PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
HONGA DO JAPÃO
No final da década de cinquenta e início da de sessenta chegou à Fajã Grande e provavelmente a outras freguesias e localidades da ilha das Flores, um estranho, esquisito e intrigante ser vivo, na altura designado por “honga do Japão” ou mais simplesmente “folha do Japão” e hoje perdido no tempo e até na memória de quantos, mais ou menos emocionalmente, lidaram, de perto, com ele.
Ainda hoje se desconhece qual a sua origem e quem o trouxe para a ilha das Flores, nem sequer, na altura, se soube e, provavelmente, nunca se saberá se era um animal ou uma planta. É que, por um lado, o seu aspecto assemelhava-se realmente ao de um cnidário ou celenterado do tipo das águas vivas, neste caso uma água viva gigante, semelhante às que abundam nalgumas praias mediterrânicas do norte de África, ou ao de uma medusa ou de uma alforreca, mas, por outro, era denominada com a estranha designação de “folha”, dando assim a entender que poderia muito bem tratar-se apenas de uma espécie vegetal, neste caso uma planta aquática, do género dos nenúfares.
A honga do Japão chegou à Fajã inesperadamente e depressa e sem reservas foi adoptada por todas as famílias e se espalhou por todas as casas, dado que se reproduzia com muita facilidade. Bastava retirar para um recipiente de vidro um copo do líquido em que a honga estava embebida e onde tinha o seu habitat e zás… Tínhamos filhote pela certa, com a vantagem de este crescer e se tornar adulto em poucos dias.
A loucura de se procurar e sobretudo de se possuir um exemplar deste invulgar bicharoco, tinha a ver com as suas proclamadas, exaltadas e mais que demonstradas qualidades medicinais, curativas e tonificantes. É que a folha do Japão, para sobreviver, era colocada numa terrina ou travessa de vidro, onde, de três em três dias, se devia regar com uma boa quantidade de chá preto, frio. A dita cuja, ao mesmo tempo que se alimentava com este chá, ao fim de três dias, transformava-o num outro chá, adocicado, saboroso e agradável de se beber e, dado que produzido por ela, designado por “chá da folha”. Segundo a opinião generalizada dos fajãgrandenses, esse chá era milagroso, dado que, por um lado curava todas as doenças e maleitas e, por outro, revigorava e fortalecia os que nem doentes estavam, mas o bebiam. Por isso, novos, velhos, homens e mulheres, toda a gente na Fajã bebia o chá da honga, os que se sentiam doentes para se curarem e reestabelecerem e os que gozavam de boa saúde para se revigorarem e evitarem possíveis doenças.
Sem honra nem glória a honga do Japão foi sol de pouca dura. Feneceu ou evaporou-se. Na realidade, passados poucos anos após a sua chegada à Fajã, desapareceu por completo, não deixando rastos a não ser uma ténue e pouco clarificante memória do seu curto mas intensivo, gratificante e como que mágico reinado, naquela que é mais ocidental localidades europeia
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TOSSE DE GUINCHO
Era um dos maiores flagelos que nos atingia na nossa infância. Uma maleita da qual quase ninguém se livrava e que nos deixava acabrunhados, melancólicos, combalidos alquebrados, raquíticos, quase desfeitos. E tocava a todos, tal era o seu carácter extremamente contagioso. Aquilo era como lume em palha. Dava num e… zás! Alastrava a todos! Pegava como tinha! Propagava-se a toda a garopada.
Na realidade, a Tosse Convulsa, ou a Coqueluche que grassava tão frequentemente na Fajã Grande, nos anos cinquenta, e atingia sem dó nem piedade, toda a ganapada miúda, era uma infecção muito contagiosa e provocava ataques de tosse, contínuos, permanentes, dolorosos e que, normalmente, acabavam numa inspiração prolongada, profunda que emitia um som agudo, esquisito, estranho, uma espécie de guincho e, por isso mesmo, era designada, popularmente, por Tosse de Guincho.
Esta epidemia surgia na Fajã Grande, com bastante frequência e para se transmitir bastava que estivéssemos em contacto com outra criança ou com outra pessoa que já a tivesse contraído. Mas a maldita, não atingia só as crianças, pois podia-se apanhar a Tosse de Guincho com qualquer idade e mais do que uma vez. Mas as crianças eram o alvo preferido da malévola, sendo que muitos dos casos ocorriam em crianças de tenra idade, algumas ainda de berço, havendo, na altura, relatos aterradores de crianças mortas à míngua, em tempos não muito recuados, devido esta epidemia. De facto quem contraía a Tosse Guincho uma vez, não se livrava dela para sempre, pois não era garantia de uma imunidade para toda a vida. No entanto, acreditava-se que o segundo ataque, quando ocorria, costumava ser mais ligeiro e menos penoso do que o primeiro.
Quem estava infectado propagava facilmente a doença aos outros, dado que, ao tossir, enviava, através do ar, gotas de humidade que continham as malfadadas bactérias ou micróbios e que, qualquer pessoa que se encontrasse, mais perto, poderia perfeitamente inalar e, consequentemente, ser infectada. Por isso, em tempos de crise epidémica, éramos isolados, trancados a sete chaves, fechados em casa e bem avisados para não tossirmos em frente às pessoas ou que nos afastássemos de quem tinha a dita cuja, o que não era fácil, tal a intensidade e a frequência deste flagelo.
E, para mal dos nossos pecados, a Tosse de Guincho, geralmente, não vinha, só. Trazia consigo outras complicações que nos afectavam, e de que maneira, os canais respiratórios. É que para além da tosse, as vias respiratórias permaneciam entupidas, dificultando a respiração. Dizíamos que ficávamos tapados, com muita dificuldade em respirar. Havia também a possibilidade de contrairmos pneumonia, o que poderia ser mortal.
E, pior que tudo, é que não havia nem médicos nem medicamentos que nos valessem. Eram uns xaropes caseiros, nomeadamente um que era feito com aguardente e açúcar. Uma vez misturados num prato, a mixórdia resultante era incendiada com uma mexa, formando uma chama azul e amarelada que, lentamente, ia queimando o álcool. No fundo do prato ficava um resíduo melaço, adocicado que se ia tomando em pequenas quantidades, porque quer o açúcar quer a água ardente rareavam e, além disso, eram muito caros.
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SARAMPO
Nos anos cinquenta era certo e sabido que, de vez em quando, lá chegava à Fajã esta peste – o Sarampo. Era uma doença infantil muito contagiosa, pois quando chegava, aos poucos e com pezinhos de lã, transmitia-se e propagava-se a todos, sendo as suas maiores vítimas aqueles cuja idade andava por entre os dois e os dez anos. Ninguém escapava e o pior é que o contágio processava-se ainda antes do Sarampo se manifestar. Geralmente não vinha só, o que tornava os dias dos pacientes ainda mais dolorosos, desagradáveis, enfraquecedores e incomodativos. O Sarampo trazia consigo a má disposição, a inflamação da garganta, o lacrimejar, os espirros, a tosse seca, a temperatura elevada, a falta de apetite, os calafrios, a diarreia e outras maleitas, que geralmente se aboletavam no paciente uns dias antes, como que a denunciar a chegada daquela peste maldita. Quando estes sinais apareciam e, sobretudo quando havia outras crianças afectadas, sabia-se que a sua chegada era certa. Dias depois lá estava ele, na sua fase de erupção, cobrindo todo o corpo das pacientes criancinhas com borbulhinhas vermelhas que geralmente começavam a manifestar-se na cara mas que aos poucos e poucos se iam enxameando e pululando por todo o corpo.
Sendo uma epidemia, não havia tratamento que lhe valesse e o povo, com a sua ingénua credulidade, eivada de sabedoria, dizia até que o sarampo era necessário ao organismo humano, a fim de o purgar de infecções e que era melhor tê-lo em criança do que em adulto. Havia sim, eram alguns cuidados importantes a ter a fim de que o paciente não sofresse tanto e saísse da maleita menos molestado e o mais robusto possível. Punham-se cortinados ou panos vermelhos nas janelas dos locais onde ficavam os doentes, fazia-se canja de galinha e ficava-se de cama até passar. Quem tinha sarampo não podia sair a rua. Não era mortal, mas passados os longos dias de recolhimento, todos apareciam cá fora, magros, raquíticos e desfalecidos. Mas verdade também é que em breve todos recuperavam e voltavam ao normal, saudáveis e sãs que nem peros. ´
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DEFLUXO, TOPDAS E GODELHÕES
Em criança tínhamos muitas alegrias mas também muitas tristezas e bastante sofrimento. Com uma alimentação deficiente, com condições de higiene limitadíssimas e sem assistência médica, caía-nos em cima tudo o que fosse doenças, achaques e sezões: sarampo, tosse, bexigas loucas, papeira, dedos degolados, bichas, diarreias, mamulos na cabeça, inchaços no pescoço e muitas outras maleitas, entre as quais, tinham lugar de destaque a comichão, as lêndeas e os piolhos. No entanto, as doenças que mais nos apoquentavam, por serem mais frequentes, duradouras e dolorosas eram três: o defluxo, as topadas e os godelhões.
O defluxo atacava-nos quase diariamente e era terrivelmente incomodativo. Os lenços não abundavam e, por isso, vezes sem conta, aquele pegajoso e repugnante escorrimento de humores provenientes da inflamação da mucosa nasal, a que vulgarmente chamavam ranho, tinha que ser recolhido com as costas das mãos ou com as pontas dos dedos e, de seguida, despegado nas paredes, nos muros, nas pedras dos maroiços ou nos troncos das árvores. Para além destes incómodos físicos, éramos também vítimas inocentes de afrontas morais, por parte dos adultos, normalmente libertos de tão perturbante suplício e que não cessavam de nos alcunhar de ranhosos. Pouco agradável, convenhamos.
As topadas, porém, em dor física ultrapassavam de longe o defluxo. Pezinho descalço a circular nos sinuosos e desnivelados caminhos da Cabaceira, da Silveirinha ou do Outeiro Grande, a abarrotar de pedregulhos e calhaus, era batidela certinha, com um dos dedos. Depois, um bom naco de carne levantada, sangue e mais sangue e umas dores fortíssimas. Por vezes, quando a pancada era mesmo grande, até a unha voava, o que duplicava a dor e garantia a desgraça de vir mais tarde a nascer, no lugar daquela, uma outra unha toda enrilhada, enegrecida e desajeitada. As topadas, no entanto, lá se iam curando com um chumaço de pano que se enrolava e amarrava à volta do dedo ferido, não tanto para o curar mas para o proteger de novo embate, o qual traria consequências ainda mais dolorosas. Por vezes os chumaços eram mais do que os dedos livres.
Finalmente a praga dos godelhões, uma espécie de ínguas cheias de matéria e pus que nos cobriam parcialmente o corpo, que lhe davam um aspecto lânguido e asqueroso e cujo tratamento consistia simplesmente em espremê-las.