaixonou por Jasão, ajudando-o a obter o famoso “Velocino de Ouro”, que era posse de seu pai. O “Velocino de Ouro”, também conhecido por “Tesão de Ouro” era uma espécie de véu, mítico, doirado, e preciosíssimo que pertencera, originalmente, a um carneiro que tinha salvado duas crianças, Frixo e Hele, filhas de Atamante. Para as livrar de serem imoladas em sacrifício a Zeus, sob as ordens da sua malvada e cruel madrasta, Ino, o carneiro fugiu com as crianças, levando-as às cavalitas, para as montanhas. No entanto, durante a viagem, ao cruzarem o estreito canal que separava a Europa da Ásia, Hele caiu das costas do carneiro, estampando-se no mar que ali existia e que, por isso, passou a chamar-se - o Helesponto. Mas Frixo continuou o voo, bem agarrado ao dorso do carneiro, até o Mar Negro. Aí, o carneiro parou, desceu até à Cólquida e dirigiu-se para palácio do rei Eetes. Eetes recebeu Frixo de maneira gentil e simpática. Para lhe agradecer, o menino sacrificou o carneiro a Zeus, mas antes tirou-lhe o véu da lã, que se transformou num belo - “Velocino de Ouro” que ofereceu-o ao rei Eetes. Eetes, por sua vez, pediu a Ares, deus da guerra selvagem, da sede de sangue e da matança personificada, que o guardasse e Ares depositou-o num bosque sagrado, colocando um temível dragão a vigiá-lo, a fim de não ser roubado. Quando Jasão surgiu à procura do “Velocino de Ouro”, Ares jurou que apenas lho daria se ele conseguisse lavrar um campo com um arado puxado por dois monstruosos e indomáveis touros, com cascos de bronze nas patas e que expeliam fogo pelas narinas, os quais lhe haviam sido oferecidos por Hefesto.

Ora, Jasão queria o “Velocino de Ouro” para satisfazer as exigências imperiosas de Pélias, usurpador do trono do reino de Iolco. Jasão era filho de Éson, o legítimo rei de Iolco mas velho e incapaz de governar, e Pélias, meio-irmão de Éson, deveria governar Iolco, apenas até que Jasão, o verdadeiro herdeiro do trono, atingisse a idade adulta. Quando Jasão alcançou a maioridade, exigiu a sua herança, ou seja, o trono de Iolco, mas Pélias, não quis abdicar e obrigou-o a uma missão impossível: só lhe daria o trono de Iolco se ele lhe trouxesse o “Velocino de Ouro”, tarefa, obviamente, considerada inexequível, dada a permanente vigilância do temível dragão. Mas Jasão teve sorte, porque cerca de cinquenta heróis gregos comprometeram-se a ajudá-lo, não apenas a construir um navio, que o havia de levar à Cólquida mas também acompanhando-o na viagem, a fim de ele conseguir aquele infactível objectivo. Entre estes heróis, os mais importantes foram: Tífis, timoneiro do navio, o músico Orfeu, Zeto e Cálais, filhos do Vento Norte, os irmãos de Helena, Castor e Pólux, Peleu, pai de Aquiles, Meléagro da Caledônia, famoso caçador de javalis, Laerte e Autólico, pai e avô de Ulisses respectivamente, Admeto, o profeta Anfiarau, o próprio Hércules e muitos outros que, em função do navio onde navegavam, ficaram conhecidos como os “argonautas”. É que o navio chamava-se Argo, nome que significava "Rápido", pois era o mais veloz navio até então existente, em toda a Grécia. Foi construído no porto de Pagasse, na Tessália, com madeira do Monte Pélion, sendo a proa feita com parte da madeira de um carvalho sagrado, trazido do santuário de Zeus, em Dodona, por Atena. Esta peça feita com madeira do carvalho sagrado era profética e poderia falar, em ocasiões especiais, a fim de proteger os argonautas ou orientar a rota do navio.

Para além da tarefa de lavrar o campo, Jasão ainda teria de nele semear os dentes de um terrível dragão que fora morto por Cadmo, em tempos idos. Uma e outra destas tarefas eram praticamente impossíveis para Jasão. Foi Medeia, que, conhecendo os segredos do pai e apaixonada perdidamente por Jasão, se dispôs a ajudá-lo em tão difícil tarefa. Movida pela sua enorme paixão, Medeia traiu o seu pai, o rei Eetes e usou os seus poderes mágicos para salvar a vida do amado e lhe dar o “Velocino de Ouro”. Foi Hera, deusa protectora de Jasão, que pediu a Afrodite que convencesse Eros a fazer com que Medeia se apaixonasse por Jasão, a fim de o ajudar. Em troca, Jasão casar-se-ia com ela, e levá-la-ia consigo, para Iolco. Para o ajudar Jasão, Medeia ofereceu-lhe um unguento com que deveria ungir o seu corpo, enquanto lavrasse o campo, tornando-se, assim, invulnerável ao fogo e ao ferro e, desta forma, conseguisse enfrentar os touros e lavrar o campo. Além disso, Medeia também o avisou de que dos dentes do dragão, depois de semeados, nasceria uma seara de soldados que se revoltariam contra ele e que matá-lo-iam. Para evitar que tal acontecesse, Medeia revelou-lhe o segredo de Cadmo: se ele, de longe, atirasse uma pedra para o meio desse exército nascido da terra, os soldados ficariam confusos e destruir-se-iam uns aos outros. Com tais conselhos, Jasão executou as duas tarefas com facilidade e perfeição, exigindo, no fim, a Eetes, a recompensa a que tinha direito: - o “Velocino de Ouro”. Eetes ficou furioso e tentou incendiar o navio Argo. Foi, novamente, Medeia que tal impediu, dando-lhe narcóticos e conseguindo adormecer o terrível dragão que guardava o “Velino de Ouro”, avisando-o, também, dos planos do pai, de lhe incendiar o navio. Jasão conseguiu, assim, fugir da Cólquida, com a posse do tesouro desejado – o “Velocino de Ouro”.

Medeia decidiu partir com Jasão levando consigo o seu irmão Apsirto. Sabendo que o pai lhes iria no encalço e para o confundir e atrasar, Medeia matou Apsirto e cortou-o aos pedaços, espalhando-os pelo caminho, pois sabia que o pai tentaria recolher cada pedaço do filho para lhe dar a sepultura devida e assim conseguiria que ele se atrasasse, impedindo-o de os apanhar. Mas tão hediondo crime fê-los incorrer na ira de Zeus que, para os castigar, decidiu afastar o navio da rota traçada. Mas nessa altura, a nau, Argo, utilizando o poder falante da sua proa, informou Jasão e Medeia de que teriam de ser ritualmente purificados do crime cometido contra Apsirto. Quem o faria, seria Circe, tia de Medeia, por isso, encaminhou-os para a ilha de Circe, onde a feiticeira os purificou, não aceitando, no entanto, que Jasão permanecesse na sua ilha.

Por isso, depois de purificados, continuaram a navegar, com destino à Tessália, mas chegados a Creta, Medeia voltou a ter um papel importante na luta de Jasão contra Talo, o homem de bronze, que, quase invulnerável, rondava a ilha, lançando pedras contra as naus que ali chegavam, impedindo-as de acostar à ilha. Medeia sabia que o seu ponto fraco consistia numa veia que ele tinha, protegida por uma cavilha, no fundo de uma perna. Graças às suas artes mágicas, o gigante foi enfeitiçado, levado à loucura e morto, após o que a tripulação pode, realmente, desembarcar em terra firme, na ilha de Creta.

Daí, Medeia, Jasão e o grupo dos argonautas seguiram para Iolco, na Tessália, onde foram recebidos com muito entusiasmo e grandes festejos. Com a sua arte mágica Medeia rejuvenesceu Éson, rei de Iolco e pai de Jasão, ajudando-o, mais uma vez, a matar Pélias, o usurpador da coroa de Iolco, fazendo com que as próprias filhas lhe dessem uma receita trocada e que estava envenenada. Esse crime, porém, fez com que a população de Iolco se revoltasse contra ela e contra Jasão, obrigando-os a fugir para Corinto, onde passaram a viver exilados.

Alguns anos depois, Jasão apaixonou-se e casou com Gláucia, a jovem filha de Creonte, rei de Corinto, desta feita, abandonando Medeia e os filhos e subestimando o seu poder de enfurecimento. Instigado pelo novo genro, o monarca decretou a expulsão de Medeia e de seus filhos de Coríntio, mas esta, inconformada, sentindo-se traída e humilhada, encheu-se de um ódio sobre-humano e arquitectou uma terrível vingança para aniquilar e destruir o seu ex-marido. Utilizando os seus poderes mágicos, matou os filhos que tivera com Jasão e presenteou a sua rival, Gláucia com um manto mágico que se incendiou ao ser vestido, matando-a a ela e ao pai, rei de Coríntio. Jasão enlouqueceu e suicidou-se. Depois da morte de Jasão, Medeia fugiu para Atenas e casou-se com o rei Egeu, pai de Teseu, com quem teve um filho, Medos. Mas, passado algum tempo, decidiu, conspirar contra a vida do enteado. Teseu, filho do primeiro matrimónio do rei Egeu, tentando envenená-lo. Descoberta foi obrigada a retirar-se de Atenas

Acompanhada do filho Medo, Medeia voltou para a Cólquida. Nessa altura o rei Eetes, seu pai, já tinha sido deposto por seu irmão Perses. Medeia e Medo mataram-no e Medo usurpou o trono da Colquídia. Apoiado pela mãe, tornou-se um rei forte e poderoso, conquistando um grande território, que passou chamar-se Média.

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publicado por picodavigia2 às 13:53

PRIMAVERA

Quinta-feira, 20.03.14

Ele era um anão e todos os anos, aguardava, ansiosamente, a chegada da Primavera. Esta, não se fazia rogada. Chegava sempre na altura certa e regressava, sempre, afável, alegre, libertadora, plena de simpatia e beleza, trazendo consigo o perfume das flores, o canto dos pássaros, a ternura das manhãs ensolaradas e um grande abraço de ternura e transcendência! O Sol, encoberto durante um longo e terrível Inverno, também agora, ressurgia, no auge do seu esplendor, no empolgante brilho da sua força e na irradiante beleza do seu ser, espargindo a doçura da luz e a sublimidade do calor, sobre os mais recônditos e obscuros recantos da terra. Amachucado, pesaroso, solitário e dolente, o anão rejuvenescia e ressurgia, da letargia enigmática e paradoxal que a ausência prolongada do astro-rei lhe impusera. O renascer das flores, o ressurgir dos frutos, o carinho dos dias quentes e maviosos e, sobretudo, a ternura do abraço primaveril, provocavam-lhe frémitos flamíferos e resplandecentes tais, que o catapultavam para uma nova, alegre e mais delirante vivência.

E mais uma vez, com a chegada da Primavera, os dias de paz e calor, de carinho e simpatia contagiante regressaram e, no pequeno povoado onde tinha o seu cardenho, o anão começou também a alegrar-se e a sorrir, a crescer e a abrir-se, a aceitar a suprema força que o Sol, gratuitamente, distribuía. Apenas um ou outro eclipse, ou algum amanhecer mais sombrio e enevoado obstaculizavam a desconcertante alegria de viver e, desgraçadamente, provocavam, no anão, arrelias e calafrios semelhantes aos dos longas e terríveis dias invernais. Mas agora, porém, a ocultação do astro rei, embora férula, triaga e acentuadamente dolorosa, era momentânea e efémera e, consequentemente, mais suportável para o carraceno.

Mas nos dias seguintes, após o regresso da Primavera, logo de madrugada, passeando pelos bosques, o anão aguardava serena e calmamente o nascimento do maior, mais potente e mais belo astro do firmamento. E a calma, a paz e a tranquilidade voltavam a reinar, até porque o Sol, agora e depois de tão duradoura ocultação, como que se mostrava mais cálido e longânime, mais acolhedor e contagiante, mais ardente e meiguiceiro. Por isso, toda a aldeia onde o anão vivia, florescia constante e decidida, apenas silenciada pela escuridão da noite, que se blasonava garbosa e enfatuadamente, de obstaculizar a concretização dos mais prestigiantes anseios do pequeno desolado.

Os dias, porém, passavam céleres e velozes. O espectro da aproximação de um novo e, quiçá, definitivo inverno, já pairava sobre o espírito do carraceno e, de um modo muito especial, começava a aniquilar-lhe a sua angustiante existência.

Era o princípio do fim de um curto reinado de excelência e de dignidade, onde tudo ao redor da pequena aldeia florescera, em que as árvores perdiam menos folhas, as flores tinham mais aromas e os frutos mais doçura, onde os animais conviviam em alegre e expressiva fraternidade, onde os dias eram de Sol, as noites de esperança, as madrugadas de cheiro a madressilva e a rosmaninho e as tardes com sabor a hortelã e a alecrim.

A catástrofe final, porém, estava eminente!

O trágico anúncio da chegada de um novo Inverno foi feito numa manhã cinzenta e enevoada. A sentença dramática e irreversível foi proclamada com agonia e soledade silenciosa, mas ecoou por toda a terra, qual estertor dolente de quem se fine. As manhãs radiosas não se lançariam nunca mais sobre as árvores e sobre as flores, sobre os arbustos e os insectos, sobre as folhas caídas e os ramos quebrados, sobre o espírito paradigmático dos serranos. A aldeia do anão nunca mais seria verde, nem teria flores de esperança nem frutos de simpatia. A partir de agora, paramentar-se-ia, contínua e ininterruptamente, de um negro fatídico e melancólico, para celebrar a liturgia do desespero e do abandono. Seguiram-se dias e noites de mágoa aflitiva! O povo saia à rua, mas já não vivia a liberdade e a fraternidade que a revolução solar lhe proporcionara. Viviam-se dias de dor e noites de mágoa. O espectro do regresso à solidão ou ao absentismo anteriores era a suma certeza do quotidiano carraceno. De todos os rostos transbordava, continuamente, um ricto que, prevendo a chegada da noite infinita, não era mais do que o reflexo deletério que emanava do terrífico e derradeiro ocaso do astro-rei.

O anão, aflito, perplexo, desfeito em espuma, acorrentado à certeza duma esperança destroçada, expelia uma áscua ténue e rúbida, contemplando, quiçá pela última vez, aquele arquétipo de beleza suma e de sublimidade magnífica, que ao despedir-se, transformado em fulva esfera, que pairando sobre os telhados dos velhos casebres, deixava transparecer, no amarelado dos seus raios, a certeza de também não querer entrar em ocaso definitivo.

Mas o Inverno derradeiro, frio e terrível iniciou, decididamente, a sua marcha triunfante. A Serra entrava definitivamente no reinado da escuridão e da ausência e o anão, tremendo de frio, recolhia-se ao seu esconso e paradoxal valhacoito.

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publicado por picodavigia2 às 06:44

Quarta-feira, 19.03.14

A Primavera chegara há pouco e, no ar, pairava um perfume, densamente, azedado. A tarde, ainda muito desobscurecida, teimava em aproximar-se do fim. Sentada num banco do jardim, Irene olhava, displicentemente, os caros que passavam velozes, intransigentes, na rua em frente, como se fossem ondas que iam e vinham, apenas elas e só elas a tentarem, infrutiferamente, desfazer-lhe a solidão em que emergira.

Desde há muito tempo que vivia sozinha, isolada, triste, imersa numa espécie de escuridão que a impedia de despoletar vivências gratificantes, de se imiscuir em prazeres amantéticos ou de se encharcar em cometimentos hedónicos.

De vez em quando, porém, gostava de passar o tempo que tinha livre – e tinha muito - ali, sentada num banco, abstracta e abstrusa, no meio daquele silêncio, umas vezes eloquente e acariciador, outras, plangente e opressivo, apenas entrecortado pelas buzinas e motores dos carros, pelo chilrear dos pássaros e pelos gritos das crianças que brincavam no pátio de uma escola, do outro ado da rua. O habitat das suas horas de lazer parecia estar, inevitavelmente acorrentado ao remanso daquele solitário s sombrio jardim.

Os dias passavam lentos e monótonos. Duma caixa de supermercado passara a vendedora de produtos de beleza, numa perfumaria dos arredores. Apesar de, diariamente, lhe surgirem ao balcão dezenas de clientes, geralmente mulheres, muitas delas ávidas de conversas, desejosas de contubérnio, sempre a bisbilhotar, a fazer perguntas, a despoletar silêncios, sempre prontas para devaneios supérfluos, Irene sentia-se cada vez mais só. Tinha trinta e cinco anos e a hipótese de encontrar o companheiro idealizado com quem havia de partilhar momentos de felicidade, de alegria, de bem-estar e, sobretudo de prazer, começava a diluir-se.

Um dia, porém, enquanto almoçava no snack-bar em frente à perfumaria onde trabalhava, renasceu-lhe na alma, uma estranha auréola de esperança. Recebeu um estranho telefonema! Alguém, do outro lado, um homem, numa situação semelhante à sua, pretendia que se encontrassem, a fim de conversarem, partilharem mágoas e angústias. Que esperasse. Em breve chegaria ali. Um fato preto e uma camisa azul escura, haviam de identificá-lo.

Inquieta, expectante e, sobretudo, muito ansiosa, Irene desligou o telemóvel, sem responder e, enigmaticamente, pensativa, voltou à perfumaria. As clientes rareavam, acabando por se reduzirem a zero. Decidiu-se por voltar ao snack-bar. Apenas o dono e duas senhoras, já de idade, sentadas numa mesa, em frente à montra, mantinham-se entretidas com o vai e vem dos automóveis que, apressados, continuavam, cada vez mais intensamente, a cruzar-se na rua, em frente. Pediu um café, abriu o jornal com o intuito de alienar-se, enquanto aguardava. O tempo demorava em passar e, por isso, movia-se emocionalmente, açulada por uma curiosidade inexplicável. Passou um quarto de hora, meia hora e nada. Decidiu-se por regressar, definitivamente, à perfumaria e telefonar. O número ficara-lhe registado no telemóvel. Apenas um silêncio profundo, angustiante e perturbador, do outro lado. Tentou mais uma vez, naquele dia, uma outra no dia seguinte e ainda outra no terceiro dia… Nada. Sempre o mesmo silêncio, sempre a mesma estranha e intrigante e rejeição. Desistiu

Voltaram a rolar vagarosos e monótonos, os dias e os meses… talvez um ano.

Um dia, do lado de fora do balcão da perfumaria, onde geralmente só iam mulheres, encostou-se um homem, já aparentando alguma idade. Uma acentuada calvície a denunciar que já andaria muito para além dos cinquenta, muito magro e alto, mas elegante, charmoso e simpático, muito simpático. Não havia mais clientes. Falaram sobre coisas supérfluas, conversaram sobre assuntos triviais e, Irene sorriu, o que há muito não acontecia. O homem vestia um fato preto, sobre uma camisa azul escura, desajeitadamente desabotoada no pescoço, aparentando que a gravata havia sido retirada há pouco tempo. Voltou no dia seguinte e ela desejou que ele voltasse em mais um dia, em muitos outros dias.

Mas no dia seguinte, o homem de fato preto e camisa azul escura não voltou. Nem em mais nenhum dia. Apenas de vez em quando passava, na rua, em frente à perfumaria. Apenas olhava, sorria e cumprimentava-a com um solene acenar da cabeça. Depois, triste e sorumbático, continuava o seu caminho…

E Irene regressou ao silêncio amargo da solidão, ao emaranhar-se entre as conversas supérfluas dalgumas clientes, o sorriso fingido de outras, entra a indiferença de todas as que demandavam a perfumaria. E ao sentar-se, nas tardes de folga, abstracta e abstrusa, num banco do velho jardim onde apenas, as buzinas dos carros, como se fossem sirenes distantes se misturavam com o chilrear dos pássaros, Irene continuava a sentir uma solidão, aparentemente, ainda maior e, sobretudo, mais dramática. É que na escola em frente, os gritos das crianças que brincavam no pátio, desde há muito que se haviam calado.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:50

ATENA

Sexta-feira, 14.03.14

Atena, deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade, era filha de Zeus e de Métis, sendo esta a primeira esposa de Zeus e uma espécie de personificação da prudência.

Certo dia, Zeus foi, antecipadamente, avisado por Gaia e Urano, a primeira personificando a Terra e o segundo o Céu, de que a filha que havia de nascer de Métis seria mais poderosa do que que ele próprio e que assim corria o risco de ser destronado. Para evitar tal agravo, Zeus recorreu a um estranho estratagema, através do qual, antecipando-se a Médicis, fez com que a filha fosse gerada no seu próprio ventre e não no da esposa. Assim, Atena foi dada à luz da cabeça do seu pai, junto às margens do rio Tritão, nascendo completamente adulta e, além disso, armada. Mas antes de Atena nascer, Zeus sentiu uma enorme e insuportável dor de cabeça, pelo que pediu a Hefestos, deus do ferro, que lhe abrisse o crânio com um machado, a fim de que conseguisse parir a própria filha.

Atena tornou-se, por tudo isto, a filha bem-amada de Zeus que a sentou, no Olimpo, à sua direita, tornando-a sua conselheira e, algum tempo depois, permitiu que ela conduzisse a carruagem de Diomedes, provocando, no entanto, alguns distúrbios dramáticos: feriu Ares, matou Ajax e provocou a guerra entre gregos e troianos. Além disso, Atena também teve uma actuação indirecta na captura de Paládio pelos gregos, o que acabou por provocar a queda de Tróia.

Atenas teve um relacionamento profundo com Aquiles e favoreceu-o na luta contra Agamémnon, por um lado aconselhando-o a que moderasse a sua fúria e, por outro, colaborando com ele na morte de Heitor. Mas o principal e mais importante relacionamento de Atena foi com Aquiles, de quem se tornou amiga predilecta e protectora durante a sua longa e atribulada viagem de regresso a Ítaca, ajudando-o a libertar-se dos embustes da feiticeira Circe. Quando Aquiles, finalmente, chegando a casa, se entregou ao desalento porque ninguém o reconheceu, a não ser o seu cão Argos, a deusa tornou-se sua íntima confidente, amparando-o e consolando-o. Atena aceitou apoiar Ulisses e ligar-se, perpetuamente, a ele, porque o considerava o mais valente e o mais astuto dos mortais, enquanto ela era a mais sábia e a mais engenhosa das divindades. Também favoreceu Telémaco, filho de Ulisses, disfarçando-se de Mentor, aconselhando-o a ir informar-se sobre o destino de seu pai, profetizando que ele em breve estaria de volta e, mais tarde, instruindo-o sobre a maneira como havia de agir contra os malévolos pretendentes que se aproximavam e provocavam a sua mãe, Penélope. Sob o mesmo disfarce apresentou-se diante daqueles predadores de viúvas, no momento da peleja final, incitando Ulisses a lutar contra eles. Transformando-se em andorinha, desviava as lanças dos impostores e guiava, com pontaria certeira, as de Ulisses.

Foi Atena que vestiu Pandora com um manto de prata e um maravilhoso véu bordado, pondo-lhe na cabeça uma grinalda de flores e uma coroa de ouro, tornando-se aliada de Zeus na luta contra os Titãs e, mais tarde, contra os Gigantes.

Quando Cécrops se tornou rei da Ática, os deuses olímpicos decidiram repartir o reino a fim de estabelecerem os seus cultos nas várias cidades. Posídon chegou primeiro à capital recém-fundada e, com seu tridente, feriu o solo da Acrópole, de onde brotou uma fonte de água salgada. Atena apareceu depois dele, mas reivindicou a posse da cidade, plantando ali a uma oliveira. Ambos iniciaram uma disputa, e Zeus designou como árbitros os outros deuses. Atena foi declarada vencedora porque a oliveira foi considerada mais útil para os humanos do que a água salgada. Assim a deusa assumiu a tutela da cidade e emprestou-lhe o seu nome. Mais tarde Atena foi encomendar armas a Hefestos, mas este, tomado de paixão pela deusa, tentou seduzi-la. Ela rejeitou-o, mas Hefestos não desistiu e ejaculou sobre a sua coxa. Atena limpou o sémen e, enojada, arrojou o pano que usara sobre Gaia, a Terra que, em segredo, gerou um filho com o sémen rejeitado, a quem pôs o nome de Erictónio, tornando-o imortal. De seguida, colocou-o dentro de um cesto, que confiou aos cuidados de um filho de Cécrops, Pandroso, mas proibiu-o de olhar o conteúdo. As irmãs de Pandroso, vencidas pela curiosidade, abriram o cesto mas ficaram horrorizadas ante a visão, por quanto, lá dentro, envolvendo o bebé, estava uma serpente.

Atena ainda enriqueceu o seu excelso e deslumbrante currículo, participando num concurso de beleza, juntamente com Afrodite e Hera, tendo como juiz Páris. Hera, furou o sistema, subornando Páris, garantindo-lhe o domínio sobre todos os reis da terra e a vitória em todas as guerras em que se envolvesse, se ela fosse a escolhida. Mas foi Atena quem acabou por vencer o concurso, sendo proclamada a mais bela.

Vários personagens míticos foram punidos por Atena em consequência de profanações e ultrajes à sua divindade, entre os quais Ajax Menor, o filho de Oileu, príncipe da Lócrida, por ter violado Cassandra, dentro do santuário da deusa. Atena não gostou da profanação e castigou-o severamente: o seu barco, atingido por um raio, naufragou e o seu povo foi assolado por uma praga, sendo obrigado a expiá-la ao longo mil anos, durante os quais os locridenses foram obrigados a enviar, anualmente, duas donzelas para serem sacrificadas pelos troianos. Também Auge, sua sacerdotisa, maculou o seu santuário, na Arcádia, pelo que Atena castigou aquela região, tornando-a infértil até ao dia em que o rei decidiu expulsar dali a devassa e impudica sacerdotisa, vendendo-a como escrava. Pelo mesmo motivo mandou que Tideu matasse Ismene, princesa da Beócia. Mas não ficaram por aqui as punições de Atena aos facínoras e prevaricadores. Ilus foi cego pela deusa por ter destapado a estátua de Paládio, cuja contemplação era vedada aos mortais, Aracne foi transformada em aranha por ter ousado desafiar a própria deusa numa competição de bordados e Mérope foi transformado em coruja, simplesmente, por ter ridicularizado os olhos cinzentos da deusa e zombado dos outros deuses. Atena ainda enlouqueceu Aias Telamânios por ameaçar matar os líderes gregos durante a Guerra de Tróia, matou Laoconte e seus filhos, enviando duas serpentes marinhas para os estrangulr, a fim de impedir que ele revelassem aos troianos o segredo do Cavalo de Tróia e fez desabar uma terrífica peste sobre a Arcádia porque seu príncipe Teutis, a ferira, acidentalmente. Foi Atena que transformou Medusa num monstro, simplesmente por se ter considerado mais bela do que ela e, posteriormente, ajudou Perseu a matá-la, fixando a cabeça da górgona no escudo do jovem, com o qual aterrorizava os seus inimigos.

Mas Atena também se revelou benevolente e generosa. Para evitar que Corónis, princesa da Fócida, fosse violentada por Posídon, transformou-a num corvo. Para proteger Nictímene de destino semelhante metamorfoseou-a em coruja, tomando-a como o seu animal simbólico. Ajudou Argos, artesão de Iolco, a construir um navio com o seu nome e que conduziu os Argonautas e deu a beber o sangue da Medusa a Asclépio, a fim de que ele aumentasse os seus poderes curativos. Na área da educação, ensinou a Dédalo a arte da construção, ajudou Dánao a fabricar um barco para fugir da Argólida com as suas cinquenta filhas, a fim de, mais tarde, as purificar através do assassinato dos seus maridos, inspirou o carpinteiro Epeios para que construísse o Cavalo de Tróia, ensinou a Eurínome a arte da tecelagem e concedeu-lhe a sabedoria, conseguindo para ela também um bom esposo e também ensinou às filhas de Coroneu e às de Pândaro a arte da tecelagem. Foi Atena que restituiu a vida a Perdix, sobrinho e pupilo de Dédalo, sob a forma de um faisão, como recompensa pelas invenções que havia transmitido à humanidade, cegou Tirésias por ele a ter visto nua enquanto se banhava, mas compensou-o concedendo-lhe o dom da profecia, deu dentes de dragão a Eetes, rei da Cólquida, e a Cadmo, rei de Tebas, para que eles dessem origem a uma valente raça de guerreiros e disponibilizou ajuda a Hércules, no difícil cumprimento dos seus Doze Trabalhos. Atena ainda foi a grande auxiliadora dos gregos na Guerra de Tróia e em particular ajudou Aquiles e Ulisses e colaborou com Belerofonte a capturar o cavalo alado Pégaso, instruindo-o e dando-lhe uma rédea especial, de ouro, para que ele o pudesse domar.

Atena, para além de forte, justa e bela, era dotada de uma profunda sabedoria e conhecia todas as artes e estratégias, levando a bom termo todos os seus propósitos. Por isso é que foi sempre, universalmente, respeitada e admirada.

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VIRGEM

Sábado, 08.03.14

Imaculadamente virgem, Aurora saiu de casa dos pais, com destino à igreja. No altar, esperava-a o padre Silvestre, o Chico do Ferreiro e uma enorme angústia.

Chegara a hora de se aviar a moçoila. Era a mais velha e a casa do Rebimbas rebentava pelas costuras: na loja, entre cestos de batatas e sacos de inhames, três barras para os rapazes e a sala a abarrotar com as pequenas. De resto, apenas um minúsculo e esconso quarto de cama, destinado ao casal e a cozinha, esta sim, apesar de vetusta e desordenada, muito ampla e, exageradamente, espaçosa. Filhos e filhas, a roçar a dúzia, atarracavam-se em disputas e em desejos incontidos, atropelavam-se nos dias invernosas e, à noite, sobretudo na hora de lavar os pés, ameaçavam-se em murmúrios desgovernados e em ameaças hostis. Um sufoco!

Primogénita, agora com vinte e dois anos, Aurora era a candidata natural ao primeiro desbasto e, além disso, desde há muito que o Chico do Ferreiro lhe catrapiscava o olho. Ela nada. Aquela pasmaceira, indiferente e fria, habituada ao trabalho, educada entre rezas e jaculatórias, alheia aos mais simples prazeres da vida. Mas isso pouco importava. Virgem de corpo e ingénua de alma, nem às da sua idade compartilhara sentimentos ou, sobre elas, despejava desvelos ou paparicava curiosidades. Na sua supérflua ignorância e imaculada vivência, entendia que casar era um destino normal e comum, mas sem significado e importância. Era como ir lavar um cesto de roupa à Ribeira. Casar era, apenas, partilhar a casa com um homem, cozinhar, lavar, arrumar, ter filhos e ajudar nos campos. Mas, pior do que isso. Para ela, casar era um martírio, um sacrifício, uma ignomínia a roçar a indignidade, porquanto à noite, embora com o corpo bem tapado com um desafogado “naitigão”, era obrigada a partilhar a cama com um homem que lhe era totalmente estranho e que, de um momento para o outro se transformava em marido.

Simples a cerimónia, pobre a boda. Os tempos eram de miséria e a vida cerceada por limitações. E à noitinha, depois de desertarem os convidados, lá partiu Aurora, com o Chico, a caminho da Via d’Água onde lhe haviam montado um pequeno, pobre e humilde casebre.

Aurora acendeu o lume, aqueceu água numa chaleira a abarrotar de tisna, lavaram-se à vez, na cozinha, numa selha de madeira, e deitaram-se, na mesma cama, porque não havia mais nenhuma. O Chico, ainda tentou uma, duas e três vezes, procurar-lhe o corpo arquejante, envergonhado e temeroso, acariciando-lhe as mãos e os braços nus. De seguida, galvanizado pela suavidade daquela pele, acicatado pela doçura daquele corpo, incendiado por desejos lascivos, tentou afagar-lhe os seios. Aurora, porém, de imediato se esquivou, lívida, petrificante e apavorada, expelindo uma decidida e inequívoca rejeição. Nem por sombras havia de deixar-se ser tocada por um homem. O Chico insistiu. Mas as respostas vinham sempre tão abruptas, tão inveteradas, transformando-se em recusas decididas, radicais e absolutas. E a noite a transformar-se numa aflição para ela e um agastamento para ele. Com o intuito de lhe afastar as tentações, Aurora pegou no terço que a mãe lhe dera como prenda de casamento e começou a dedilhá-lo com meticulosa fogosidade e acentuado fervor. O Chico, embora convulsivo e revoltado, aquietou-se. Não queria molestá-la, nem muito menos fazê-la sofrer, embora sonhasse, desde há muito, com aquela noite, terna, maviosa, envolvente e sublime, durante a qual se entregaria, total e plenamente, à mulher que escolhera como companheira. Durante o namoro, conciso e intervalado, nunca lhe arrancara sequer um abraço, nem, muito menos, um beijo. Herdara as esquisitices da mãe, sempre a ameaçar, sempre a perseguir, sempre a meter medo com tolices e despautérios que haviam provocado aquela cegueira com que ela, mesmo agora, depois de casada, o afastava de carinhos e enlevos. Os fantasmas e as palermices que lhe haviam arrolhado na cabeça é que a impediam de se entregar na sublimidade e na doçura daquela noite. Se quisesse podia força-la, obrigá-la... Talvez ela, ao sentir-se forçada, cedesse e acabasse por descobrir o prazer da entrega e da paixão e, assim, apagasse as cicatrizes dos medos, das interdições, das ameaças, dos castigos, do inferno. Voltou-se num impulso instintivo, quase animalesco, açulado por uma natureza abrupta e cósmica, mas pura e ingénua. Ela, acicatada pelo sono, já abdicara do terço e deslizava, agora, sobre o travesseiro, cuidando que ele se aquietara do seu ousado atrevimento. Mas não. Ele, apenas, por momentos, descera ao abismo do silêncio escuro. Mantinha-se vigilante, resistente, disposto a lançar-se numa investida, que protagonizasse todo o seu vigor. Era tão grande a ânsia de desfazer aquele afastamento, anular aquela recusa, ultrapassar aquela oposição. A luz de petróleo há muito que se apagara e o quarto permanecia numa escuridão mórbida e silenciosa. O Chico encostou, parcialmente, o seu corpo ao dela que permanecia apática, indiferente, despegada de desejos e prazeres. Fortes pulsões pediam-lhe uma concentração forte dos sentidos e uma rapidez de movimentos que ela, antecipadamente, não percebesse, voltando, assim, a rejeitá-lo. Ardendo em desejos, o Chico esvoaçava aspirações, perante um corpo aparentemente inerte e despido de vontade, perdido na escuridão do quarto. Uma instintiva pujança diluiu-lhe o corpo, consubstanciando-se numa posse rápida, eficiente e certeira, numa comunhão não partilhada pela amante gélida, fria, estática, incapaz de identificar uma nesga que fosse do píncaro do prazer. E num ápice o Chico explodiu…

Aurora levantou-se, confusa, estonteante e indignada. Acabava de pecar, gravemente, entrelaçando-se nas mais hediondas forças do mal, entregando-se a Satanás. Por isso, nenhuma razão tinha para continuar ali, nem fora para isso que viera. Não havia de colocar-se, todos os dias, ao lado daquele homem, com lágrimas, dor, sofrimento e desalento. Nunca mais havia de consentir que voltassem a pecar.

O Chico, agastado de sublimidade, acariciado num cansaço doce e extasiante, aquietara-se da agitação subsequente ao enlevo, adormecendo. Aurora levantou-se, juntou as suas parcas roupas e, enrolando-as num xaile, fez uma trouxa.

Madrugada, ainda noite escura, a mãe, após toda uma noite alvoraçada, ouviu um leve arranhar de mãos na porta da cozinha. Veio à janela e, em voz baixa, indagou:

- Quem está aí?

De fora uma voz trémula e assustada, respondeu:

- Sou eu, a Aurora.

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publicado por picodavigia2 às 17:56

QUERMESSE

Quinta-feira, 06.03.14

Era pela festa da Senhora da Saúde. Todos os anos. Num dos domingos que antecediam o dia da festa, lá ia a criançada da catequese, os da quarta, pelas casas da freguesia, desde o Cimo da Assomada até ao fundo da Via d´Água, pela Fontinha, pela Rua Direita, pela Tronqueira e Rua Nova. Rara a casa que escapava à fúria pedidora da ganapada. No fim, acumulava-se, na sacristia de baixo, um amontoado de prémios, bugigangas diversas de pouca utilidade mas, regra geral, bastante vistosos e apelativos. Compravam-se mais umas miudezas baratas, a concertar o amontoado e seleccionavam-se os prémios para a roleta. Os melhores, claro.

Uns dias antes da festa impunha-se que imperasse a organização de todo aquele acervo, metódica, selectiva e emocional. No reboliço da azáfama, ele mais afoito e experiente nestas lides, mas mais desleixado e maleável, ela mais sensível e delicada, mais cuidadosa e sensata na escolha, na selecção e no arranjo. Tudo desenvencilhado em diálogos de circunstância, emoções contidas, desejos refreados, a arfar uma inusitada mas recíproca cumplicidade. A obstrução era rainha, numa ternura desmedida, num envolvimento desejado, a esquecer um passado proscrito, amordaçado. Centenas de quadradinhos de papel eram cuidadosamente enrolados, uns após os outros, simetricamente, num insigne e deslumbrante cuidado. O epicentro do desvelo rasgava-se frenético como se fosse uma onda a vir e voltar, tímida, temerosa, talvez mesmo ofegante. Reservavam-se uns quantos quadradinhos brancos para os premiados, onde se haviam de registar os números atribuídos aos prémios. Depois a lista, cuidadosamente abstrusa, a obrigar e exigir uma repetição, com as bugigangas devidamente registadas e numeradas, onde a cada objecto correspondia um número. Discutia-se a ordenação, a prioridade e a selecção com aparente indignação e disfarçado distanciamento. Despejavam-se, em uníssono mas de forma encoberta, desejos conciliadores, alvoroçava-se, às escondidas, a unanimidade, convertendo-a numa espécie de ternura sufocante, num simulado desembocar de contrição. Colocados os números nos bilhetes que haviam sido reservados, havia que os enrolar, firmes, destemidos, mesmo que a noite já se impusesse como destruidora de fascinações.

Depois vinham os prémios tardios, dos que não estavam em casa e dos que, na altura da derrama, de nada dispunham. Precioso retardamento! Eram precisos mais bilhetes brancos, mais nomes na lista, mais números, mais tudo. Para remediar o que quer que fosse, para acrescentar o que chegava atrasado, havia sempre mais um dia, depois outro e ainda outro - dias consagrados, perenes, profundos, límpidos e serenos. O reparar dos erros renovava a inconstância, o repor das falhas reconstruía a aparência e o acrescentar de conteúdos obstruía o sentimento. Atirava-se ao ar o amontoado gigantesco de desejos e repeliam-se os brados estridentes dos enigmas. Agora, era a excelência, sublime e dominadora, que, substituindo a obstrução inicial, se tornava rainha.   

O quiosque era um hexágono de madeira, chavasco, tosco e pouco estético. Os seis lados do hexágono eram construídos com ripas de madeira cruzadas, um deles com ádito, sendo presos nos vértices a seis barrotes. Estes, unidos na base e presos no cimo, amontoavam-se e agregavam-se, lá no alto, como se fosse uma pirâmide, também ela hexagonal, a afunilarem-se no cocuruto, terminando sob a forma de um pequeno capitel arredondado, com uma bandeira a encimá-lo. Sobre cada um dos vários conjuntos das ripas cruzadas, uma pequena tábua a simular uma espécie de balcão de tasca antiga e seis janelas, sempre abertas, a arejarem o interior, como se isso fosse necessário.

O quiosque era colocado no adro, à entrada para a sacristia, por baixo da torre sineira, e emergia altivo, cativante e motivador. No interior, uma mesa com algumas prateleiras sobrepostas, expositivas dos prémios, imbricados de forma apelativa e convincente, a provocar enlevo e, sobretudo, atracção. Homens, mulheres, crianças todos se aproximavam. Umas vezes acotovelando-se, outras emancipando-se em remanso, iam comprando, desenrolando, desembrulhando. Se não havia o tão desejado numerozinho que correspondia a um prémio, era o desânimo instituído, emaranhado com um outro comentário malicioso, atrevido, displicente. Quando havia prémio era um regalo aliado a um momento de suspense personificado num estender de braços por cima das ripas. A demora da procura, gratificante e envolvente, açulava a expectativa. Se reinava a calma as caixas recheadas dos bilhetes aquietavam-se e era a lista o pretexto para um olhar conjunto, simultâneo, unificado. Um simular de procura ou um suposto engano eram o alor amantético e o travo adocicado de novos e profundos sentimentos, um desenrolar de subterfúgios acorrentados, perdidos, impossíveis de edificar.

Lá fora algumas crianças com cachinhas de papelão a vender bilhetes, o boneco de madeira a revirar-se às boladas, o repique dos sinos, o estalar de um ou outro foguete e a música a tocar, encobrindo um gracejo chocarreiro, um enleio gratificante, um segredo adivinhado, um olhar sublime, um embate inusitado mas sentido e clarificado na doçura de um sorriso.

E quando a noite, madrasta e perversa, desfazia a magia telúrica e profunda da quermesse, caía sobre o quiosque hexagonal, chavasco e tosco um amargo acervo de melancolia.

Mas o que tornava mais bela e gratificante a festa da Senhora da Saúde era a quermesse.

 

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publicado por picodavigia2 às 16:15

A LENDA DE SAC-NICTÊ

Segunda-feira, 03.03.14

Ela era uma princesa bela como a lua das noites tranquilas, graciosa como as flores da primavera, doce como o canto das cotovias, formosa como a luz do Sol, suave como a brisa matinal e fresca como as gotas de orvalho. Ela era uma flor que enchia os campos de alegria perfumada e transportava, nos seus braços, as mais belas canções de amor.

Chamava-se Sac-Nicté e nascera numa enorme cidade, situada numa alta montanha, num país onde a paz unia, como irmãs gémeas, todas cidades do reino, onde não havia exércitos, porque os reis de todos os reinos vizinhos haviam feito um pacto de paz, a fim de viverem como irmãos. Na mesma cidade vivia o valoroso príncipe Canec.

Certo dia a princesa Sac-Nicté viu o príncipe Canec sentar-se no trono e o seu coração estremeceu de alegria e contentamento. Quando acordou, na madrugada seguinte, a princesa Sac-Nicté percebeu que a sua vida e a vida do príncipe Canec, a partir daquele dia, caminhariam juntas, como se fossem dois rios a correrem, em simultâneo, para o mar.

No dia em que se tornou rei o príncipe Canec foi ao templo, apresentar-se perante o seu deus. Quando entrou no templo, as suas pernas de caçador tremiam e os seus braços de guerreiro estavam caídos, porque encontrara, ali, entre o povo que o aclamava, a princesa Sac-Nicté.

A grande praça do templo estava cheia de gente que havia chegado de todo o reino para ver o príncipe Canec. E todos os que estavam próximos viram o doce e suave sorriso da princesa e o olhar nervoso e comprometido do príncipe, a apertar o peito com as mãos frias.

Ali estavam também os reis e os príncipes de muitas outras cidades. Todos os olhavam e viam, mas não compreendiam que, a partir daquele momento, as vidas do novo rei e da princesa haviam começado a caminharem juntas, cumprindo a vontade dos deuses.

Mas, alguns anos antes, a princesa Sac-Nicté havia sido prometida em casamento, por seu pai, ao poderoso Ulil, príncipe herdeiro de um reino vizinho. Por isso, no dia em que o príncipe Canec se tornou rei, estava prestes a realizar-se o casamento do príncipe Ulil com a princesa Sac-Nicté.

Vieram mensageiros do rei Ulil junto do jovem rei Canec e disseram-lhe:

- O nosso rei Ulil convida Vossa Alteza, seu amigo e aliado, para as festas do
seu casamento com a princesa Sac-Nicté.

Canec, com os olhos avermelhados de choro e sofrimento, retorquiu-lhes:

- Dizei ao vosso senhor que estarei presente.

Depois vieram outros mensageiros dizer ao rei Canec:

- O nosso rei Ulil pede ao grande rei Canec que lhe dê o prazer de se sentar à sua mesa durante a festa do seu casamento com a princesa Sac-Nicté.

E o rei Canec, com a fronte cheia de suor e lágrimas, replicou:

- Dizei ao vosso rei que me verá nesse dia, sentado à sua mesa.

E quando o rei Canec, durante a noite, estava só e pensativo, a olhar as estrelas cujo brilho se reflectia na água e a conversar com elas, apareceu-lhe um misterioso anão que lhe disse, em segredo:

- A princesa Sac-Nicté está à vossa espera entre as folhas verdes das árvores que povoam o jardim da cidade. Vais deixar que outro a tome por esposa? – E, dizendo isto, desapareceu.

No dia do casamento a princesa Sac-Nicté foi conduzida por seu pai, juntamente com todos os grandes senhores do reino, em cortejo solene, caminhando por ruas enfeitadas de pétalas e cânticos. O príncipe Ulil, ao sair, para receber a princesa, estranhamente, encontrou-a chorando.

Toda a cidade estava adornada de cintas, de plumas de faisão, de plantas, de balões coloridos e de arcos pintados de cores brilhantes. E todos dançavam e estavam alegres, porque ninguém sabia o que estava para acontecer.

Já os festejos iam no terceiro dia e a Lua estava cheia, grande e redonda como o Sol, mas a princesa continuava triste e dos seus olhos corriam grossas lágrimas.

De todos os reinos, próximos e distantes, haviam chegado reis, príncipes e nobres e todos tinham trazido presentes e oferendas para os noivos. Alguns vieram com veados brancos, de cornos e cascos de ouro, outros vieram com grandes conchas de tartaruga cheias de plumas de quetzal radiante. Chegaram guerreiros com azeites odoríferos e colares de ouro e esmeraldas, vieram músicos com pássaros ensinados para cantar com música celestial. De todas as partes chegaram embaixadores com ricos presentes… Apenas o jovem rei Canec não apareceu nem enviara nenhum presente. Esperaram-no até o terceiro dia, porém, nem nesse dia chegou ou enviou mensagem alguma. Por isso todos estavam admirados e cheios de estranheza e inquietude, porque não sabiam o que se passava. Apenas o coração da princesa sabia e, por isso, chorava…

Finalmente, chegou a noite do terceiro dia das festas. Preparou-se o altar do esponsório mas o rei Canec ainda não chegara, por isso já todos cuidavam que ele não viria, contrariando a promessa feita aos mensageiros do rei Ulil.

A princesa Sac-Nicté estava vestida de cores puras e adornada de flores, diante do altar, ao lado do homem que a teria por esposa. A princesa Sac-Nicté, no entanto, esperava em silêncio e sonhava com os caminhos pelos quais haveria de caminhar na procura do rei Canec que ela colocara, desde há muito, no seu coração. Esperava-o e ansiava pela sua chegada, enquanto Canec, o triste rei, o jovem e forte caçador, procurava, desesperado o caminho que havia de seguir para cumprir a vontade do deus altíssimo e encontrar a sua amada Sac-Nicté.

Finalmente chegou o rei Canec, trazendo consigo os seus mais fortes guerreiros e subiu ao altar, onde ardia o incenso, onde cantavam os sacerdotes e dançavam as virgens. Trajava um vestido de guerra, com o emblema do seu reino cravado sobre o peito. Calmo e tranquilo, o rei entrou no templo, como o vento agitado e arrebatou a princesa em seus braços, perante o espanto de todos. Ninguém pôde impedi-lo e, quando o tentaram fazer, já o rei Canec e a sua amada princesa Sac-Nicté não estavam ali. O príncipe Ulil ficou só, ante os sacerdotes e junto ao altar, encerrando assim as festas do seu casamento, que não chegou a realizar-se. Mas de pronto roncaram os caracóis e soaram os címbalos e a ira do príncipe Ulil fez-se ouvir pelos montes e vales do seu reino, a convocar os seus guerreiros para a guerra.

O rei Canec, porém, juntamente com a princesa já se haviam afastado, seguindo por caminhos ocultos e desconhecidos. Mas sabendo da ira de Ulil, o rei Canec também reuniu os seus guerreiros e preparou-se para a luta.

Seguiu-se uma sangrenta batalha. Ulil pretendia que a vingança caísse sobre Canec, sobre o seu reino e o seu povo. Pelos caminhos havia a poeira das marchas e no ar gritos de revolta. Ressoavam os sonoros címbalos e trovejava o caracol de guerra. Casas e templos foram arrasados e muitas cidades destruídas. O povo sofreu e chorou durante a noite, mas no dia seguinte, logo ao romper da aurora, todos se correram em fila, para salvar as estátuas dos deuses e a vida do seu rei e da princesa. Então o rei Canec escondendo-se nos carreiros abertos no meio das montanhas, caminhava envolto em um manto branco, sem coroa de plumas na sua fronte. A seu lado, ia a princesa Sac-Nicté, assinalando, com a mão branca e fina, o caminho. Finalmente, chegaram a um lugar tranquilo, seguro e verdejante, junto a uma lagoa, distante de todas as cidades, e ali fixaram o seu reinado, construindo um palácio humilde e simples, cheio de sonhos, na cidade da paz, da virtude, da tranquilidade, da glória e da alegria. Uma cidade onde, em todas as Primaveras nasciam flores brancas e as árvores enchiam o ar de suspiros perfumados.

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publicado por picodavigia2 às 08:42

HERA E OS FESTIVAIS DE MASTRONÁLIA

Domingo, 02.03.14

Hera, filha de Cronos e Réia, era a deusa da serenidade no casamento, da frescura dos pastos e da perseverança das vacas. Era irmã e esposa de Zeus, o poderoso senhor absoluto e deus dos deuses, sendo, habitualmente, retratada como doce, majestosa e solene, coroada como uma rainha, com uma coroa de ouro. Hera, também, ostentava na sua mão uma romã, símbolo da fertilidade, do sangue, da frieza e da morte.

Sendo responsável e defensora da fidelidade conjugal, Hera tinha, por vezes e sobretudo quando ofendida na sua dignidade, um temperamento ciumento e agressivo contra qualquer relação extra conjugal e, além disso, odiava e perseguia as amantes de Zeus e os filhos de tais relacionamentos. O único filho de Zeus que ela não odiava, antes gostava, era Hermes e sua mãe Maia, pois ficara surpreendida com a inteligência e beleza que o jovem revelava,

A deusa Hera tinha, edificados em sua honra, sete templos, em toda a Grécia. Nas suas representações aos humanos, mostrava, apenas, os seus olhos e usava uma pena de pavão, a sua ave predilecta, para marcar os locais que estavam sob a sua protecção.

Hera era muito vaidosa e sempre quis ser mais bonita que Afrodite, a sua maior e principal inimiga. Irmã e esposa de Zeus, a mais excelsa das deusas do Olimpo, foi descrita e retratada na Ilíada como orgulhosa, obstinada, ciumenta e rixosa. Com Zeus teve todos os seus filhos: Hebe, Hefesto, Ares, Éris e Ilitia. Odiava sobretudo Héracles, o qual procurou, por diversas vezes, matar e, na guerra de Tróia, por ódio aos troianos, devido ao julgamento de Páris, ajudou e apoiou os gregos.

Hera, para além de deusa, era rainha do Olimpo, conhecida também como protectora e defensora da vida e da mulher. Reinava no Olimpo ao lado de Zeus, seu marido, por quem chegou a ser muito humilhada, sobretudo pelas suas traições e atitudes, nomeadamente, quando ele, sozinho, gerou Atena, mostrando, assim, que não precisava de Hera nem para conceber um filho. Triste e desolada, Hera procurava consolo e amparo junto de Hiógenes, que a amava apaixonadamente. Ela, porém, nunca correspondeu a tão grande paixão, tentando sempre ignorá-la.

Um dos graves episódios de ciúmes de Hera foi o que aconteceu com a deusa Calisto que por ser muita bela lhe conquistou o marido. Hera para os separar transformou Calisto numa ursa que, assim, passou a viver numa floresta, muito isolada de todos e muito assustada com medo de ser morta pelos caçadores. Até que um dia, a ursa ao reconhecer o seu filho Arcas, correu para abraçá-lo, mas Arcas não a reconheceu e preparou o arco para lhe atirar. Hera, porém, prevendo o que iria acontecer lançou um feitiço e enviou os dois para os céus, transformando-os em constelações, nascendo assim a Ursa Maior e a Ursa Menor. Mas mesmo assim, Hera ainda tinha muita raiva de sua rival e, por isso, pediu a Tétis e a Oceano, divindades do mar, que nunca deixassem as duas ursas descansar nas suas águas. Essa a razão por que aquelas duas constelações ficam sempre em círculos e nunca desaparecem no céu, nem descem para trás das águas como as outras constelações e as suas estrelas.

Outro episódio de ciúme de Hera foi quando encontrou Zeus com outra amante. Era a deusa Io, mas Hera ao perceber que ela se aproximava de Zeus, transformou-a numa vaca. Hera pediu a Zeus que lhe desse a vaca como presente, o que Zeus não lhe pode negar, fazendo-lhe a vontade. Então ela entregou a vaca aos cuidados de Argos, um monstro de muitos olhos, que ao dormir nunca os fechava todos e, assim, a vaca estava sempre vigiada. Mas Zeus ao ver o sofrimento da amante pediu a Hermes que matasse Argos. Então Hermes tocou uma música, fazendo com que Argos adormecesse por completo, fechando, assim, todos os olhos, após o que lhe arrancou a cabeça.

Então Hera muito triste pelo sucedido, pegou nos olhos de Argos e colocou-os na cauda de sua ave predilecta, o pavão, onde ainda hoje permanecem. A deusa continuou perseguindo Io, mas Zeus prometeu que não a teria mais com a amante. Hera aceitou a promessa e devolveu a aparência humana a Io.

Hera era homenageada, com pompa, nos celebérrimos festivais da Matronália, realizados no dia 1 de Março de cada ano. Tratava-se de grandes e solenes festejos dedicados às mulheres em geral, que, nesse dia, recebiam presentes e orações de seus maridos. Nos templos da deusa, celebravam-se rituais sagrados onde as mulheres deviam usar os cabelos soltos e não podiam usar cintos ou nenhum nó nas roupas. Os seus fiéis e devotos mortais ofereciam-lhe um vaso com um ramalhete de flores, que deviam estar amarradas com uma fita amarela.

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publicado por picodavigia2 às 00:51

PERDÃO

Terça-feira, 25.02.14

O António Tenente era um exímio pescador mas tinha um feitio dos diabos. Autoritário, impulsivo, rabugento, teimoso e, sobretudo, incapaz de perdoar ofensa que lhe fizessem. Anos a fio, na “Senhora da Ajuda”, à pesca da albacora, o afastamento prolongado da família como que o abrutalhara, filtrando-lhe a sensibilidade, arrefecendo-lhe os sentimentos, gravando-lhe, na alma, o restolho da solidão, da apatia e da indiferença. Tornara-se frio, solitário, insensível, implacável e, sobretudo, casmurro. Agora, apenas o mar e só o mar lhe domava os sentimentos e satisfazia os desejos. O mar, para o Tenente, parecia ter-se tornado numa paixão rude, num fascínio relutante, num encanto achaboucado. O mar era algo de que jamais se havia de separar e, mesmo agora, já trôpego e pouco afoito a aventuras em águas distantes e profundas, longe da costa, arrastava-se, até ao porto e passava horas e horas ali, ora sentado sobre a rocha a olhar, sombriamente, o horizonte perdido, ora a pescar de pedra. Hábil e expedito, caniço bem aparelhado, peixe bem engodado e era um abarrotar de sargos, prumbetas, vejas, garoupas, castanhetas, salemas e um ou outro peixe-rei. Enchia a casa, a mulher pagava favores às vizinhas e ainda vendia uma ou outra cambulhada mais robusta e substanciosa.

O Tenente tinta três filhas. A mais velha, a Ermelinda havia-se perdido de amores pelo Augusto, o filho do Chico do Cabeço, ele, também, um velho e experiente pescador de traineira. O Tenente e o Chico, porém, não se falavam. Pior. Odiavam-se a tal ponto que nem se podiam ver. Enredos e discussões a bordo da “Senhora da Ajuda” geraram ameaças, despoletaram insultos e, sobretudo, cimentaram ódios, que, dificilmente, se haviam de dissipar. Ermelinda sabia-o e temia que o progenitor algum dia anuísse ao namorico. O coração, porém, fora mais forte. A simpatia inicial transformara-se em paixão e esta, em namoro. Afinal, ele, o Augusto, também a amava e muito.

Correram os dias, intensificou-se o namoro, divulgou-se pela freguesia a novidade, a qual, rápida e célere, foi parar aos ouvidos do Tenente. Muniu-se o facínora duma corda dobrada em quatro e esperou a filha, ao lusco-fusco, perante os choros e imprecações da mulher que, adivinhando a borrasca, implorava clemência.

Mal entrou Ermelinda em casa, surge-lhe, pela frente, o Tenente, furibundo e terrífico, de chicote em riste, indagando, em tom ameaçador:

- É verdade que namoras o filho daquele pulha? – Perante o silêncio comprometedor da rapariga, o Tenente insistiu, ao mesmo tempo que lhe assapava, como rito inicial da zurzidela, uma forte chicotada nas costas, com a corda que, momentos antes, dobrara em quatro.

Como Ermelinda continuasse calada, pese embora os gritos da mãe que a todo o custo tentava libertar a filha da fúria do pai, este, empurrando a mulher, assapou na rapariga uma nova vergastada e ainda uma terceira. A moça, por entre gemidos de dor e gritos de angústia, caiu por terra, esvaindo-se em sofrimento. Prostrada, ao lado, a mãe alvoroçara-se em choros e berreiros que em nada demoviam o algoz da sua pertinaz atrocidade. Encarando a filha, com os olhos a abarrotar de raiva, furioso e colérico, o Tenente ameaçou:

- Ou esqueces o filho daquele porco, para sempre ou sais por essa porta fora imediatamente.

Muito a custo, Ermelinda, lavada em lágrimas e arquejar em dor, levantou-se em silêncio, abriu a porta e saiu, enquanto o pai continuava a vociferar impropérios e injúrias.

Com o corpo dorido e a alma perfurada, Ermelinda foi procurar alento em casa dos pais do Augusto. Recebeu-a a mãe que o rapaz passava os dias no mato, a roçar. Saia alta madrugada, levava consigo um pedaço de bolo e queijo, uma garrafita de vinho e lá ia, trabalhando à jorna. Regressou já noite, surpreendendo-se com a presença de Ermelinda. O pai, ao lado, até parecia que saboreava com enlevo mesquinho o desprezo a que o Tenente botava a filha, vangloriando-se, cinicamente, de a ver ali, destronada, sofrida, humilhada, pedinte, afastada do aconchego familiar. Casasse o filho com quem quisesse mas ali em casa, rebento de tão ruim cepa, filha daquele Caim, nunca havia de pernoitar, nem lhe havia de lhe chegar uma febra que fosse de comida, nem uma coberta de cama, ou outro provento qualquer.

Fez-se o casamento à socapa, sem boda e sem enxoval e foi o Aníbal, para quem o Augusto, habitualmente, trabalhava e que lhe alojara a moça, que lhe arranjou uma casa, velha e decrépita, um pardieiro, onde, apesar de tudo, poderiam, ao menos, colocar uma barra, uma mesa e acender o lume. Nesse dia o Tenente, a propósito de renovar a cédula, partiu para o Faial na lancha da manhã e voltou na da tarde…

Envoltos em penúria, abalroados por privações mas dignificados pelo amor, sem terras, sem vinhas, sem gado, com parcos recursos, mas fugindo aos vitupérios dos progenitores, Augusto e Ermelinda fixaram-se ali, recuperando e melhorando, aos poucos a velha casa que o amigo lhe emprestara.

Chegou o primeiro rebento. Novamente os ouvidos do Tenente se aferroaram com a novidade. Vociferou, uivou, recalcitrou e protestou, jurando que neto do pelintra do Chico do Cabeço nunca lhe haveria de entrar em casa.

Certa tarde, porém, ao passar junto ao pobre casebre onde morava a filha, parou, espreitou e viu. Viu que um garotito, talvez já com dois anitos, saltava, pinchava, corria com alegria e deslumbramento como se fosse a criança mais feliz do mundo. Cabelos loiros e encaracolados, olhos azuis, rosto muito branco e pele macia, a criança aspergia docilidade, irradiava ternura, emanava inocência. O Tenente, não se conteve. Impulsivamente, saltou o muro e viu-se no pequeno quintal, junto à porta do humilde casebre. O petiz, como que descobrindo, no rosto calejado do velho, uma onda de ternura tão grande como o mar, pressentindo que aquele homem o desejava abraçar, correu na sua direcção, de braços abertos, agarrando-o e abraçando-o, como se sempre o tivesse conhecido. Lágrimas grossas, amargas, dolorosas mas emotivas escorriam dos olhos e cobriam o rosto calejado do Tenente, que, simultaneamente, também se abraçava ao neto, idolatrando-o na sua cândida inocência.

E quando Ermelinda, apercebendo-se de que alguém lhe rondava o casebre, assumiu à porta, chamando o “António”, o pai voltou-se. Ela vendo-o embebido naquele idílio, também se dirigiu para ele de braços abertos, exclamando:

- Está perdoado, meu pai! 

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publicado por picodavigia2 às 09:21

A CARTEIRA

Segunda-feira, 24.02.14

Daniela Furtado é licenciada em engenharia química pela Universidade do Porto. Actualmente exerce o ofício de carteiro, sendo a primeira e única mulher a exercer tal actividade na cidade onde reside.

Após terminar o curso universitário, com uma média bastante alta, foi lhe proposto fazer um estágio profissional num laboratório de análises de água e alimentos. Após o estágio e face à qualidade do trabalho realizado e à dinâmica que introduziu no sector em que se integrou e ainda, tendo em conta o seu perfil de trabalhadora qualificada e competente, foi convidada a integrar os quadros da empresa, onde trabalhou, com qualidade e afinco, durante cerca de dois anos. A empresa, no entanto, faliu e encerrou, vendo-se, Daniela, de imediato, no desemprego. Nessa altura, porém, já havia casado e era mãe de um filho, com dois anos. A piorar a situação, uns meses depois, foi abalroada por um inevitável drama conjugal. O marido, a trabalhar na empresa do próprio pai, enveredara por caminhos estranhos e duvidosos, atafulhando-se em meandros escuros, ilegais e pouco abonatórios da honra e da dignidade de marido e pai de família. Perdera-se em devaneios malévolos, em embustes e corrupção, o pulha. Despesas atrás de despesas, desfalques, roubos, falcatruas e a empresa do pai a desmoronar-se, aos poucos, acabando por ruir por completo, que nem um castelo de cartas. Quando o progenitor se apercebeu da fraude, já era tarde, muito tarde. E como o crápula se agigantara em insensatez e em inconsciência e se tornara incapaz, sequer, de submergir da alhada em que se metera, de se ressarcir em costumes e de se envolver em docilidade ou de se adereçar de arrependimento, o divórcio foi a única alternativa.

Há dias encontrei-a, na minha rua, desenvolta e graciosa, ágil e esbelta, a distribuir o correio. Aproximei-me, apreensivo e admirado, pois chegava-me à memória os tempos de criança, franzina e débil, em que fora minha aluna. Sorridente e, aparentemente, feliz, esclareceu que sem trabalho, fosse ele qual fosse, é que não havia de viver. A empresa não a indemnizara por não ter tempo de serviço que o justificasse e não tinha recebido subsídio de desemprego, nem recebia outro subsídio qualquer. Trabalhava no que quer que fosse, pois tinha que sustentar o seu menino, cuja fotografia trazia colada ao peito. Começara por empregada de balcão, passara pela caixa de um supermercado, mas, infelizmente, tudo ocasional e esporádico. Agora surgira-lhe aquela oportunidade que agarrara a todo o custo, embora também fosse efémera, uma vez que estava, apenas, em substituição de um carteiro que estava doente. Nas horas vagas ainda distribuía publicidade de um supermercado.

- Adoro este trabalho – confessou. - Circula-se ao ar livre, vagueia-se pelas ruas, vê-se gente. As cartas e as encomendas vêm neste carrinho. Até parece que viajo num mundo de sonhos, num barco de fantasia.

- E não tens receio de que alguém se meta contigo, te provoque, te ofenda ou te faça mal?

- De forma nenhuma! Os meus colegas aceitaram-me muito bem e tratam-me com respeito e carinho. É verdade que não existem mais mulheres carteiras mas eles estão habituados a lidar, no seu trabalho diário, com mulheres, porque os funcionários dos correios, na maioria, são do sexo feminino. Quanto aos moradores das casas onde faço as entregas, ai deles! Mas, geralmente, nem os vejo. Apenas um cão ou outro me faz frente, mas nenhum me mete medo

Elogiei-a. Retorquiu-me:

- Sabe uma coisa, professor? Lembro-me, muitas vezes, de um conselho que o professor nos dava nas aulas.

- Qual? – Indaguei. – Acho que vos dava tantos!..

- Pois dava. Mas lembra-se de nos dizer que, quando na nossa vida sentíssemos problemas graves, para os resolver devíamos seguir o princípio de uns filósofos gregos, cujo nome já não me lembro, mas o princípio era o seguinte: “Cerra os dentes e aguenta”? Na vida, para vencermos, há que lutar com força e tenacidade, há que ser forte!

- Eram os estóicos, os discípulos de Zenão de Citium. Esses filósofos, realmente ensinavam que o fim último da existência humana, consistia na prática da virtude e do bem e entendiam que a melhor atitude diante dos problemas, sobretudo dos mais complicados e de difícil solução era, para os poder ultrapassar, a de não nos deixarmos abater, nem muito menos vencer pelas dificuldades, nem pela dor ou pelo sofrimento. Devemos reagir com força, coragem e, se necessário, até com sofrimento, a fim de os solucionar. Os estóicos eram homens com garra e de “genica”.

- É isso que eu tenho feito, professor. Procuro, sempre, não me deixar abater. Enfrento os problemas e procuro soluções para os resolver. Tenho a certeza de que quando terminar este contrato, hei-de arranjar outro trabalho. Mas, na verdade, o meu sonho era trabalhar na minha área… E isso vai acontecer, pode acreditar.

E lá seguiu, puxando o carrinho com agilidade, segurança e entusiasmo, introduzindo uma cartinha aqui, outra ali, nunca hesitando, apesar de haver um ou outro cão que lhe ladrava, tentando, infrutiferamente, obstruir-lhe o caminho.

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publicado por picodavigia2 às 00:01

A MENINA E A ÁGUIA

Sexta-feira, 21.02.14

Era uma vez menina que fora abandonada pelos pais, no meio duma floresta. Algum tempo depois, passou por ali uma águia que, vendo-a sozinha, apiedou-se dela e, poupando-a à sua famélica atrocidade, pegou-lhe com cuidado e trouxe-a consigo para a rocha, alta e abrupta, onde tinha o seu ninho, cuidando dela, alimentando-a e, sobretudo, amando-a, como se fosse uma filhinha. A menina cresceu e, embora com uma aparência rude e um aspecto selvagem, tinha um temperamento dócil e um feitio meigo, tornando-se numa linda, bela e atraente jovem.

Certo dia passou por ali um Príncipe que andava a caçar, naquela zona. Ao ver tão linda e atraente donzela, de imediato, se apaixonou por ela, decidindo trazê-la consigo para o palácio real, a fim de a apresentar aos pais, para a tomar por esposa. Mas algum tempo antes, os pais haviam celebrado um contrato de casamento entre o príncipe, seu filho, e uma ilustre princesa, filha do monarca de um reino vizinho. Apesar disso, percebendo o encantamento do filho pela jovem, aceitaram que ele lha apresentasse e que ela se hospedasse no palácio, por algum tempo. Cedo, porém, se aperceberam os zelosos monarcas de que a jovem, na verdade, era muito bonita, de boas maneiras e de brandos costumes, mas apresentava um aspecto rude e um temperamento esquisito e estranho, em nada abonatório da esposa do futuro monarca. Pelo contrário, a princesa que havia sido prometida em casamento ao filho, não sendo bonita era dotada de um exemplar educação, sendo exímia na arte de costurar, de tratar da casa e de se arranjar.

Convencidos de que lhes seria muito fácil resolver o problema, afastando a rapariga do palácio e obrigando o príncipe a abdicar dos seus intentos, os reis propuseram que o príncipe havia de aceitar como esposa e casar com aquela das duas noivas que costurasse o vestido mais bonito. Sabiam eles muito bem que seria a princesa prometida a cumprir a tarefa com excelência e qualidade e, assim, haviam de afastar a intrusa para as rochas de onde viera e onde fora criada. Fecharam cada uma no seu quarto e deixaram-nas sozinhas, disponibilizando-lhes os recursos necessários e impondo-lhes a tarefa, conforme haviam planeado. A rapariga muito preocupada e aflita pois nunca tinha costurado, nem sabia o que era uma máquina de costura ou uma agulha, chamou pela sua mãe águia. Esta apareceu-lhe, trazendo consigo o mais experiente costureiro que havia no reino, que, em pouco tempo, lhe fez um belo vestido. Quando foram apresentar os vestidos, os reis ficaram espantados com aquele que a rapariga da rocha costurara, porque ganhava, de longe, em qualidade, arte e beleza, ao da princesa. Ainda não convencidos e muito embasbacados, os reis decretaram, de novo:

- Agora será a que preparar o melhor banquete para o rei servir aos seus ministros é que casará com o príncipe.

Decidiram assim porque cuidavam eles que a rapariga criada na rocha não saberia cozinhar. Ela, porém, muito aflita, voltou a chamar pela sua mãe águia que, de imediato, se lhe apresentou, trazendo-lhe o melhor cozinheiro do reino. Este, vendo o quarto repleto dos mais diversos produtos, não teve dificuldade em preparar uma excelente refeição que superou em muito a que a princesa cozinhara.

Quando viram e, sobretudo, quando provaram o manjar apresentado pela rapariga, os reis ainda mais admirados ficaram com a rapariga da rocha, porque ganhava, em tudo, a princesa que, no entanto, tivera uma esmerada e cuidadosa educação.

Apesar de tudo e ainda não satisfeitos, nem muito menos convencidos, os reis decidiram dar um grande baile, para o qual convidaram príncipes, princesas, os nobres e todas as ilustres donzelas do reino. Estariam presentes, também, a princesa prometida ao príncipe em casamento e a rapariga da rocha. A que dançasse melhor, seria considerada a verdadeira princesa e, por conseguinte, seria a eleita para esposa do príncipe, vindo a ser a futura rainha. De novo a rapariga se entristeceu e afligiu, cuidando que agora sim, não poderia ser melhor do que a sua rival. Apesar de tudo voltou a chamar pela mãe águia.

Iniciou-se o baile e, mal a rapariga começou a ensaiar os primeiros passos de dança, começaram a entrar na sala, trazidas pela águia, um bando de pombas brancas que rodeando a jovem donzela, a elevavam e erguiam, fazendo com que dançasse com arte, sabedoria e elegância, como jamais se vira no reino. Então os reis, nada mais puderam fazer do que aceitá-la como a futura esposa do filho.

Agendou-se a boda, fez-se uma grande festa e celebrou-se o casamento com tão grande pompa e solenidade como já mais se vira no reino.

E passados nove meses, entrou, mais uma vez, por uma das janelas do palácio, a águia, desta feita acompanhada por uma cegonha branca que trazia, numa cestinha, uma bela menina.

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publicado por picodavigia2 às 19:26

O PICO OU A VERDADEIRA ILHA DE BRUMA

Quarta-feira, 19.02.14

Mesmo que já tenhamos aportado inúmeras vezes à maior ilha do grupo central açoriano, quando, novamente, o fazemos não nos limitamos, apenas, a sentir os pés no terreiro, onde os nossos avós bailaram o pezinho ou a chamarrita. Na realidade e sempre que de novo e mais uma vez se arriba ao Pico, para além dos ecos de um passado egrégio e progénie, emergimos num universo a abarrotar de um sem fim de sensações envolventes e dinâmicas, que nos enlevam em encanto e nos sublimam em deslumbramento. Calcorreiam-se atalhos e veredas atapetados de musgo, balizados por bardos de incenso e faia, caminhos ornados de madressilva e poejo, uns e outros construídos nas encostas pedregosas da ilha, muitos deles, quiçá, nos primórdios do seu povoamento. Depois, envolvidos por um silêncio perturbador, penetramos entre o verde das pequenas florestas, a abarrotar de faias, sanguinhos, paus brancos, folhados e uva do mato. Do chão térreo, anos a fio domesticado por alviões manejados sabiamente pelos nossos avós, emerge um perfume a enxofre e a lava e do mar, onde ainda são visíveis as rilheiras dos botes baleeiros e das traineiras, aflora um sabor a uma maresia destemida e deslumbrante. Por entre as brumas e os nevoeiros matinais, ergue-se um cântico de dolência adormecida. É no Pico, talvez por ser a mais jovem ilha açoriana, que sentimos, mais do que em nenhuma outra, correr-nos, nas veias, um basalto negro, ainda vivo, uma seiva, um suco, um mosto, disfarçado de espuma, umas vezes sublime e delicioso, outras angustiante e perturbador, mas sempre dulcificado e apetecível, personificado naquele torrão pétreo onde o florido das orquídeas e das azáleas se mistura com o desabrochar dos primeiros rebentos das figueiras e das vides. É também este basalto negro, como que ensanguentado, que nos trás à memória a labuta de um povo de pastores e baleiros que escreveu a sua história com cajados e remos, gravando-a, para sempre, nas pedras basálticas das encostas e nos rochedos dos baixios e escolhos da beira-mar. É este gigante adormecido, de magma e enxofre que nos traz à lembrança, cada vez que olhamos os socalcos e andurriais da montanha que o personifica, os fantasmas das sombras enigmáticas da lava dos vulcões e os ecos roufenhos do rugido de abalos e terramotos. É esta tremenda e invulgar força telúrica, adormecida no seu seio e armazenada no seu interior, é esta estranha e paradigmática sensação de se ter a alma presa a um alvoroço extrusivo, profundo e místico, que nos deslumbra e faz sonhar, ao mesmo tempo que nos emaranha nos meandros de uma natureza pura e virgem, donde brotam vinhedos fecundos e de sabor adocicado, ladeados por muros singelos de lava carcomida, encostas recheadas de um bruto esplendor, maroiços a abarrotar de pedregulhos saltitantes, paisagens transparentes de uma pureza diáfana, veredas marcadas com o marulhar contínuo das albarcas e dos pés descalços, campos fecundos, ornados de uma vegetação atrevida, metamorfoseada num verde luxuriante que ora povoa os pastos repletos de manadas, ora cobre as encostas de arvoredos e arbustos ou reveste as pequenas courelas de legumes e cereais.

O Pico é assim, como uma princesa revestida de bruma, que as gaivotas beijam e enternecem com mimos e carinho. Sempre que o revistamos de lés-a-lés, encontramos a dolência embevecida das ondas, o eco oscilante das marés ou, até, a braveza incontrolável do oceano e encantamo-nos, deliciosamente, com a inebriante doçura das lagoas e deslumbramo-nos, em excelência, com a ternura sorridente das hortênsias. E como se isso não bastasse, ainda nos fica, no peito, o estigma da ardência das caldeiras e das fumarolas dos vulcões. Por tudo isso é que o Pico é a primeira entre as verdadeiras ilhas de bruma, porque revestida com o negro do basalto, com o verde da esperança e envolta com o azul do mar e o branco baço dos nevoeiros.

Razão tinha o poeta Manuel Alegre, quando, demandando o Pico, procurava uma ilha de bruma, “… uma ilha sobre o vento e a espuma/Agora tenho-a à minha frente/ilha de bruma./Buscava um lugar santo um canto um cântico/um triângulo mágico uma palavra um fim./E vejo um grande pico sobre o atlântico/e uma ilha a nascer dentro de mim”.

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publicado por picodavigia2 às 16:50





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