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O OUTRO BRAÇO DO CIMO DA ASSOMADA (CAMINHO DA MISSA)

Quinta-feira, 25.05.17

No outro braço do Cimo da Assomada ou seja do lado do caminho da Missa, na altura o único acesso não apenas à Fajãzinha como às restantes freguesias do Concelho das Lajes e à própria vila, ficavam apenas duas casas: a da Senhora Estulana, viúva e com três filhos

A casa da Senhora Estolana era a última do Cimo da Assomada, do lado do Caminho da Missa, ou seja, do mesmo lado e um pouco antes da canada que dava simultaneamente para as terras e relvas do Pico e para a Vigia da Baleia, ou seja para o Pico da Vigia. Era uma casa muito branquinha, com as barras das portas e das janelas pintadas de azul, mas um pouco misteriosa e enigmática, uma vez que quer a Senhora Estolana depois de enviuvar, quer todos os seus filhos e filhas partiram para a América. Daí que a casa ficasse abandonada, isolada, deserta, descaída e envelhecida criando aquele ar tenebroso e de mistério, para quem, como eu, criança, por ali passava, até porque ficava um pouco distante das outras casas da freguesia.

Hoje vejo-a através de imagens da Internet, da mesma forma que era outrora, quando ainda era habitada pela senhora Estolana, branquinha, com as barras de um azul muito claro, mas anunciada de forma muito diferente, ou seja, como sendo um restaurante, denominado por “A Casa da Vigia”, com as indicações de que está localizado apenas a 2 km da Aldeia da Cuada e situada na Fajã Grande, freguesia considerada como “lugar ideal para tomar uns bons banhos no mar”, depois do qual se pode ir ao referido restaurante mimar as papilas gustativas. A “Casa da Vigia” é dirigida por uma senhora italiana e os ingredientes ali servidos, segundo consta das informações recolhidas no site, uns são cultivados e crescem numa horta biológica que existe mesmo ali ao lado da antiga casa da Senhora Estolana, enquanto outros são produtos locais, à excepção dos deliciosos vinhos tintos que são importados da Toscânia, Itália, dado que nem a Fajã Grande nem a ilha das Flores são produtoras do precioso líquido.

Destaque-se ainda para um pormenor interessante: o restaurante  “Casa da Vigia” possui no seu terraço uma biblioteca.

Na casa seguinte vivia o José Garcia, casado com a Senhora Ester e com dois filhos ainda residentes: o Júlio e a Avelina que casou com o João do Gil. Ambas estas famílias abandonaram a freguesia.

Mais abaixo a rua começava o seu braço central com o José Dias, na primeira casa do lado direito. Poucos anos lá viveu, este filho de Tio Manuel Luís, casado com uma filha da Senhora Estulana, com dois filhos, dado que cedo partiram para a América. A casa teve vários moradores até que a comprou o Augusto Mariano.

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AS SEGUNDAS DEZ CASAS DA ASSOMADA NOS FINAIS DO SEC. XIX

Sexta-feira, 31.03.17

No final do século XIX e início do seguinte, mais concretamente entre 1860 e 1910, nas segundas dez casas que existiam na Assomada, a contar do cimo, isto é do lado de quem vinha da Fajãzinha, percorrendo o Caminho da Missa ou descendo o Vale da Vaca, viviam as seguintes famílias:

Na undécima casa, a contar do cimo da primeira e maior rua da nova freguesia, vivia João José Mancebo e sua mulher Maria de Jesus. Em 9 de maio de 1877 faleceu-lhes a filha Maria, de 1 ano idade, e em 1886 ter-lhes-á falecido um outro filho, também criança. Outro desgosto ainda teve este casal, uma vez que em 8 de abril de 1888 lhes faleceu um filho com apenas10 minutos de vida.

Na casa seguinte vivia Mateus José António Pimentel, oficial de pedreiro, filho de António José Pimentel e de Ana da Conceição, casado com Ana de Jesus, filha de Manuel de Freitas Belchior e de Ana de Freitas. Haviam casado na Fajãzinha, no dia 9 de Julho de 1843, altura em que a Fajã Grande ainda não era freguesia. Em 29 de Junho de 1868 faleceu o seu filho Constantino com apenas 30 dias de vida. Mateus faleceu em 26 de Abril de 1890, com 70 anos de idade, deixando 6 filhos. A esposa, Ana de Jesus, faleceu em 13 de Dezembro de 1910, com 90 anos. Talvez nesta casa tenha vivido uma familiar deste casal que faleceu em 2 de Novembro de 1879, com 84 anos, de nome Maria Luísa. Esta senhora, apesar de solteira, era mãe de dois filhos.

Numa das casas seguintes vivia Estulano Luís da Silveira, filho de Mateus Luís da Silveira e de Catarina Joaquina do Coração de Jesus, moradores na Fontinha. Em 14 de abril de 1895 faleceu a primeira mulher, de nome Ana Luísa da Silveira com quem Estulano casara, em 21 de setembro de 1881 e da qual tinha dois filhos. O viúvo casou 2ª vez, no mês de setembro seguinte à morte da primeira mulher, com Maria Mateus Pimentel, filha de Mateus António Pimentel e de Ana de Jesus de Freitas.

Na casa do lado vivia João de António Pimentel filho de José António Pimentel e de Ana Joaquina Pimentel, casado com Maria José Alexandrino, que era de santa Maria, onde havia sido exposta, após o nascimento. Casaram na Fajã Grande em 9 de maio de 1892.

No mês de dezembro desse ano faleceu um filho deste casal, de nome José, com apenas 14 horas de vida. Anos mais tarde faleceram mais três filhos deste casal: em 18 de setembro de 1898 faleceu João, com 3 anos, em 18 de julho de 1903 faleceu Ana com 2 anos e em 25 de Abril do ano seguinte Elisa de 1 ano.

João de Freitas Fragueiro filho de António de Freitas Fragueiro e de Rita Laureana era o morador da casa seguinte. Casou na Fajã, em 31 de outubro de 1867 com Maria Teodósia do Coração de Jesus, filha de Manuel Caetano Teodósio e de Mariana de Jesus. Também sofreram com a morte de dois filhos: Maria com 9 meses, em 19 de Março de 1866 e, no ano seguinte, o filho João com 2 anos.

João de Freitas Valadão filho de Manuel de Freitas Valadão e Maria Joaquina e Josefina Luísa de Freitas, filha de José Caetano de Freitas e Maria Luísa de Freitas, moravam na casa seguinte. Casaram na Fajã em 3 de fevereiro de 1890 e em 16 de novembro de 1896 faleceu-lhes o filho José de 8 meses

A casa seguinte pertencia ao casal José António Miguel e Maria Augusta da Silveira, casados nas Lajes. Não há registo do óbito de José, na Fajã. Possivelmente terá falecido noutra freguesia onde foi sepultado. A viúva faleceu em 9 de fevereiro de 1894, com 66 anos. Não deixaram filhos.

Um dos seus vizinhos era Francisco Inácio Cristóvão filho de José Inácio Cristóvão e Maria de Jesus, casado com Maria de Jesus Margarida da Silveira, filha de José António de Freitas Lourenço e de Ana Joaquina da Silveira. Este casamento ainda se realizou na Fajãzinha, na altura paróquia das Fajãs, da qual a Fajã Grande era apenas um lugar. O evento aconteceu no dia 24 de setembro de 1855. Vários foram os filhos falecidos a este casal: em 8 de setembro de 1869 faleceu o filho João, de 4 meses, em 12 de setembro de 1873, a filha Ana de 8 meses, em 26 de fevereiro de 1878 faleceu Ana de 1 ano, em 19 de dezembro de 1888, Laurindo de 9 anos, em 23 de novembro de 1894, João de 23 anos e em 24 de abril de 1909 faleceu a filha Maria Inácia com 44 anos. No ano anterior faleceu uma familiar, talvez irmã de Francisco Inácio, com 78 anos de nome Maria Inácia Cristóvão. Nesta casa também viveram os pais de Francisco Inácio. Em 16 de junho de 1880 faleceu o pai, António José Cristóvão, com 64 anos, casado com Maria de Jesus faleceu em 22 de abril de 1895 com 80 anos.

Na casa seguinte vivia Manuel Caetano Teodósio, que faleceu em 11 de julho de 1877, com 74 anos, casado com Mariana de Jesus. Quando casou já era viúvo de Maria de Freitas. Casaram na Fajãzinha em 8 de Maio de 1838, sendo ela também viúva de Domingos José. Tiveram 8 filhos e nenhum faleceu antes deles. Mariana de Jesus faleceu em 26 de setembro de 1886 com 73 anos. Este casal seriam os avós de Ti José Teodósio e de Maria José Teodósio, mãe de Joaquina Fagundes de Sousa, minha avó materna. Uma filha Filomena Teodósio do Coração de Jesus casou com Manuel Inácio Mateus filho de José Inácio Mateus e de Maria de Jesus, em 2 de agosto 1885. Filomena faleceu em 6 de agosto de 1893, com 47 anos e não teve filhos. O viúvo casou 2ª vez, em 16 de outubro de 1893, com Floripes Joaquina, filha de José António Pimentel e Ana do Coração de Jesus. Faleceu em 15 de dezembro de 1905, com 71 e também não deixou filhos. Outra filha também na Assomada, numa casa próxima desta.

Na vigésima casa a contar do cimo da Assomada vivia João de Freitas Lourenço Júnior filho de João de Freitas Lourenço e de Maria de Jesus. O seu casamento com Luciana Emília da Silveira, filha de José António Fagundes e de Mariana Margarida de Sousa foi dos primeiros realizados na nova paróquia de São José da Fajã e ocorreu em 8 de setembro de 1865. Em 10 de setembro de 1882 faleceu o filho Raulino com 3 meses.

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TERCEIRA E QUARTA CASAS DO CIMO DA ASSOMADA, DO LADO DO OUTEIRO

Quarta-feira, 25.01.17

A terceira casa do Cimo da Rua da Assomada, do lado do Outeiro pertencia ao José Jorge, filho do primeiro casamento de Mestre Jorge, o único sapateiro existente na freguesia, e que para além de fabricar galochas, tamancos e de consertar sapatos e de colar botas de borracha, também fabricava as botas de futebol dos jogadores do Atlético Clube da Fajã Grande. O José Jorge casado com a Maria Cardoso e que tinha duas filhas cedo zarpou para o Canadá com a família, ficando a casa desabitada. Algum tempo depois a mesma foi arrendada por uma família, bastante numerosa, oriunda das Lajes, conhecida pelos “Marcelas” e que se fixou definitivamente na Fajã. O Marcela pai e os filhos mais velhos eram homens do mar, excelentes pescadores tendo-se também dedicado à apanha e secagem de algas, atividade muito intensiva na ilha das Flores na década de cinquenta, altura em que foi construída uma fábrica de Agar-Agar nos Açores, cuja matéria-prima, as algas, passaram a ser compradas a preços muitíssimo altos. Muitos dos habitantes da Fajã Grande e de outras freguesias da ilha abandonaram por completo a agricultura, alguns venderam as próprias terras, dedicando-se totalmente à apanha e recolha das algas, das quais outros se tornam intermediários, arrecadando sofríveis fortunas.

A quarta casa deste braço esquerdo do Y que formava o Cimo da Assomada, antes da abertura da estrada, e junto ao cruzamento assinalado numa das paredes com uma cruz, vivia a Maria da Saúde e a mãe já velhinha, juntamente com um homem de nome Corvelo, originário de Santa Maria e que ali se fixara. Este Corvelo faleceu no terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada que liga o Porto da Fajã à Ribeira Grande. Para a abrir o traçado projetado era necessário partir muito calhau e rebentar muita pedreira. A estrada, ao contrário dos caminhos antigos que nos seus trajetos procuravam os locais mais fáceis de abrir, era quase retilínea, atravessando terras e cerrados, cortando montes e tapando vales, rompendo por todo e qualquer sítio. Ao serem escavados os montes, no entanto, por vezes, surgiam enormes calhaus ou indomáveis pedreiras que só poderiam ser desfeitas, a fim de desobstruírem o traçado da estrada, depois de partidas em mil pedaços. Os empreiteiros, vindos da Terceira, sabiam-no bem e, por isso, vieram prevenidos e preparados com pólvora, dinamite e os respetivos meios de perfuração de tão inexauríveis rochedos em que a ilha das Flores e, muito especialmente, a zona das fajãs era pródiga.

O processo de remoção de um calhau ou grande pedregulho era moroso, árduo e bastante complicado. Era necessário fazer um furo na respetiva pedra. Para tal eram necessários três homens: um a segurar a cavilha de ferro que muito lentamente ia fazendo um furo no penedo e dois outros homens batiam alternadamente com martelos de ferro na cavilha. De vez em quando tinham que parar para limpar o pó que se acumulava no orifício que iam, lentamente, perfurando. Só depois de pronto era metida uma vela de dinamite no buraco e a ela se ligava um comprido fiusgo. De seguida gritava-se bem alto fooooooooogo para que não apenas os trabalhadores mas também quem por ali passasse ou trabalhasse nos campos circundantes se colocasse em sítios seguros. Só então se acendia lume no fio que ia ardendo lentamente até chegar à vela, provocando uma estrondosa explosão e o consequente rebentamento da pedra, que simultaneamente explodia pelos arredores uma série de lascas cortantes e uma enorme quantidade de pequenos pedregulhos tão mortíferos como balas. Foi numa destas operações, lá para os lados do Vale Fundo, já quase junto à Ribeira do Ferreiro, ao preparar uma pedra com pólvora, esta terá sido atingida inadvertidamente por uma faísca que provocou uma explosão e um rebentamento, o qual apanhou, de surpresa, alguns trabalhadores. Foram atingidos gravemente três homens. Para além do Corvelo, que teve morte imediata, ficaram feridos o Francisco Facha e o Roberto de José Padre, tendo o primeiro que ser evacuado para Lisboa.

A notícia do acidente foi recebida no povoado com grande alvoroço e preocupação. As informações eram confusas e contraditórias e muita gente acorreu ao lugar para se certificar se algum familiar tinha sido atingido.

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DEMOGRAFIA E ECONOMIA

Sexta-feira, 09.12.16

A Wikipédia, a enciclopédia livre da Internet, descreve assim a demografia e a economia da mais ocidental freguesia açoriana:

 

The escarpment surrounds the community composed of three nuclei: Fajã Grande (the largest population), Ponta da Fajã Grande (a narrow strip between the coast and Rocha da Fajã), and Cuada (a settlement located on a plateau bordering the parish of Fajãzinha to the south). Cuada, for many years, was a collection of uninhabited homes, but today it has been rejuvenated by rural tourism, and classified as an Area of Municipal Interest.

The port at Fajã Grande, once an important commercial port, has lost much of its importance and is now used recreationally and, only rarely, for disembarking commercial goods. The entire zone is valued for its coastal waters, attracting both swimmers and surfers from around the island.

Between 1960 and 1980, approximately 60% of the active population emigrated to the United States and Canada

Economy:

Fajã Grande had always been characterized by its land and connection to the sea, resulting in a considerable part of its population employed in the primary industries (about 50%), that included agriculture, livestock husbandry and fishing. Over time, secondary industries began to occupy a greater part of the local activities (but generally hovered around 20% of activities), and primarily tourism, commerce and complimentary services.

 

Numa tradução livre, penso que a mensagem será muito próxima da seguinte:

 

A escarpa onde se localiza a Fajã Grande é composta por três povoados: a Fajã Grande, o maior dos três lugares, a Ponta da Fajã Grande, formada por uma estreita faixa entre o litoral e a Rocha e a Cuada, a sul, situada sobre um planalto na fronteira com a freguesia de Fajãzinha. A Cuada esteve despovoada durante muitos anos, mas atualmente foi recuperada pelo turismo rural, e classificada como uma Área de Interesse Municipal.

O porto da Fajã Grande, outrora um importante porto comercial, perdeu grande parte da sua importância e atualmente é, apenas, utilizado como porto de recreio, sendo muito raramente, aproveitado para fins comerciais. Toda a zona da orla costureira é muito apreciada devido à qualidade das suas águas, atraindo tanto os nadadores como os surfistas de toda a ilha.

Entre 1960 e 1980, aproximadamente 60% da população ativa da freguesia emigrou para os Estados Unidos e Canadá.

No que à economia diz respeito, a freguesia da Fajã Grande sempre se caracterizou pela exploração da terra e pela ligação ao mar. Assim a maioria da sua população dedica-se ao setor primário, nomeadamente à agricultura, à pecuária e à pesca. Ao longo do tempo, as indústrias secundárias começaram a desenvolver-se e a ocupar uma grande parte da população, nunca ultrapassando, no entanto, 20%. Entre estas destacam-se o turismo, o comércio e alguns serviços complementares.

 

 BOAS FESTAS

 

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A SEGUNDA CASA DO CIMO DA ASSOMADA, DO LADO DO OUTEIRO

Sábado, 26.11.16

Na segunda casa da Rua da Assomada, do braço esquerdo do ípsilon que, lá bem no cimo, junto ao Vale da Vaca, a rua formava, ramificando-se em duas vielas, no caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água pertencia à Marquinhas José Fragueiro. A casa situava-se na curva ao lado do Palheiro do Tomé e como que estava enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho. A dona era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente e sozinha. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe. A casa era muito velha e rústica, feita de pedra e situada numa espécie de buraco ou fundão, de tal modo desnivelado do caminho que apenas o telhado ficava paralelo a este. A casa, frente à qual existia um pequeno mas bem cuidado jardim, comunicava e dava acesso ao caminho através de uma íngreme e tosca escada de pedra, que terminava, na parte superior, num pequeno portal, sem portão ou cancela. A casa era pequenina e o seu interior, pobre e escuro, limitava-se a uma cozinha com piso térreo e a uma outra divisão assoalhada que servia, simultaneamente, de sala e quarto de dormir. Vivia pois, a senhora Mariquinhas José em péssimas, limitadas e lastimáveis condições a que se aliava uma enorme pobreza e um exagerado desconforto. Vivia sozinha e não tinha parentes na Fajã que se conhecessem. Constava, apenas, que tinha uns primos no Mosteiro, os quais, no entanto, nunca a procuravam.

Mas… pior do que tudo isto, a Marquinhas José era muito doente. Para além de outras maleitas menores, tinha uma doença terrível na perna esquerda. Esta estava de tal modo inchada que bem se podia igualar, em espessura, à cintura da sua dona, dificultando-lhe, de sobremaneira, o andar, já de si lento e vagaroso. No entanto e apesar de todas estas limitações e contrariedades, fazia, ela própria, toda a sua vida quotidiana: cozinhava os parcos alimentos de que dispunha, acarretava baldes de água a uma fonte bem distante, arrumava e lavava a casa e a roupa e até transportava, à cabeça e sob uma rodilha, pequenos molhos de garranchos de lenha, que ia apanhar a uma belga que tinha para os lados da Cabaceira. Também era ela que trabalhava uma escassa courela que possuía atrás da casa e que lhe ia dando meia dúzia de maçarocas de milho, uns pés de couve e algumas batatas. Algumas pessoas da freguesia ajudavam-na, dando-lhe, de vez em quando, um pouco daquilo que também possuíam e cultivavam nos seus campos.

Mas apesar de pobre, desventurada, sofredora e estigmatizada pela solidão a Marquinhas José do Cimo da Assomada, parecia ser uma pessoa feliz e conformada com o seu infortúnio, pois tinha sempre um agradável sorriso no seu rosto, uma contagiante ternura no seu olhar e uma sincera afabilidade nas suas palavras.

 

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A PRIMEIRA CASA DO CIMO DA ASSOMASA, DO LADO DO OUTEIRO

Terça-feira, 04.10.16

Na década de cinquenta, na Fajã Grande, a primeira casa da Rua da Assomada, do braço esquerdo do ípsilon que, lá bem no cimo, junto ao Vale da Vaca, a rua formava, ramificando-se em duas vielas, no caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água pertencia à família do Senhor João Fagundes.

O senhor João Fagundes era um homem já de provecta idade, com o nome rigorosamente igual ao de meu progenitor, razão pela qual meu pai assinava o seu nome sempre seguido de Júnior. Assim não havia confusão, não tanto pelas cartas que estas traziam remetente, mas sobretudo pelos avisos amarelos, anunciadores das encomendas da América ou daqueles que eram para pagar dízimas e impostos e que não continham remetente. O senhor João Fagundes era um homem muito respeitado na freguesia, tendo exercido alguns cargos de responsabilidade e era irmão da mãe do José Nascimento e primo daminha tia Adelina das Courelas. Vivia com a esposa e os dois filhos mais novos, dado que os dois mais velhos já haviam casado. Dos mais novos, o João ingressou na Guarda-Fiscal, deslocando-se, mais tarde, para Santa Cruz, juntamente com a mulher, enquanto a filha casou e partiu para o Canadá.

Como já era de avançada idade, o senhor João Fagundes já era avô de três netos, ou seja dos filhos da sua filha e do seu filho mais velho e que já haviam casado. Como era velho já tinha poucos dentes, daí o aspeto do seu rosto chupado, mas trabalhava como se fosse novo e pouco era visto pela Praça a roçar o sim-senhor na bancada da empena da Loja do Senhor Roberto, quando o vento soprava de sul, ou nas soleiras da casa velha do Laureano Cardoso, nas tardes solarengas de verão. Era um homem de sua vida, pouco metido na dos outros. Tinha barba rija e cabelos brancos sem saber porquê. Talvez porque cuidasse apenas que já era velho. Geralmente ao caminhar apoiava-se a um bordão e vestia, habitualmente, froca de angrim. Por que era tão triste o seu rosto, tão pesado o seu olhar, tão ausente o seu sorriso, tão trêmula a sua voz? Talvez porque o trabalho fosse muito, as canseiras enormes e as preocupações demasiadas

Considerava os netos o seu encanto. Sabia que os anos corriam velozes e adorava o sorriso de todas as crianças. Quando lhe iam a casa levar a carne por altura do Senhor Espírito Santo, ou quando lhe iam cantar os Anos Bons e os Reis dava sempre uma moeda. A esposa, já doente e idosa, pouco saía de casa. Todo o seu tempo era para governar a sua casa, lavar roupa, cozinhar, tratar de galinhas e porcos.

Embora não sendo rico a sua casa era farta. Cozinha ampla, grande e clara, sala limpa e arrumada e alguns quartos de dormir. Embora encafuada lá nos andurruais do Outeiro, no enfiamento da Canada que dava para a Pedra de Água, esta primeira casa da Assomada era uma das mais inebriantes e bonitas de quantas existiam naquela rua. Isto no que às casas térreas diz respeito.

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AS PRIMEIRAS DEZ CASAS DA ASSOMADA NOS FINAIS DO SEC. XIX

Quarta-feira, 28.09.16

No final do século XIX, mais concretamente entre 1860 e 1900 nas primeiras dez casas que existiam no cimo da Assomada, a maior rua da nova freguesia denominada de Fajã Grande e que detinha ao todo 78 moradias, viviam as seguintes famílias:

A primeira casa pertencia a Manuel Inácio Rodrigues, filho de José Inácio Rodrigues e Ana Maria. Manuel Inácio Rodrigues casou a 1ª vez com Ana de Jesus, ainda na igreja paroquial da Fajãzinha, em vinte e um de agosto de 1843. Depois de viuvar, casou uma 2ª vez, ainda na Fajãzinha, uma vez que só no ano seguinte se realizariam os primeiros casamentos na igreja de São José da Fajã Grande, em quatro de setembro de 1860, com Maria de Jesus de Freitas filha de Manuel Coelho e de Maria de Freitas. Manuel Inácio rodrigues faleceu em seis de Junho de 1883 e a sua mulher Maria de Jesus faleceu cinco anos depois, no dia treze de fevereiro com 57 anos de idade. Consta que deste segundo casamento, Manuel Inácio Rodrigues não teve filhos.

A segunda casa pertencia a Francisco de Freitas Valadão casado com Maria Lourenço. Deste casal apenas se sabe que em vinte e quatro de abril de 1874 lhe faleceu um filho de nome António, apenas com sete anos. Por sua vez na casa vizinha morava António Joaquim Rodrigues que faleceu, com 49 anos de idade. Era casado com Carolina Rodrigues Nunes, natural da Ribeira do Nabo, ilha de S. Jorge, de quem tinha um filho. No entanto em vinte e dois de Julho de 1899 faleceu-lhes um outro filho de nome Jesuíno com apena um mês de vida. Este casal, porém terá vivido algum tempo na rua da Fontinha e depois do marido falecer Carolina foi viver para a rua das Courelas. Não voltou a casar, mas em seis de junho de 1900, teve duas meninas gémeas, tendo uma delas falecido após o parto e a outra, um mês depois.

Na quarta casa da Assomada vivia José António de Freitas filho de António José de Freitas e de Maria Jesus de Freitas. Casou, em um de outubro de 1889 na igreja da Fajã, com Maria Fragueiro de Freitas, filha de António José Jorge e Ana Fragueiro de Jesus. Este senhor faleceu com cinquenta e dois anos, em 23 de agosto de 1902 e deixou vários filhos.

Na casa número cinco vivia sozinho Manuel Rodrigues Coelho, filho de António Rodrigues Coelho e de Ana de Freitas, viúvo de Ana de Freitas. Faleceu em vinte e quatro de setembro de 1879, com 74 anos de idade.

Mais numerosa era a família da casa número seis. Nela vivia Francisco Rodrigues Coelho, filho de José Rodrigues Coelho e Maria de Jesus. Casou na igreja de São José da Fajã Grande, em oito de julho de 1880, com Maria Emília Fernandes do Coração de Jesus, filha de Manuel de Freitas Fernandes e de Policena Emília do Coração de Jesus. Este casal teve muitos filhos, quatro dos quais faleceram. Em janeiro de 1901 faleceu a filha Maria com dezoito dias. No ano seguinte faleceram os gémeos Maria e Francisco de 5 meses e em vinte e quatro de agosto de 1906 faleceu o filho João também com apenas 5 meses de idade.

Na sétima casa da Assomada vivia Manuel Rodrigues Machado filho de pai incógnito e Maria de Jesus. Era casado com Mariana Isabel de Freitas filha de Manuel de Fraga Trigueiro e de Catarina de Freitas. Casaram na igreja da Fajã em três de julho de 1873, sendo a nubente viúva de João de Freitas Lagos. Manuel Rodrigues faleceu em vinte e um de agosto de 1894.

Na oitava casa vivia André Severino de Avelar, casado com Iria Severina de Avelar, filha de António de Freitas Pimentel e de Ana da Conceição Pimentel. Ela faleceu em dezasseis de janeiro de 1897. Este casal não tinha filhos

Na casa nove morava o casal Manuel de Fraga Trigueiro e Catarina de Freitas. Deixaram uma filha solteira de nome Ana Ferreira, que faleceu em vinte e seis de outubro de 1904 com 77 anos de idade.

Na última das dez primeiras casas da Assomada morava Luciano Furtado Gonçalves filho de Manuel Furtado Gonçalves e de Maria Claudina do Sacramento. Morava com a esposa, Ana Gonçalves da Silveira, com quem havia casado em cinco de maio 1875, na paroquial da Fajã Grande. Ela era filha de António Joaquim da Silveira e Maria de Jesus. Luciano Furtado Gonçalves faleceu em vinte e quatro de março de 1905 com 63 anos. Não deixou filhos.

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ARTES E OFÍCIOS

Segunda-feira, 05.05.14

Nas décadas de quarenta e cinquenta quase toda a população da Fajã Grande, no que aos homens dizia respeito, se dedicava à agricultura. No entanto, muitos agricultores dedicavam parte do seu tempo a outras artes e ofícios, prestando assim os serviços necessários ou fabricando os produtos essenciais a uma comunidade. Apenas o pároco, o faroleiro e o professor exerciam a sua actividade a tempo inteiro, não sendo, portanto agricultores ou criadores de gado.

Essas artes e ofícios eram, entre outros, os seguintes, executados por quem a seguir se enumera:

Alfaiate – Cristiano Fagundes.

Barbeiro – Antonino Cardoso.

Baleeiros – Vigia - Manuel Manquinho.

Lancha – José Pereira, mestre, José Furtado, maquinista e Cristiano Fagundes, “lancetador” e proeiro.

Botes – Chico de José Luís, Francisco Inácio, “trancador”, João Caixeiro, João Fragueiro, João Lajone, José Candonga, José do Cristóvão, José Fagundes, José Garcia, José Luís, José Tavares, Laureano Alexandre, Luís Cardoso, Luís de Abraão, Luís do Raulino, Luís Furtado, Luís Pereira, Roberto do Cristóvão e Urbano Fagundes “trancador”, todos estes naturais da Fajã Grande. Vindos de fora: Mestre Monteiro Ricardo e do Arnaldo, Mestre Antonico, Fernando Armas, José Fraga Afonso Fraga. José da Encarnação.

Caiadores – José de Lima, Guilherme Pimentel e Cabral.

Canalizador – José Furtado.

Carpinteiros – António Barbeiro, José Rodrigues. António Machado, Urbano, António Maria, José Furtado.

Cesteiro – José Fagundes e Guilherme Pimentel.

Comerciantes – Roberto Freitas, José Maria, António Rodrigues, Viúva de António Pureza Ramos e José Natal.

Coveiro – João Augusto.

Correio – José Natal.

Fabricante de Manteiga – António Augusto.

Faroleiros – José Mateus, reformado e Arnaldo.

Ferreiro – Tobias.

Latoeiro – Antonino Cardoso.

Moleiros – Manuel Dawling e Manuel Luís.

Pedreiros – Corvelo e António do Raulino.

Pescador – José Pereira.

Pintor – José Fragueiro.

Relojoeiro – António Barbeiro.

Sacerdote – Padre Pimentel.

Sacristão – Francisco Flores e José Natal.

Sapateiros – José Jorge e Mestre Serpa da Ponta.

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A POPULAÇÃODO PORTO

Domingo, 24.11.13

Finalmente, chegámos ao último grupo de casas, lá do fundo da Via dÁgua, ou seja, no Porto e já bem pertinho do mar. Antes, porém, impõem-se integrar neste último grupo, uma família que morava mais acima, junto à casa de João Inácio. Tratava-se também duma mãe solteira, a Luísa Vieira, que vivia juntamente com a filha, a Maria Fagundes e eram ambas excelentes pessoas e muito simpáticas.

As restantes famílias a integrar-se neste grupo eram as que moravam nas casas logo a seguir à última curva da Via d´Água. A primeira casa a referir pertencia a Tio Francisco Inácio, homem já de avançada idade mas sempre muito respeitado e tido em grande consideração por todos. Os filhos já haviam casado, excepto o António e o Luís, tendo alguns deles partido para a América. O António frequentara o Seminário de Angra, tendo-se ordenado presbítero em 1943, sendo na altura pároco da freguesia da Praia do Norte, na ilha do Faial. Destino semelhante teve o Luís, o mais novo, na altura, frequentando também o Seminário de Angra, vindo a ordenar-se alguns anos mais tarde, tendo, em seguida, partido para os Estados Unidos, onde se fixou definitivamente. Seguia-se uma casa desabitada, na qual, passados alguns anos, se fixou uma família vinda da Ponta.

Na última travessa da Via d’Água, do lado esquerdo de quem descia, moravam o Cardosinho, o Cristóvão e Tio Malvina.

O Cardosinho vivia numa pequena casa com a mulher e o filho. Era da idade de meu pai e um dos seus grandes amigos. Ajudavam-se bastante um ao outro, acompanhavam-se reciprocamente nas idas e vindas para os campos, dado que, por mera coincidência, tinham algumas terras muito próximas, nomeadamente nas Covas, onde também tinha uma “lagoa” mesmo ao lado da de meu pai e para onde iam ceifar erva, todos os dias, alta madrugada, carregando, depois às costas enormes molhos da dita cuja fresquinha, com muitos agriões à mistura e a escorrer água por todos os lados, que nem as sacas de serapilheira que traziam de capuz os impedia de chegarem a casa alagados que nem pintos. Certo dia meu pai levou-me para um terra de mato que também tinha nas Covas, mesmo bem junto à Rocha. Estávamos no cimo da terra, debaixo da Rocha a apanhar “erva-santa” e a cortar “cana-roca”. De repente, começaram a cair pedras enormes, autênticos calhaus por cima de nós. Assustamo-nos a valer, pensando que ficaríamos ali soterrados. Queríamos fugir, pois víamos a morte pintada de negro e a pairar por cima de nós. O Cardosinho estava cá em baixo na sua lagoa e começou a gritar e a pedir-nos que nos aproximássemos mais e mais da rocha. É que ele, de longe, percebeu que não era ribanceira que caía mas apenas pedras e assim quanto mais perto estivéssemos da rocha menos perigo corríamos. E lá nos safámos, com a orientação do Cardosinho!

Mais dentro ficava o Cristóvão que cedo emigrou juntamente com toda a família, sendo que um dos filhos, o Roberto também fez parte do primitivo elenco de músicos da Senhora da Saúde. Ao lado morava a viúva do Tio Malvina, irmão de meu avô materno e, segundo se dizia, um dos homens mais cultos e sabedores de toda a freguesia. Tio Malvina, dotado de uma inteligência prodigiosa e de uma memória invulgar, trouxera livros e conhecimentos da América, lia muito, pensava ainda mais e reflectia e interrogava-se filosófica e cientificamente muito e por isso falava sobre todos os assuntos cujos conhecimentos dominava. Contava-se que a quando da Aurora Boreal, em 1941, fenómeno celeste inesperado e repentino que criou pânico, terror e medo em toda a população da freguesia, que cuidava tratar-se do fim do mundo e ter chegado o dia do juízo final, Tio Malvina terá sido a única pessoa a sorrir de alegria por ter a possibilidade única de ver e observar tão raro e extraordinário fenómeno da natureza. Ninguém acreditou nele.

Finalmente, no termo da Via d’Água e fim da freguesia, já quase no Porto e bem pertinho do matadouro da Baía d’Água, onde se matava o gado pela festa do Espírito Santo, ficavam duas casas. Uma pertencia ao José de Lima, originário de Santa Maria mas que se fixara e casara na Fajã, vivendo ali com a esposa e dois filhos. Ao lado e na última casa morava o José Tomé, juntamente com a mulher e a filha, numa casa que fora da mãe, Tia Ana Tomé e que alguns anos depois a vendeu, vindo fixar-se na Rua Direita, numa casa geminada com a do Mancebo, ali quase à Praça.

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A POPULAÇÃO DA VIA D'ÁGUA

Sábado, 23.11.13

A Via d’Água era a rua da Fajã mais próxima do mar. Casas haviam, lá ao fundo, que ficavam paredes-meias com o Oceano Atlântico. Por outro lado, era através dela que circulavam todas as pessoas, corções, carros de bois e outras viaturas que se deslocavam para as terras do Porto, do Estaleiro e do Cantinho ou que tinham como destino a orla marítima desde do Respingadouro até ao Pesqueiro de Terra. Este facto, não apenas lhe dava o nome mas também e sobretudo fazia da rua da Via d’Água a única e exclusiva forma de acessibilidade ao mar.

A Via d’Água começava no fim da rua Direita e no cruzamento com a Tronqueira e iniciava-se com uma ladeira bastante íngreme e sinuosa, frente à casa de José Padre, mas que, sobretudo depois da construção da estrada, tinha todas as condições necessárias e ideais para nós miúdos ensaiarmos as corridas de toda a espécie de carripanas feitas de madeira, de canas ou até de milheiros, arquitectadas e construídas por nós próprios e muitas vezes a esquartejarem-se no meio de todas aqueles salientes pedregulhos de calçada romana, mas que nela deslizavam com uma velocidade estonteante. Muitos galos na cabeça, variadíssimos “mamulos” na testa, um sem fim de arranhões nos braços e nas pernas e muitas negras a cobrirem-nos o corpo todo… Tantas maleitas se conquistavam ali, quando uma ou outra das geringonças em que se descia, por vezes, a velocidade vertiginosa e estonteante, ou se desfazia ou, depois de se despistar na curva lá ao fundo, ia enfiar-se nos muros do Furtado ou emborcar-se nos pátios da Catrina.

No cimo da ladeira, à esquerda de quem descia, morava um irmão da minha avó, o António Maria, casado com uma irmã de José Inácio e Jorge e com uma filho e uma filha, tendo esta falecido, ainda muito jovem. Os pais partiram para América com o filho e venderam a casa ao Roberto, natural de Santa Cruz, casado na Ponta e que era responsável por uma loja que existia à Praça, pertença da firma Martins e Rebelo. Paredes-meias ficava a casa dos filhos de Mestre Mariano, os quais também partiram para a América.

Em frente e do outro lado da rua morava a viúva de José Padre, com duas filhas e dois filhos, o Albano e o José Santos, ambos tocadores na Filarmónica Senhora da Saúde. Uma das filhas, a Ana, estudou no Faial fez o Curso do Magistério e era professora do ensino primário, tendo dado aulas na já então escola mista da Fajã Grande, que funcionava no edifício da Casa de Espírito Santo de Baixo, precisamente no ano em que eu frequentei a primeira classe. Dela guardo as melhores recordações como excelente pessoa e óptima professora, tendo inclusivamente aceitado que eu entrasse para escola em Abril do ano anterior ao que devia entrar, precisamente na altura em que fiz sete anos, pese embora não estivesse matriculado.

Numa pequena casa logo a seguir e separada por uma canada que dava para a residência da Tia Xavier, ficava a moradia de João Inácio, um homem pobre mas bom e generoso. Era da idade de meu pai e muito amigo dele. João Inácio trabalhava muito, apesar de sofrer de uma enorme anomalia corporal que lhe dificultava o andar e que por vezes e juntamente com algumas contrariedades de ordem emocional eram objecto de uma injusta e ingrata chacota por parte de espíritos mais atrevidos e trocistas.  Era casado com uma senhora bastante mais nova do que ele e não tinham filhos. Por sua vez a Tia Xavier era oriunda da Quada, irmã do “Baigoret” e era, segundo se dizia, muito rica e dona de muitas terras. Foi ela que fez papel ao Arnaldo, o faroleiro, depois de a casa onde morou com a mãe ser destruída, a quando da abertura da estrada para o Porto.

Na primeira transversal da Via d’Água e do lado esquerdo de quem descia morava o José Pureza, casado com uma filha da irmã do Jos´Tia’Anina e mais um filho. Na mesma travessa e numa casa que pertencia ao farol, ainda viveu, algum tempo, o Arnaldo que era o faroleiro e consequentemente pessoa rica pois era das poucas que recebiam um ordenado. Casara em segundas núpcias com uma filha de tia Gonçalves. Mais tarde foi viver para a casa da Tia Xavier que lhe fez papel e da qual herdou a casa, as terras e o dinheiro.

Nessa mesma travessa ainda moravam os filhos da Genoveva. Eram um grupo de irmãos todos solteiros dos quais se destacava o Albino, notável pela sua capacidade de negociar, de ajudar em tudo e a todos e ser um dos grandes colaboradores em todas as festas e actividades realizadas na freguesia. Era pela festa da Senhora da Saúde que ele montava uma enorme barraca onde para além de vender bebidas, chocolates e “pinotes”, tinha dois jogos muito procurados por todos os forasteiros: o do “boneco” e o da “pesca à cerveja”. Quanto ao primeiro, tratava-se de um boneco de madeira suspenso num balouço a quem, por cinquenta centavos, se atiravam cinco bolas de pano com o objectivo de levar o boneco a dar uma cambalhota, obtendo nesse caso um prémio – um chocolate ou uma bebida. Por sua vez o da “pesca à cerveja” tinha como objectivo de entre seis jogadores a quem era entregue uma cana com um fio e uma argola na ponta, conseguir ser o primeiro a enfiar a argola no gargalo de uma cerveja. Nesse caso o prémio era a própria cerveja ou uma laranjada ou chocolate. O Albino que passava horas e horas a orientar e acompanhar estes jogos, no fim entregava rigorosamente todo o dinheiro à igreja, para as despesas da festa.

Finalmente numa enorme curva que havia ali a meio da Via d’Água e em frente ao fontanário, numa das melhores casas da Fajã morava a mãe do Arnaldo com a neta e filha do primeiro casamento do filho, até à altura em que foi construída a estrada. A casa teve então que ser demolida para desfazer a enorme curva que ali existia.

Antes da abertura do troço da estrada que ligava o Porto da Fajã à Ladeira do Pessegueiro, a meio da Via d’Água havia um chafariz que ficava numa curva junto à primitiva casa do Arnaldo e um pouco antes da do Chileno. Ao redor do chafariz situavam-se várias casas. Antes da curva e à direita de quem descia havia um prédio geminado onde moravam duas famílias: numa a Catrina com uma irmã e na outra um filho do Raulino Fragueiro, o João que ali vivia com a mulher e um filho, tendo os três, também, emigrado.

Mesmo ao lado do chafariz e no vértice da curva, com um pátio sempre a abarrotar de sécias, azáleas, cubres e  de outras flores a separá-la do caminho, ficava a casa de José Furtado, um homem muito inteligente, sabedor e sobretudo um artista de vários ofícios. Ali vivia com a esposa, uma filha e uma irmã, a Marquinhas Furtado, senhora de uma simpatia e ternura admiráveis. O Furtado, dizia-se, tinha “jeito para tudo”, embora nem sempre tivesse muita paciência para com os que o procuravam na demanda de favores. Uma vez fui pedir-lhe emprestada uma chave de fendas. Ele assomou à porta, com uma calma descomunal e um sorriso cínico e perguntou-me apenas: “Quem sabes se queres uma talhadinha de melão!” Chave!? Nem vê-la! Dei maia volta e regressei como chegara – sem nada. Mas foi ele quem, quando o padre Pimentel visitou à América e comprou um motor para a igreja, uma vez que ainda não havia electricidade na freguesia, montou não só o motor mas toda a instalação eléctrica dentro e fora da igreja, esta por altura das festas. Era ele ainda, sempre que necessário, quem punha o motor a trabalhar, lhe mudava o óleo e fazia a respectiva manutenção. Também “arreou” à baleia, sendo o maquinista da Santa Teresinha. Além disso era músico pois fez parte do primitivo elenco de músicos da senhora da Saúde, tocando saxofone, durante muitos anos. O Furtado, no entanto, aborrecia-se e zangava-se por tudo e por nada. Para o arreliar, e dado que se chamava apenas José Furtado, perguntavam-lhe, de vez em quando:

- O senhor só tem Furtado?

Furioso resmungava em voz baixa com um ou outro palavrão:

- Desculpe, - acrescentava o gozador – é que eu pensava que o Senhor só tinha Furtado.

 E ele que nem uma barata!

Do outro lado da Fonte morava o Roberto de José Padre, casado com uma filha da Maria da Ponta e com dois filhos, o Luís e o José. O José faleceu bastante jovem. Andava a pescar sozinho e sem saber nadar, na Poça das Salemas, caiu ao mar e morreu afogado. Contava-se que andando certo dia o Roberto a lavrar uma terra ali para os lados do Cimo da Assumada, como as vacas trabalhavam mal a mulher tinha que “andar à frente” a fim de as conduzir pelo sítio certo. A determinada altura a mulher perguntou-lhe para que lado queria que voltasse. Já muito aborrecido porque a lavra não lhe estaria a correr de feição, o Roberto parou, veio postar-se em frente à mulher de braços abertos, dizendo: “Por onde a minha menina quiser”. O Roberto foi a terceira vítima do acidente do Vale Fundo, embora sofrendo apenas ferimentos ligeiros.

Ao lado desta casa, e em frente à interessantíssima casa do Chileno, numa outra pequenina morava a Irene Cardoso, juntamente com a mãe, uma senhora já de avançada idade e que já não saía de casa. Por sua vez e do outro lado da rua, mas mesmo ali ao lado da casa do chileno, morava a Irene Sapateira, a única mulher da Fajã assumidamente mãe solteira, embora na altura tal estatuto não granjeasse grande respeito e admiração. A Irene tinha vários filhos e vivia na companhia do tio o “Lajone”, que se dedicava à pesca para ajudar a alimentar os sobrinhos, tendo também sido baleeiro, durante muitos anos. O epíteto de Lajone advinha-lhe do facto de alguém ao regressar da América se ter dirigido a ele e saudando-o por: “Olá, Jonh.”

Finalmente e para terminar o penúltimo grupo de famílias cujas almas dos defuntos seriam lembradas na novena das almas nos últimos dias de Novembro, falta acrescentar a Mariana Felizarda, que morava ali em frente à Irene Sapateira. Ficara viúva muito nova, granjeando assim mais notoriedade e vivia numa casa que foi parcialmente demolida para alargamento da estrada, ali mesmo já quase no Porto. O filho Rafael fez parte do elenco primitivo de músicos da Senhora da Saúde, tocando trombone.

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A POPULAÇÃO DA TRONQUEIRA

Terça-feira, 19.11.13

No extremo da Tronqueira, bem lá no cimo da ladeira do Calhau Miúdo, morava o Manuel Branco com a mulher e dois filhos. Pessoa simples, inocente, sem maldade, era vítima de gozo e de variadíssimas brincadeiras e partidas, algumas talvez mesmo pouco simpáticas e de mau gosto. O Manuel tinha uma terra de milho mesmo em frente de casa. Certa noite um grupo de rapazes, foi ao palheiro, tirou a campainha do pescoço da vaca e começou a andar entre o milho, simulando que o animal se havia desamarrado da manjedoura. O Manuel acordou, veio à porta e passou horas e horas a chamar e a procurar o animal entre o milho, seguindo o toque da campainha.

Mais adiante morava o Tobias, casado com a Rosa, filha do tio Britsa e que assim como a minha mãe, faleceu muito nova deixando seis filhos órfãos. O Tobias para além de trabalhar os campos trabalhava como moleiro nos moinhos do pai, Tio Manuel Luís, lá para os lados da Ribeira das Casas, era cantador no Outeiro e folião do Espírito Santo. Mais tarde partiu para a América com os filhos.

Ao lado morava o Facha, com quatro filhos, sendo que dois, o João e o Francisco, eram gémeos, caso senão inédito, pelo menos muito raro na Fajã Grande. O Francisco também foi vítima do terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada, quando colocavam dinamite para rebentar uma pedreira e no qual ficou bastante ferido e cego de um olho, sendo obrigado a deslocar-se para Lisboa, onde, durante meses e meses, fez o tratamento adequado.

Na Tronqueira, a seguir à casa do Tobias e quase em frente à do Facha, morava o José Inácio Jorge, casado com uma filha de tia Gonçalves e com dois filhos. Esta família fazia parte do enorme grupo de fajãgrandenses que ainda em plena década de 50 deixaram a freguesia e a ilha rumo ao Canadá e à América na demanda de melhores condições de vida. A casa ao lado, esteve muitos anos sem morador, mas pertencia a meu tio José que, após o casamento, viveu muitos anos na Fajãzinha. O namoro com a Alzira, filha do Lucindo Cardoso, não foi do agrado de meu avô, essa a razão porque o meu tio, por altura do casamento, foi forçado a sair de casa e a exilar-se na Fajãzinha. Como não tinha terras para trabalhar nem podia criar gado dedicou-se aos trabalhos em vimes, nomeadamente fazendo cestas, cabazes, cestos, cadeiras, sofás e até mobílias de sala, tornando-se assim um exímio trabalhador nesta arte. Mais tarde regressou à Fajã e fixou residência na sua Tronqueira, continuando a dedicar-se à actividade de cesteiro e afins.

Em frente a esta casa, situava-se uma casa velha, transformado em palheiro de gado do Raulino Fragueiro. Consta que outrora terá sido moradia, sendo nela que nasceu um dos mais ilustres filhos da freguesia, José Luís de Fraga, sacerdote, orador sacro, músico distinto e poeta, utilizando, neste caso o pseudónimo de Valério Florense.

Ao lado da casa de meu tio, num buraco bastante desnivelado em relação ao caminho e a que se tinha acesso por uma de duas escadarias de pedra, ficava a casa do Tio Manuel Luís. Aí vivia com a esposa, a senhora Dias e a filha mais nova Bernadete, uma vez que todos os outros filhos já haviam casado e alguns abandonado a ilha. Para além de agricultor e de ter emigrado para a América por três vezes, Tio Manuel Luís construiu na Ribeira das Casas dois moinhos, o de Baixo e o de Cima, onde moía a maior parte do milho da Fajã e ainda muito da Ponta.

A família que morava a seguir era a do Roberto Belchior, que cedo também abandonou a freguesia em demanda das terras do Tio Sam. Em frente, numa transversal que dava para o lugar da Ladeira, vivia o Francisco Lourenço com a esposa e o filho o José, um excelente músico, que, para além de cantar na capela fez parte do elenco primitivo dos músicos da Filarmónica Senhora da Saúde, tocando cornetim durante muito anos. O pai, o mais velho dos irmãos Lourenço, era um homem extraordinariamente bondoso, trabalhador, amigo de todos, sendo casado com a filha mais velha de Tio José Teodósio.

Paredes-meias com esta casa ficava uma outra que pertencia ao Raulino Fragueiro, um dos mais abastados lavradores da freguesia e uma das casas “mais forte” da freguesia. Tinha muitos filhos, a maior parte rapazes, sendo que as três filha já haviam casado e todos eles eram bons e valentes trabalhadores, pois tanto trabalhavam as terras da porta como as do mato, mas, além disso, alguns deles também davam dias para fora com junta de bois, lavrando e trabalhando os campos dos que não tinham gado que o fizesse. Alguns deles também se destacaram como músicos e tocadores na Filarmónica Senhora da Saúde, nomeadamente o Álvaro que tocava contrabaixo.

Ao lado e numa outra pequena transversal da Tronqueira, morava o Laurindo com a mulher e os filhos que cedo também partiram para o Canadá.

Era na Tronqueira que morava o José Maria com a Chica, juntamente com um filho da Passarouca da Quada, o Celestino que haviam moralmente adoptado, já que não tinham filhos. O José Maria montara um café à Praça, inicialmente o único na Fajã, no rés-do-chão da casa onde nasceu o Senador André de Freitas. No entanto, devido aos seus afazeres agrícolas e mais tarde, por causa do charabã, era a Chica que pontificava no botequim, de manhã à noite, cavaqueando com os que por ali passavam e servindo os que lá entravam, aguardente, traçado, anis, licores diversos, figos passados, “pinotes” e um ou outro copo de vinho. O José Maria celebrizou-se sobretudo depois da abertura da estrada que ligava o Porto da Fajã ao Pessegueiro. Não havendo automóvel na freguesia e como ninguém tivesse dinheiro para adquirir um, mesmo que fosse em segunda ou terceira mão, ele optou por ir ao Faial comprar um charabã, puxado por três muares que duas ou três vezes por semana partia da Praça, alta madrugada, carregadinho de passageiros com destino à Vila. Como os animais já fossem velhos, a carripana estivesse a desfazer-se e ainda porque, algum tempo depois, começaram a surgir os primeiros automóveis, o negócio não floresceu e o José Maria teve que vender as mulas e o botequim, que o charabã ninguém o quis para nada, e partiu para a América.

Perto da casa do José Maria morava o António Machado, casado com a senhora Violante e com dois filhos. Eram pessoas muito simples, pobres e humildes e já de avançada idade e que durante muitos anos haviam morado no Porto, numa casa que pertencera a Tio Narciso e herdada pela sua neta, a Maria de S. Pedro, criada em casa de Tio José Teodósio.

Ali ao lado e em frente morava o Afonso Rodrigues proprietário de uma loja de comércio na Rua Direita, uma sucursal da Firma das Lajes, junto ao chafariz, no cruzamento do Caminho de Baixo. Como comerciante era bastante rico, vivia confortavelmente e tinha uma das melhores casas da freguesia. Tinha dois filhos, sendo que o mais novo era da minha idade, com a coincidência de termos nascido no mesmo dia. Esse facto aproximou-nos sempre bastante, quer nas brincadeiras pelas ruas e praças, quer na escola, quer na catequese, até à altura em que, juntamente com os pais e o irmão partiram para o Canadá. Ambos choramos amargamente quando a Dona Maria, irmã do Padre Pimentel, veio desfazer definitivamente o par que ambicionávamos formar a quando da nossa 1ª Comunhão, alegando que o critério para formar os pares não era a amizade mas sim a altura. Na realidade, junto de mim, o Antonino era rigorosamente uma torre.

Numa outra pequena Travessa e numa casa também de recente construção, morava o Luís do Raulino, casado com uma filha do Laureano Cardoso. Como muitos outros casais, mesmo não tendo filhos, partiram para os Estados Unidos.

Logo a seguir e numa minúscula curva da Tronqueira e bem encravada sobre a rua e sem pátio da frente, o que era pouco vulgar na Fajã, ficava a casa do Luís Pereira. Era natural da ilha Terceira, onde ainda tinha familiares, nomeadamente o Senhor Pereira, que durante anos e anos foi o sacristão da Sé de Angra. O Luís Pereira chegou à Fajã e casou com a senhora Laurentina, tendo um filho e uma filha já casados e dois ainda solteiros: o Honorato e o Edmundo. Para além de agricultor também era marítimo e fez parte da primeira equipa do Atlético. O Edmundo, seguindo as pegadas do pai, também foi jogador de futebol, um dos melhores de sempre da Fajã Grande.

A este grupo, do centro da Tronqueira, juntava-se o Lucindo Cardoso, que por ali perto vivia numa casa térrea e era um dos mais notáveis criadores de gado da Fajã, sobretudo no Mato. Tinha grandes propriedades no Queiroal, onde pastavam muitas reses, umas alfeiras outras a dar leite e para onde se deslocava quase todos os dias. Para além disso falava constantemente dessas terras e do gado que lá tinha, essa a razão porque recebeu o epíteto de “O homem do Queiroal”. Era um homem calmo, sem pressas e muito trabalhador, sendo conhecido por ser a pessoa que mais tarde voltava das terras e do trabalho, fazendo-o geralmente pela noite dentro. Vivia com a mulher, uma filha, uma sobrinha e o filho José, que alternava as idas ao leite ao mato com o pai e um dos primeiros tocadores de Contrabaixo da Filarmónica Senhora da Saúde.

De acordo com a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, a palavra “tronqueira” faz parte do vocabulário açoriano, sendo considerada um nome comum e é ou era, em tempos mais remotos, utilizada com o significado de “passagem estreita ordinária onde ficam os madeiros laterais de uma portada ou cancela”. Também e no sentido figurado a mesma palavra pode significar “os esteiros de madeira ligados por arame utilizados na vedação ou tapume de uma a cerca onde se encontra guardado o gado, nos sítios onde não existe parede ou muro em pedra”. Muito provavelmente o nome próprio de Tronqueira, atribuido a uma rua da Fajã Grande, terá a ver com um ou outro destes significados e de certo que poderá ter neles a sua origem. Isto significa que este nome a ter sido dado ao lugar da Tronqueira, que se estende para além da própria rua e  que confronta com os lugares da Ladeira, da Cambada, do Calhau Miúdo e do Mimoio, terá tido origem no facto de outrora ter havido por ali alguma “tronqueira” ou seja algum tapume ou cerca de guardar o gado ou lugar por onde o gado passava. Como substantivo próprio ou nome de lugar, esta palavra também é usada na toponímia de outras ilhas e  outras localidades açorianas, com por exemplo, no Cabo da Praia, na ilha Terceira, proliferando ainda mais em S. Miguel, nomeadamente na Povoação, no Pico da Pedra, na Ribeira Quente, nas Furnas e no Nordeste onde é nome de serra, de ribeira e de miradouro.

Voltando à última parte da Tronqueira e já no enfiamento da Rua Direita e a seguir à Casa do Lucindo Cardoso, havia, como em muitos outras ruas, uma casa geminada. De um lado morava Tio Domingos, com a mulher e duas filhas, tendo uma delas casado na Fazenda, com o Ângelo Câmara e do outro, o “Vermelho” que vivia com a mulher e um rapaz que criara deste miúdo e que tinha como empregado, o Elviro, filho da Passarouca, que, apesar de ser da Quada, morava precisamente ali ao lado, numa casa pequena e pobre, com a mãe já de avançada idade e com um outro filho, o José Borges. O Vermelho tinha fama de rico. Se o era ou não, nunca se soube ao certo, embora, com frequência, emprestasse dinheiro a várias pessoas, nem sempre o fazendo de maneira que o recebesse depois. Constava que casos houve em que assinou os papéis ao contrário, ficando ele próprio a dever o dinheiro a quem o emprestava. Além disso era bastante avarento e quando nós os miúdos da escola, por altura do Ano Novo, íamos lá cantar os “Anos Bons” e os “Reis” ficávamos a ver navios… Isto é, nem um tostão ali pingava!

Em frente ficava a casa de Tio José Francisco, já viúvo e que vivia com três filhos, com o genro e dois netos. A filha casara com o André que era de Ponta Delgada e os dois filhos ainda eram solteiros, o José e o Francisco. O Francisco que namorava com a Fernanda de Tio José Luís, ainda novo, teve uma morte trágica. Certo dia deslocou-se ao Mato, a um sítio um pouco mais abaixo do que aquele em que se apanhava o Bracéu, junto à Ribeira das Casas, acompanhado pelo Antonino de Tio José Luís, irmão da namorada, para encaminhar a água para o moinho do Engenho, que nessa altura lhes pertencia. Sem que nada o previsse um enorme calhau caiu-lhes em cima. O francisco teve morte imediata, enquanto o companheiro sofreu apenas alguns ferimentos ligeiros. Foram uns homens da Ponta que ouviram os gritos, deram o alarme e de lá foram retirados em maca. O cadáver foi colocado na casa velha do Laureano Cardoso, à Praça, onde recebeu a Santa Unção, do padre Pimentel que foi chamado à pressa, pois na altura do acidente encontrava-se na Fajãzinha, colaborando na festa do Patrocínio.

Ao lado morava a Maria da Ponta, com o Pai e uma neta, a Cisaltina. A Maria da Ponta lamentava-se exagerada e publicamente de variadíssimas doenças, algumas das quais muito provavelmente não teria. Contava-se que certo dia queixando-se simuladamente de uma doença, foi pedir a alguém que lhe desse uma injecção para ficar boa. E pelos vistos a injecção, apesar de ser, sem ela o saber, de água destilada, curou-a de imediato da maleita que exageradamente a atormentava.

Do mesmo lado do caminho e a seguir, que de outro ficava a altíssima parede da terra do Tomé, vivia o José Cardoso, filho de Tio Francisco Inácio. Casou em segundas núpcias com uma filha de José Pureza, com quem vivia na altura, juntamente com o filho. A primeira mulher era filha de João Barbeiro que morava na Assumada, foi uma das vítimas do grave desastre do Corvo e era a mãe do José Cardoso que vivia com os avós..

Finalmente e para terminar este grupo e a Tronqueira, já no cruzamento com a Via d’Água morava a velha Fraga, com dois netos, o Horácio e a Manuela, filhos de um homem conhecido por “O Capitão Roibado”, que era das Lajes e casara com uma filha da Fraga já falecida. Esta família era bastante pobre e vivia muito parca de recursos.

 

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A POPULAÇÃO DO CAMINHO DE BAIXO

Segunda-feira, 18.11.13

O Caminho de Baixo tinha a vantagem de encurtar a distância entre a Fontinha e a Rua Direita, com a qual comunicavam ente si, ligando a casa do Caixeiro ao Chafariz que ficava junto à Casa de Espírito Santo de Cima, mas era a mais pequenina e a menos populosa artéria da Fajã. Além disso, grande parte da mesma era tão estreita, tão estreita que nem um carro de bois ou corção por ali podiam passar. Apesar de tudo por ela circulavam muitos transeuntes, com o real intuito de atenuar distâncias e, no caso das mulheres, evitar passar à Praça, sempre repleta de homens dispostos a mirar de cima abaixo quem por ali transitasse.

A primeira casa habitada era a do Caixeiro que ficava de costas para a Fontinha, da qual estava separada apenas pelo celebérrimo “Rego de Trás” da Rosaria Sapateira que ali vivia com o sobrinho, hábil pescador e destemido baleeiro. Tia e sobrinho tinham no entanto um modo de ser e de agir que, por vezes, era objecto de brincadeiras e chacotas diversas. Deles também se contavam muitas “estórias”, escaramuças, desavenças ou partidas que se lhes pregavam. Entre outras, contava-se que certo dia, ao zangar-se com a tia, o Caixeiro saiu de casa em direcção ao Porto com a aparente e simulada intenção de se atirar ao mar, gritando em alto e bom som, para espanto de todos: “ Vou deitar-me ao mar! Vou deitar-me ao mar!”. José Mancebo ouviu, aproximou-se e deu-lhe um forte toutição na cabeça, dizendo-lhe:

- Vais-te deitar ao mar, vais! Mas vais caladinho e não o digas a mais ninguém.

O Caixeiro deu meia volta e voltou para casa cabisbaixo.

Ao lado morava o João Barbeiro, casado com a Eva e com um filho, o José Nunes. Para alem dos trabalhos do campo o João Barbeiro tinha, na loja por baixo da casa, uma espécie de pequena oficina onde ia fabricando ou fazendo minúsculas reparações em tudo o que fosse pequenos objectos de ferro, de madeira, etc.

Já na parte mais larga desta ruela, numa casa com dois pisos, implantada entre a Fontinha, da qual ficava acentuadamente desnivelada, e o próprio Caminho de Baixo, morava o Manuel Dawling, a mulher e duas filhas. O piso superior da casa correspondia à habitação propriamente dita, enquanto no inferior ficavam as lojas de arrumo. Mas o acesso principal ao piso superior fazia-se através de uma escada com balcão encostados à fachada principal, a partir do Caminho de Baixo. O Manuel Dawling chegara à Fajã havia muitos anos, vindo, não se sabia bem donde. Tinha olhos e traços asiáticos e falava constantemente nas “Terras Canecas”, região do globo terrestre que nunca ninguém soube ao certo onde se situava, pese embora afirmasse que ficava nas ilhas Filipinas, donde seria natural. Por ali se fixou definitivamente, casou e teve filhos e netos. Era um acérrimo defensor de Estaline e do regime soviético, de quem falava com muita frequência. Para além de também se dedicar à agricultura, ele e as filhas viviam sobretudo da actividade de moleiro, dado que tinham dois moinhos na Ribeira do Cão e um na das Casas.

Finalmente e ao lado da Casa de Espírito Santo de Cima morava a Glória Fagundes com uma irmã mais velha e adoentada. Esta Glória Fagundes não tinha nenhuma actividade e, por isso, se dedicava ao vulgar hábito fajagrandense de quem não tinha que fazer, “andar pelas casas” incentivando, apoiando e, até, consolidando os habituais e tradicionais e tão frequentes mexericos, próprios dos lugares pequenos e isolados.

 

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A POPULAÇÃO DAS COURELAS

Domingo, 17.11.13

Para que fique completo mais um grupo de sete famílias regressaríamos ao chafariz da Rua Direita, onde do lado contrário, ficava a Rua das Courelas, nome que lhe advinha do facto de ali, como aliás em quase toda a freguesia, todas as casas terem a seu lado um pequeno terreno ou “courela”, onde semeavam e plantavam os produtos mais necessários à alimentação quotidiana: couves, feijão, cebolinho, abóboras e batatas. Era, também, na courela que geralmente se fazia o “canteiro” da batata-doce e onde se edificava o estaleiro.

Lá bem no fundo e já no Caminho do Areal morava a tia Cristóvão juntamente com uma familiar de avançada idade, que, no entanto, já nem saía de casa. Pelo contrário a tia Cristóvão, porque muito religiosa e devota, frequentava diariamente a igreja, participava em todas as novenas e vias sacras e visitava assiduamente muitas das casas da Fajã, colaborando assiduamente na proliferação e consolidação dos habituais e tradicionais mexericos, próprios dos lugares pequenos e isolados. Contava-se que estando certa vez de visita a uma casa teria aparentemente desmaiado. Trouxeram-lhe um copo de água. Ao aperceber-se de que era água que lhe estavam a dar, apesar de desmaiada, ripostou:

- Água não me faz bem! Tragam-me antes chá. Quero é chá.

Ali perto, numa casa alta e estrategicamente muito bem situada, envolvida por um cenário paisagístico de sonho, com o Pico da Vigia de um lado e o mar do outro, vivia o José Ti’Ania, com a irmã e um sobrinho, o João Luís, filho de mestre Jorge e que alguns anos mais tarde casou com a Maria Mateus e emigrou.

Mais acima e já em plena Courelas morava o João Cardoso, casado com a Deolinda Rafael e com um filho. A Deolinda para além da vida da casa trabalhava muito no campo, acompanhando sempre o marido em todas as tarefas agrárias e de tratamento do gado. Esta família também cedo deixou a Fajã, emigrando para os Estados Unidos.

A maioria das famílias que moravam no extremo das Courelas ou seja na parte mais afastada da Rua Direita e mais próxima do Areal, partiu para a América ou para o Canadá.

Se não vejamos. Ali ao lado da casa do João Cardoso morava o Francisco Gonçalves, com a mulher, uma filha de Tio Domingos da Tronqueira e os filhos. Toda a família emigrou. Numa transversal que havia imediatamente a seguir à casa do Francisco, num edifício construído naquela época, morava o António do Raulino, casado com uma filha de Tio Antonho de Melo. Este casal, embora não tendo filhos, também abalou para o Canadá. Mais acima, o mesmo aconteceu com o João de Tio Francisco Inácio que partiu para a América com toda a família.

Logo a seguir e no edifício sob o ponto de vista arquitectónico mais emblemático e imponente das Courelas e entre os mais interessantes da freguesia, morava o Lourenço, com a mulher e uma filha. Esta, depois de casar, também partiu para a América. O Lourenço era um lavrador abastado e um homem muito calmo, forte e alto. Também criava gado que ele próprio, todos os dias conduzia, já pelo avançado da noite, a umas relvas que tinha no Vale de Linho, para os lados da Ponta, mas fazendo o trajecto de ida e volta sempre pela Via d’Água, apesar de ser mais longe do que pela Tronqueira e Calhau Miúdo. Geralmente ocupava cargos de responsabilidade, como cabeça de festas e do Fio, director da Sociedade e, quando o António Augusto partiu para Angra, foi nomeado seu substituto como Regedor e Juiz de Paz. Contava-se que as enormes lojas da sua casa teriam sido, em 1915, uma espécie de hospital de campanha aquando do naufrágio da barca Bidart, dado que teria sido lá que os náufragos foram alojados, alimentados e onde teriam recebido os primeiros tratamentos.

Em frente ficava a casa do Vítor, filho do Faroleiro e casado com uma filha de um meu tio paterno que por ali morava. Tinha vários filhos e contígua à sua casa havia um edifício na altura a servir de casa de arrumos e palheiro, mas com algum suposto interesse histórico. É que uma das pedras das portadas deste edifício que supostamente outrora havia sido casa de habitação, tinha assinaladas cruzes, datas e outros sinais de índole religiosa. Como este prédio era contíguo à igreja, cuidava-se que teriam sido pedras pertencentes à primitiva capela, existente antes de igreja paroquial e que provavelmente não teriam sido utilizadas na construção desta, por inadequadas.

Do outro lado da rua ficava a casa do único irmão de meu pai que não se havia esquivado para a América. Meu tio António Joaquim, vivia ali com a tia Adelina e dois filhos. No entanto, como era bastante mais velho do que meu pai, já pouco trabalhava. Passava os dias sentado à Praça a descansar e a cavaquear. Tinha o apelido de “Grota” e como dois dos outros companheiros com quem habitualmente ali se juntava também tinham apelidos começados pela letra G – “Gadelha e “Galinhola”, - este grupo tornou-se célebre, sendo alcunhado pelo “3 Guês”. Raramente ia a casa do meu tio, mas bem me lembro de lá ver um lindo candeeiro a petróleo, com o vidro ornamentado com cores variadas e que se dizia ter tido origem nos destroços do Slavónia, naufragado para os lados do Lajedo em 1909.

A última casa das Courelas era do João Augusto, homem simplório, humilde e bondoso mas, aparentemente, pouco inteligente. Por isso, por vezes, era motivo de chacota e zombaria dos outros. Era o coveiro da freguesia, mas como o negócio não era muito rentável, pois numa população pouco numerosa, apenas morria alguém de vez em quando, também era agricultor e criador de gado, tarefas em que era ajudado pelos dois filhos. A filha Aldina foi das poucas jovens que na altura abandonou a ilha para estudar, fazendo o Curso Geral dos Liceus, no Colégio de Santo António, na Horta.

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A POPULAÇÃO DA RUA NOVA

Sábado, 16.11.13

A Rua Nova e o Caminho de Baixo eram as ruas menos populosas da Fajã. O número de casas era igual numa e noutra, dado que cada uma tinha apenas quatro casas habitadas, mas a Rua Nova levava a melhor, não só em tamanho e largura, até porque era a artéria mais ampla da Fajã mas também em população, pois lá moravam dezasseis pessoas, enquanto no Caminho de Baixo residiam apenas doze.

Lá bem no fundo da Rua Nova e já quase nas Furnas, morava o Urbano, com a mulher, prima da minha mãe e também de nome Angelina e quatro filhos: a Maria Teresa, o José, o Edmundo e o Antonino. O Urbano, para além de trabalhar nos campos, foi sempre muito dedicado ao mar e à pesca e durante muitos anos foi um notável baleeiro e primoroso executor de uma das mais arriscadas e arrojadas tarefas da caça à baleia, a de “trancador” ou arpoador. Também se distinguiu como jogador de futebol e um dos fundadores do Atlético Clube da Fajã Grande, em 1939, colectividade desportiva que ainda hoje sobrevive, embora com outras modalidades desportivas.

Ao lado e casado também com uma prima da minha mãe, morava o José Pereira, com dois filhos. O José Pereira foi talvez o maior e o melhor pescador de sempre da Fajã Grande. Era verdadeiramente um homem do mar e, durante muitos anos, foi ele quem abasteceu de peixe a maior parte da freguesia. Tinha uma lancha, era um excelente marítimo e um óptimo pescador, tendo também “arreado” durante várias épocas à baleia, exercendo a função de mestre de lancha no gasolina “Sta Teresinha” que durante anos e anos ficou ancorada no Poceirão, do Porto Velho, a fim de, após o foguete lançado pelo vigia, puxar os botes para o mar alto, dar-lhes apoio durante o tiroteio da caça à baleia e arrastar, posteriormente, os cetáceos já mortos para a fábrica de óleo do Boqueirão, em Santa Cruz. Contava-se, com alguma graça, que o Pereira, apesar de ser considerado o melhor marítimo da Fajã, certo dia virou a lancha, carregadinha de peixe, mesmo ali, no Porto Velho. Algum tempo depois o Manuel Machado foi pedir ao senhor Arnaldo para tirar cédula de marítimo e carta de mestre. A resposta do Arnaldo foi negativa, dizendo-lhe:

- Se o José Pereira virou no Porto, tu viras mesmo na ramada.

Mais adiante e numa casa um pouco isolada vivia sozinha a senhora Josefina Greves, pessoa muito discreta, sensata, muita amiga de todos e muito conversadeira com quem por ali passava. Mais adiante, na única travessa que a Rua Nova tinha, vivia o António Lourenço, casado com a Marquinhas do Carmo e com quatro filhos: o José, a Ema, o Lucindo e o Antonino. Este casal era um dos mais simpáticos e prestável da freguesia. O António Lourenço era pessoa extremamente solícita, de tacto muito agradável e atencioso, foi director da Sociedade, cabeça de festas e do Fio. A esposa exerceu durante muitos anos a honrosa função de parteira da freguesia, sempre com uma dedicação e um êxito notáveis. Além disso exercia também a função de enfermeira e até de “médica”, tratando todos gratuitamente e sem distinção, quer os que a procuravam na sua própria casa quer deslocando-se às casas dos que a não podiam procurar, mas necessitavam dos seus cuidados. Em boa hora o povo da Fajã Grande já lhe prestou a devida homenagem, dando, inclusivamente, o seu nome a uma rua da freguesia, precisamente à Rua Nova.

 

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A POPULAÇÃO DO ALAGOEIRO

Sexta-feira, 15.11.13

O lugar do Alagoeiro ficava para além da Fontinha, bastante longe do povoado e já quase debaixo da Rocha. Era, no entanto, uma espécie de lugar mítico, pois era lá que os homens, quando regressavam dos campos se sentavam, ao redor de um enorme largo que ali havia, a descansar, a fumar, a falquejar, a conversar, a discutir, a negociar trocas, a partilhar sonhos e a esperar uns pelos outros em amena cavaqueira. Vinham em bandos do Pocestinho, do Pico Agudo, da Lagoinha, dos Paus Brancos, das Águas, da Silveirinha e até do Mato, enchendo as paredes e marouços circundantes ao Largo, com molhos de erva santa, de fetos, de incensos, de lenha ou com cestos a abarrotar de batatas ou de inhames. Era também o sítio onde o gado, no seu cirandar quotidiano palheiro/relvas/palheiro, parava para saciar a sua sede, pois havia ali um enorme poço com uma bica, por onde jorrava dia e noite água muito fresquinha. O Alagoeiro era pois um lugar de encontros, de cruzamento de caminhos, de conciliar de destinos, de debates e de discussões, uma espécie de “Mileto” da Fajã.

No Alagoeiro, mesmo no Largo, havia apenas uma casa e pertencia ao Luís Fraga que a herdara do pai, Ti’Antonho do Alagoeiro, homem que, no dizer duma sua neta “…trabalhava as terras, fazia as grades, as aivecas e os arados, caiava a casa e acendia o lume à forja, batia o ferro em brasa e à noite, conduzia as orações familiares…”. O Luís Fraga vivia ali com a esposa, oriunda de Santa Maria e cinco filhos. Embora ouvisse mal, era segundo se dizia um homem bastante inteligente e irmão de dois notáveis poetas e etnógrafos fajãgrandenses, o padre José Luís de Fraga e o professor António Fraga, que à altura já não residiam na Fajã, embora, por vezes a visitassem. O Luís Fraga e os filhos deixaram cedo a ilha com destino à América e ao Brasil.

 

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A POPULAçÂO DA RUA DIREITA

Quinta-feira, 14.11.13

A Rua Direita iniciava-se à Praça e prolongava-se até à Via d’Água. Entre a Praça e o Chafariz ficavam as seguintes casas moradias: a do José André e aquelas onde moravam duas das mais importantes e emblemáticas personalidades existentes na Fajã, na altura: o Padre Pimentel e o Mancebo.

O José André vivia com a mulher e dois filhos numa casa térrea, mesmo ali bem no perímetro da Praça e cuja empena Sul servia de lugar de descanso e abrigo, quando o vento soprava do Norte. Logo a seguir e frente a frente, em duas das melhores casas da freguesia moravam, numa o P.e Pimentel e noutra o José Mancebo. O padre Pimentel era o pároco da freguesia, sendo natural da Fajãzinha e tendo-se ordenado em 1917. No início foi cura no Corvo e em Santa Cruz, sendo transferido para a Fajã Grande em 1925. Vivia numa casa solarenga, com uma irmã, uma sobrinha, duas meninas que adoptara como “pupilas” e ainda uma velhota, chamada Ana Neta. Por sua vez o Mancebo, que vivia com a mulher e dois filhos, era um acérrimo defensor do regime político vigente, até porque era o presidente da Junta de Freguesia, cargo que exerceu durante longos anos, dado que granjeara a amizade e simpatia do Presidente da Câmara das Lajes, que por sua vez era sobrinho do Governador Civil da Horta, distrito a que a ilha das Flores, na altura, pertencia. Foi também presidente da Cooperativa, cabeça de festas e do Fio e um dos fundadores da Filarmónica Senhora da Saúde, da qual foi regente durante muitos anos.

Continuando este périplo imaginário pelas ruas da Fajã Grande, no início dos anos cinquenta, deambularemos ainda pela Rua Direita, onde se situavam as casas maiores e simuladamente mais luxuosas da freguesia, quase todas de dois andares e muitas delas com os pisos inferiores a servirem também de habitação e afins ou utilizados para estabelecimentos comerciais. De facto era na rua Direita que se localizavam todos os estes estabelecimentos, num total de seis: quatro mercearias e dois botequins e ainda os correios, a escola e as duas casas do Espírito Santo. Ao redor da igreja, na realidade, as habitações eram todas de dois andares, excepto duas. Uma era do David que, no entanto, ficava um pouco mais afastada da rua, numa pequena travessa ou canada, situada entre as casas da Senhora Alvina e da Senhora Dias. O David era um pequeno agricultor e criador de gado que, no entanto, guardava num palheiro bem longe da rua Direita. Anos mais tarde havia de dedicar-se ao comércio, acabando também por emigrar. Vivia com a mulher, filha do Raulino Fragueiro e uma filha, a Anina.

A senhora Alvina era viúva e morava, juntamente com os filhos, num enorme e apalaçado edifício, que ficava entre a entrada das Courelas e a canada do David. Em breve partiram para a América, sendo a casa vendida e actualmente transformado numa das mais interessantes residenciais da ilha das Flores. Ao lado a senhora Dias, também viúva e que vivia com uma filha, casada com o Caetano, filho de Tio José Teodósio, numa casa de construção recente, paredes-meias com o adro da igreja. Moravam no piso superior, tendo no primeiro andar um dos maiores estabelecimentos da freguesia onde vendia de tudo: sapatos de pele de cabra, botas de cano, “mantinhos” de seda, lenços de merino, tecidos vários, algumas peças de roupa, petróleo e mexas, produtos de mercearia, bebidas, enfim todos os produtos que a população necessitava e de que era abastecida geralmente por barcos vindos das Lajes ou de Santa Cruz.

Do outro lado da rua morava também uma viúva, numa casa muito interessante sob o ponto de vista arquitectónico e artístico e em cujo frontispício se realçavam os belos gradeamentos de ferro das varandas. Esta senhora, já de avançada idade, era a viúva de José Cardoso e ali vivia com 5 filhos, que trabalhavam nos campos, destacando-se alguns deles como músicos pioneiros na filarmónica Senhora da Saúde, nomeadamente o António que tocava bombardino e o Manuel, cornetim. Um outro filho, o José, granjeou o epíteto de “Trancão”. É que o seu sonho, ser arpoador de baleias, não era fácil de concretizar-se. Para tal era preciso e certa vez terá sido encontrado a treinar, substituindo, no entanto, as baleias por abóboras.

Mesmo em frente à igreja morava o Mateus Felizardo que, no dizer de Pierluigi Bragaglia, (1997) “era uma das mais lúcidas memórias da Fajã Grande”. Vivia com a esposa Natália e alguns filhos, entre os quais a Clara que faleceu bastante jovem e o José que foi o primeiro tocador de bombo e pratos, em simultâneo, na Filarmónica Senhora da Saúde.

Na casa ao lado, esta a outra das duas térreas junto da igreja, morava a Elisinha Abraão, catequista e pessoa muito religiosa, juntamente com os sobrinhos que ela própria criara desde crianças, dado que eram órfãos, pois os pais haviam falecido no trágico acidente do Corvo, em 14 de Agosto de 1942, no qual o gasolina “Senhora das Vitórias”, também conhecido por “A Francesa” naufragou no sítio dos Laredos, junto à ilha do Corvo e onde morreram mais de quatro dezenas de pessoas, sendo a maioria naturais e residentes na Fajã Grande.

Finalmente e numa travessa da Rua Direita, mesmo ali ao lado da igreja e do cemitério morava o Gil, com a esposa, três filhos e uma irmã, a Ricardina. O Gil também era lavrador e criador de gado, sendo que as suas vacas usavam as mais bonitas e mais deliciosamente sonantes campainhas de todas as usadas na Fajã. A seguir à casa de Tio José Luís e junto à Casa de Baixo, onde funcionava a escola, a moradia do Gil tinha um pátio de entrada, onde havia algumas árvores entre as quais uma enorme tamareira. Na altura em que esta se carregava de tâmaras, apesar de ainda verdes mas já com um cheirinho delicioso, nós os garotos da escola, na hora do recreio, aproveitando a ausência do Gil e familiares lá subíamos a tamareira… Óh tâmaras! Para que vos quero! Os que ficavam cá em baixo, roídos de inveja por não poderem subir a árvore, bem gritavam: Gil! Ó Gil! Olha os monços nas tâmaras!” Não adiantava! Eram bolsos e bolsos cheios, a abarrotar e à tarde o Gil ou a fazer queixa à senhora professora ou a correr atrás dos que supostamente lhe haviam gamado as ditas cujas.

Logo a seguir à igreja, do lado mar, situava-se um edifício de grande imponência, com referências históricas e lendárias muito curiosas e com traços arquitectónicos invulgares. Citando o “Inventário do Património Imóvel dos Açores” a sua “…fachada principal é emoldurada por um soco alto e saliente, por dois cunhais e por uma cimalha com faixa, friso e cornija onde se apoiava o beiral. Apresenta três portas alternadas, sobre as quais havia janelas de peito, cujos aventais aparentes se ligam às cornijas das respectivas portas…. Na empena direita, com sótão, havia uma porta ao nível do piso térreo encimada por uma antiga janla de sacada, vendo-se a consola em pedra ligada ao lintel da porta e do lado direito da janela havia uma porta a que se tem acesso por uma escada com balcão. A cimalha da fachada principal prolonga-se pela empena direita formando a base de um frontão cujo remate superior é feito por uma faixa e uma cornija…”. Este belo, histórico e monumental edifício era, no entanto, como todos os da Rua Direita, “construído em alvenaria de pedra rebocada e caiada, excepto o soco, os cunhais, as cimalhas, a consola das varandas e as molduras dos vãos que eram em cantaria pintada de cinzento”, como as barras e portadas das restantes casas. Duma análise pormenorizada, poder-se-ia concluir que este edifício, tal qual se encontrava nos anos 50, já teria sofrido grandes alterações, algumas pouco conseguidas, relativamente ao que teria sido a sua arquitectura primitiva, pois havia testemunhos de que provavelmente seria um dos mais antigos da freguesia, tendo sido propriedade e residência do capitão Freitas Henriques, estando, nessa altura, ligado por uma ponte à primitiva ermida da Fajã Grande, benzida em 1757 e que antecedeu o edifício da actual igreja paroquial, edificada no ano de 1849.

Na altura que estamos a referenciar, ou seja o início dos anos 50, o edifício destinava-se, na parte superior a duas moradias e na inferior a uma loja de comércio, pertencente à Bernadete Dias e uma outra a servir de correios. Um dos inquilinos do piso superior era o José Natal, que vivia sozinho e administrava os correios. Era na loja e no enorme saguão de pedra que dava para o piso superior, onde morava, que nos dias a seguir ao Carvalho, lia, um por um, em alta voz e por vezes no meio de grande algazarra, confusão e comentários pouco abonatórios, o nome de todos os destinatários das cartas, avisos e pequenos embrulhos que a “maleira” trazia das Lajes, a fim de aqueles a quem se destinavam deles se apropriassem. Na outra metade do edifício morava a viúva de Tio José Luís, com alguns dos filhos que ainda não haviam casado e que, para além do trabalho agrícola, também tinham um moinho na Ribeira das Casas – o moinho do Engenho.

Em frente havia uma outra casa solarenga, em estado bastante degradado, mas também habitada por duas famílias: numa o José Mariano, que viera da Quada, bastante pobre, doente e carregado de filhos e na outra três irmãos já de avançada idade, conhecidos pelos “de  José de Joãozinho”, havendo uma das duas irmãs que já nem de casa saía.

Ao lado do posto de recepção do leite da Sociedade, que se situava em frente à Casa do Espírito Santo de Baixo, vivia o João Fragueiro, agricultor mas também baleeiro e, segundo se dizia, um dos homens mais fortes da Fajã. Era casado com uma filha de Tio José Teodósio e tinham um filho. Cedo emigraram para o Canadá. Do mesmo lado da rua, junto à Máquina e um pouco mais afastada do caminho ficava a casa do Senhor Nunes, que, apesar de idade avançada, ainda trabalhava nos campos e criava gado com ajuda da filha, apesar desta ter uma deficiência no andar. A esposa, bastante doente já pouco saía de casa.

Encerrava este grupo de mais sete agregados cujas almas dos defuntos seriam sufragadas a meados do mês de Novembro, a família de Josezinho Fragueiro, que vivia com a mulher e dois filhos solteiros, a Lucinda e o José, um pouco mais abaixo, em frente à entrada para a Rua Nova. O José era considerado como um dos homens mais trabalhadores da Fajã, dado que, como se dizia, “não parava em ramo verde” pois estava sempre ou a trabalhar nos campos ou acarretar molhos e molhos de erva e de incensos para o gado.

Na esquina do cruzamento da Rua Direita com a Rua Nova ficava a casa que pertencia José do Nascimento, geminada com uma outra, voltada para o lado da empena da Casa do Espírito Santo de Baixo, geralmente desabitada. O José do Nascimento era um homem bondoso, sorridente e que emanava, continuamente, uma simpatia contagiante. Além disso manifestava uma calma e uma tranquilidade pouco usuais e uma espécie de sábia capacidade de resolver conflitos e contendas. Lamentavelmente algumas doenças graves de que padecia dificultavam-lhe os trabalhos agrícolas e, provavelmente por essa razão, abriu um botequim na loja da casa dos de José de Joãozinho. Era ali praticamente o único sítio, onde nas longas noites Inverno os homens se podiam reunir para conversar, discutir e descansar das pesadas e cansativas tarefas diárias, perante a complacência e boa vontade do Nascimento que ali ficava toda a noite a ouvir lamúrias, discussões e vivências, apenas a vender um ou dois copos de anis e a ver, no final da noite, uns míseros centavos na gaveta. Vivia juntamente com a esposa, que o substituía em muitos dos trabalhos do campo, a mãe, duas irmãs e o filho António. Na outra esquina morava o Afonso das Tomásias com a mulher e um dos filhos que havia casado com uma filha de Mateus Felizardo. O Afonso das Tomásias, apesar de avançada idade, ainda era um excelente músico. Era ele que juntamente com o Mancebo cantava antífonas, salmos e impropérios em latim e em canto gregoriano, na Festa do senhor dos Passos. Alem disso era um assíduo colaborador em todas as festas e actividades religiosas, assim como em muitas outras que, na altura, se realizavam na freguesia.

Em frente, numa casa bastante alta, com varandas de ferro e uma loja enorme vivia o Francisco Tomé, casado com uma filha de Tio Manuel Luís, de nome Águeda e com duas filhas: a Maria e a Teresa. Era um homem forte, rude e de modos grosseiros. Era um agricultor abastado, tinha muitas terras, entre as quais um cerrado no Porto ao lado do de meu pai. Como o terreno não tivesse acesso à entrada de carros de bois, pois ficava encurralado entre marouços e atalhos, era meu pai que lhe dava passagem, autorizando-o sempre a transitar com o carro de bois cheio de estrume ou de produtos agrícolas, pese embora os prejuízos que isso causava às couves, batatas doces e abóboras que o meu progenitor ali cultivava. Quando, algum tempo depois, comprou ao Roberto Belchior uma terra no Espigão que sempre “dera caminho” a uma de meu pai, proibiu-nos a passagem.

Do outro lado do caminho e no termo da Rua Direita, paredes-meias com o Afonso das Tomásias morava o João Lourenço, com a mulher, a filha e a mãe. O João Lourenço era um homem fortíssimo, falava muito alto mas tinha uma coração excelente, amigo de todos, sendo-lhe também confiadas responsabilidades na direcção da Sociedade e em outras actividades.

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A POPULAÇÃO DA FONTINHA

Terça-feira, 12.11.13

Década de cinquenta! No alto da Fontinha, a primeira moradia pertencia a Tio José Teodósio, lavrador um pouco mais abastado, homem generoso e muito solidário com o seu semelhante que emprestava as alfaias agrícolas a quem delas necessitasse, sendo que nem era preciso pedir-lhas, pois o palheiro onde as guardava estava sempre de portas escancaradas. Vivia com a esposa e três filhas, pois os restantes já haviam casado ou abandonado a ilha. Tio José Teodósio também era um bom cantador e fazia parte do grupo de homens que nas terças e sextas da Quaresma iam cantar para o Outeiro.

Um pouco mais abaixo vivia, com a mulher e três filhos, o Tio Britsa, uma irmão da minha avó, pessoa muito simples, inocente e sem maldade. A mulher era irmã das senhoras Mendonças. Tio Britsa, apesar de avançada idade e de ser magro, fraco e doente, trabalhava muito e acarretava enormes molhos às costas. Como a subida da Fontinha era muito íngreme, dizia-se que ele ao subi-la “dava um paço para a frente e dois para trás” e, por isso, demorava uma eternidade a chegar a casa. Mesmo em frente morava um filho de Tio José Teodósio e genro de Tio Britsa, casal jovem e com cinco crianças. Chamava-se Teodósio, acompanhava o pai no cantar no Outeiro, era um exímio tocador de tambor e folião do Espírito Santo e, para além do trabalho nas terras, ia ao Mato duas vezes por dia, ordenhar as vacas, subindo a Rocha, alta madrugada e ao entardecer, carregando, na descida, as latas a abarrotar de leite. Consta que foi o único fajãgrandense a cultivar milho no Mato.

Ao lado vivia, com o pai, já de avançada idade, o José do Pico, que casou com a Leonor do João Bizarro e que logo após a morte de seu pai, o velho Tio José do Pico, partiu com a família para o Canadá.

Ali perto e numa das casas com melhor vista sobre a Fajã, sobre o Porto e sobre o oceano, morava tia Manceba juntamente com uma filha, a Maria do Céu e uma neta, a Maria Antónia. Tia Manceba era de avançada idade pelo que já nem se ausentava de casa. Caracterizavam-na, no entanto, dois interessantes pormenores: utilizava uns óculos com uma lente branca e outra escura, dado ser cega de um dos olhos e possuía um óculo bastante potente, com o qual sentada à janela, apreciava não apenas o que se ia passando pelo parte mais baixa da Fajã mas também observava todos os navios que diariamente por ali passavam, ligando a Europa e os Estados Unidos. Era dali também que em dias de baleia, muitas pessoas assomavam, na tentativa de ver melhor a acção em mar alto dos botes na tentativa de caçar as baleias.

Neste grupo ainda se incluía, por ter casa na mesma recta onde ficava a da tia Manceba e junto a uma outra de tia Gonçalves mas onde na altura não morava ninguém, o António Dias, conhecido por o “Parente”, casado com uma filha do Manuel Dawling e com o filho José, que também partiram para a América.

Um pouco acima da chamada Fonte Velha e numa curva que a rua da Fontinha fazia antes de chegar à recta da casa de tia Manceba, existiam três casas, formando uma espécie de triângulo. No vértice do lado de terra, havia uma muito alta, revelando uma simulada e fingida imponência até porque construída em pedra e não caiada. Mas era muito pobre, como pobres eram os seus moradores, dois irmãos, ambos solteiros e já de avançada idade: José Eduardo e Maria Eduarda. José Eduardo era diabético, já não podia trabalhar, ficando as tarefas da casa e dos poucos e pequenos campos que tinham confiadas exclusivamente à irmã. José Eduardo era dos poucos homens que, na Fajã, naquela altura, ainda “mascava” tabaco em vez de fumar.

Por sua vez, no vértice do lado da Ponta viviam outros dois irmãos, também muito pobres mas pouco considerados na freguesia, denominados por o “Coelho e a Coelha”. A Coelha praticamente não saía de casa, apenas aparecia de vez em quando ou à janela, para peleijar com algum vizinho, ou ao portão, para insultar um ou outro transeunte. O Coelho trabalhava os poucos campos que possuía, tinha ovelhas em vez de vacas, nunca descansava no Alagoeiro nem se sentava à Praça a conviver com outros homens e, vezes sem conta, desafiava este e aquele, mandando-lhes “bocas” pouco simpáticas. Meu pai, que sempre se deu bem conta a gente da freguesia, não falava com ele, por ofensas verbais que, sem razão aparente que o justificasse, lhe havia feito.

No último vértice e ainda na curva vivia o Candonga com a mulher Anina, irmã de João Inácio e dois filhos: o José e a Maria Silvina. Como tinha poucas terras, o Candonga dava dias para fora, era pescador e um dos mais bravos baleeiros da Fajã, mas adoecia com alguma frequência. Certa vez caiu na Rocha, do cimo de uma altíssima verga de pedra, ao lado da Fonte Vermelha e lá ficou uma noite e quase dois dias, sem se alimentar, ao relento, bastante ferido e com uma perna partida. Só no dia seguinte foi encontrado e retirado com enorme dificuldade, dado que o lugar era de difícil acesso. Foi, então, transportado em ombros, numa maca e levado para o hospital de Santa Cruz.

Logo abaixo e na primeira transversal da Fontinha, do lado direito de quem a subia, entrelaçadas com alguns palheiros, existiam duas casas. Uma era a do Vieira, que vivia sozinho, na casa que havia sido do meu bisavô. A outra era a do José Malvina, filho de tio Malvina, que vivia com a esposa, um filho e o sogro, após a morte do qual partiu para o Canadá.

No largo da Fonte Velha e precisamente em frente ao fontanário ficava a casa do “Arionó”, assim chamado porque ao regressar da América usava constantemente a expressão “Are you now”, num inglês extremamente mal pronunciado. O Augusto Arionó vivia com a esposa, a Mariana, filha de um terceiro casamento do meu bisavô, com os filhos: José, Maria, Elisa, Guilherme e Deolinda. Apenas a Maria partiu para a América, após casar com o Ângelo de João Augusto. Os outros irmãos foram dos poucos que sempre por ali ficaram e ainda residem na Fajã, precisamente na mesma casa.

Ao lado da Fonte Velha, ficava uma casa alta, de dois andares, onde morava um outro filho de Tio José Teodósio, o António, casado com uma filha de José Pureza e com alguns filhos. Cedo, porem, abandonou a freguesia, emigrando para os Estados Unidos.

Finalmente a casa de meu avô materno, conhecido por José Batelameiro (uma deturpação de Bartolomeu, nome que herdara do seu avô) e que faleceu ainda na minha infância. Ficou minha avó com sete dos seus treze filhos e que ainda não haviam casado. Era a mordoma das almas e quase todos os dias, sobretudo durante o Verão, à tardinha, sentava-se à janela da sala, virada para o mar, a observar o momento do pôr-do-sol, lá ao longe, no horizonte, não com intuitos de apreciar tão belo espectáculo, mas para acertar o relógio de parede, recorrendo a uma tabela manual que possuía. Mas como estávamos no extremo do fuso horário açoriano, o relógio dela andava sempre atrasado. Os meus tios Luís e o Chico, este era o sacristão, trabalhavam no campo e as minhas tias faziam as lides caseiras, bordavam e teciam, dado que meu avô havia montado numa casa velha que existia em frente daquela onde moravam, conhecida pela “Casa de Tia Fraga”, um dos poucos teares existentes na Fajã. Todos partiram ou para a América ou para o convento.

Junto à casa da minha avó, na Fontinha, do lado esquerdo de quem subia, havia uma pequena transversal em forma de ladeira ou aclive, onde existiam apenas duas casas de habitação. A primeira pertencia ao João Bizarro, um homem muito alto e esguio, óptimo conversador e com um excelente timbre de voz. Era um lavrador abastado, um bom cortador de carnes nas festas de Espírito Santo, participava habitualmente nos cargos de cabeças das festas e do Fio e era casado com a Glória Jacob, tendo os filhos todos casado e partido para a América, excepto a Adelaide que por ali ficou, com os pais. Mais dentro e no termo da pequena travessa morava o Ângelo do Tesoureiro com a irmã Elvira. Apesar de já ter alguns anos, casou com uma rapariga bastante mais nova a Lídia e teve três filhos. O Ângelo era um bom pescador, tinha um barco de pesca, abastecendo de peixe uma boa parte da freguesia. Contava-se que estando certo dia na loja do senhor Rodrigues, ao chegar à Fajã um novo pároco, que obviamente não conhecia as pessoas, nem muito menos o parentesco entre elas, como o filho estivesse a fazer algumas diabruras, pois era bastante irrequieto, o reverendo, dirigindo-se à criança, aconselhou:

- Senta-te aqui, quietinho, junto ao teu avô.

O Ângelo enfurecido ter-se-á levantado e emendado imediatamente:

- Avô não! Pai sim!

Saindo da travessa em frente à casa da minha avó e voltando novamente à rua da Fontinha, do outro lado, numa casa lá bem no alto, muito desnivelada do caminho, e com umas grandes escadarias de pedra, mesmo junto à Ladeira da Fontinha, vivia o José Gonçalves, com a mulher, filha da minha vizinha Lucinda e três filhas, consideradas das mais bonitas moças da freguesia: a Mariazinha, a Laurinda e a Fernanda, que algum tempo depois casaram e partiram todas para o Canadá. Por baixo das escadas ficava a entrada de acesso a uma loja de arrumos e palheiro, uma espécie de túnel, escuro e estranho, com um portão de entrada em arco de volta inteira. Como ficava num sítio um pouco ermo era com esta entrada que se amedrontavam e ameaçavam as crianças que se portavam menos bem quando por ali passavam e que também servia de esconderijo para muitas brincadeiras e “partidas”, cujo objectivo era amedrontar ou assustar os transeuntes. Ao lado vivia o José Fragueiro com a mulher, filha do Cabral e sem filhos, paredes-meias com a Senhora Fragueira que, algum tempo depois ingressou partiu para o Continente, na demanda de convento. O Fragueiro fez parte do primeiro grupo de músicos da Senhora da Saúde, onde tocava trompa. Mais tarde partiu com a mulher para o Canadá.

Do outro lado da rua e numa casa bastante desnivelada relativamente ao caminho, morava o Tavares, com a mulher e vários filhos. Alguns foram para a guarda, outros para a América. Mais tarde mudou-se para uma outra casa ali ao lado, encravada nos contrafortes do Outeiro. Era a casa mais alta da Fajã, depois da do Chileno e a única com três andares visíveis a partir do caminho. A entrada para o prédio era efectuado por um atalho que dava para a Cruz do Outeiro. Ao lado ficava uma pequenina e pobre casita onde morava um João Raimundo, oriundo das Lajes, com duas filhas e dois netos

Finalmente e já quase à praça, morava o Laureano Cardoso, viúvo e com quatro filhos, tendo, mais tarde, todos partido para a América, excepto a Deolinda que casou com o Abraão, cabo do mar na Horta, trabalhando e fixando residência mais tarde em Angra. O João pertencia ao grupo de homens que iam ao leito ao Mato e tocou clarinete na filarmónica a Senhora da Saúde.

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A POPULAÇÃO DA ASSOMADA II PARTE

Sábado, 09.11.13

Mesmo em frente à Fonte e já na entrada da segunda travessa da Assomada ficava a casa de José Pureza, um dos mais abastados lavradores da freguesia e que vivia com a esposa e quatro filhos. Apenas as duas filhas a Mariana e a Evarista residem actualmente na mesma casa, onde viviam outrora, sendo dos poucos habitantes que restam dos 126 que nos anos 50 viviam na rua da Assomada.

Mais um grupo se sete agregados familiares, ainda na Assomada e que se concentravam por ali, perto da Fonte. A segunda transversal da Assomada ficava precisamente no cruzamento que havia junto à Fonte. A Canada da Fonte era a maior de todas as transversais da Assomada, sendo quase tão larga como as restantes ruas, mas, apesar de também ser a mais povoada, lá moravam apenas três famílias.

A primeira casa, um pouco mais retirada e mais encostada ao Pico era a do António Augusto, o Regedor da freguesia e, geralmente, cabeça de festas e do Fio que ali vivia com a esposa, a Floripes Teodósio e com a filha Fátima. O Regedor acumulava simultaneamente as funções de Juiz de Paz e, numa terra onde não havia polícia nem outra autoridade qualquer, excepto o Presidente da Junta, tinha o poder de decidir e, geralmente, era chamado a resolver pequenas contendas e desavenças, de julgá-las ou de resolver partilhas, sancionar heranças e de repreender ou até de prender quem prevaricasse, se julgasse necessário, pese embora nunca o tenha feito, até porque não havia cadeia na Fajã. Era um homem simpático e muito respeitado, um bom comunicador, amigo de todos e de brincar com as crianças. “Metia-se com toda a gente”. Eu chamava-lhe “Shô Rojo” em vez de Senhor Regedor. Durante muitos anos foi ele também o único operário que trabalhou numa pequena fábrica de manteiga, pertencente à Cooperativa de Lacticínios da Fajã Grande e que existia no cimo da Fontinha, num lugar chamado Cruzeiro, um pouco antes do Alagoeiro. Competia-lhe a tarefa não apenas de fabricar a manteiga mas também de a enlatar e colocar as latas em grades de madeira que ali aguardavam até à chegada do Carvalho Araújo que as levaria para Lisboa. Mais tarde foi forçado a exilar-se em Angra, devido a doença grave e crónica da esposa, senhora bondosa e também muito amigo da minha mãe. Nesta transversal ainda moravam dois casais: João Gonçalves, vice-presidente da Junta de Freguesia durante muitos anos, filho da tia Gonçalves, casado com a Maria do Rosário, filha de João Fagundes e o José Fagundes, filho de João Fagundes e casado com uma filha de tia Gonçalves. O primeiro casal tinha dois filhos e o segundo apenas um. As suas casas ficavam no termo da rua, por detrás da minha, confrontando com uma terra que meu pai tinha à porta, como se de uma courela se tratasse.

Voltando à rua da Assomada e logo a seguir ao poço onde as vacas bebiam água moravam as minhas primas e vizinhas Fragueiras. A mais velha e bastante doente, a Marquinhas do Céu, era uma exímia costureira e fazia roupa para fora enquanto a Deolinda trabalhava nos poucos e minúsculos campos que tinha, garantindo assim o sustento da casa. Sempre foram muito nossas amigas e muitas vezes acompanhava a Deolinda aos campos, enquanto ela ia trabalhar ou simplesmente buscar um molho de lenha à Cabaceira. Logo abaixo, mas do outro lado da rua, morava a já muito velhinha tia Lucinda, com os filhos Fernando e Luís. Como estes passassem o dia a trabalhar nos campos e tia Lucinda já não pudesse sair de casa, pedia-me frequentemente que fosse à loja do senhor Roberto comprar-lhe petróleo, mexas, açúcar, café e farinha, dando-me sempre como recompensa dez centavos. Em frente morava a sua filha mais velha, também chamada Lucinda, viúva do Faroleiro. Como a profissão de faroleiro era das poucas remuneradas na Fajã e, consequentemente, uma das profissões mais lucrativas da freguesia, esta família tinha melhores condições de vida do que a maioria das restantes. Morava com uma filha e tinha um outro filho que era padre e professor no Seminário de Angra, mas que frequentemente ia passar férias de Verão à Fajã, durante as quais conversava muito comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais.

Estes eram os meus vizinhos, dado que encravada no meio destas três casas ficava a de meus pais, onde nasci, cresci e vivi com eles e com os meus cinco irmãos, até que a minha mãe faleceu. Tratava-se de uma casa pequena e pobre, com uma parte superior, constituída por cozinha, sala e um quarto e uma inferior com uma loja para palheiro do gado e outra para arrumos e nitreira. Eram, assim pobres e limitadas a maioria das casas da Fajã, na altura. Meu pai, era conhecido pelo João de Ti’Antonho, era um pequeno lavrador, possuía duas vacas, trabalhava juntamente com a minha mãe e meus irmãos mais velhos as poucas terras que tinha e mais algumas outras que pertenciam aos meus tios que haviam partido para a América, cujas colheitas, juntamente com uma parte do leite das vacas, garantiam o nosso sustento. O único dinheiro que ganhava era o resultante da venda da outra parte do leite à Cooperativa e com que se comprava o petróleo, as mexas, o sabão, o café em grão, um ou outro quilo de farinha de trigo e um pouquinho de azeite doce para nos untar os “galos” que fazíamos ao bater com a cabeça. Havia meses em que a Cooperativa não pagava e, então, não havia dinheiro para nada.

A seguir à minha casa e já quase no limiar da Praça, mas ainda na Assomada, morava mais um grupo de pessoas que, de tão perto que eram as nossas casas, nos tratávamos todos por vizinhos.

A primeira casa pertencia ao Manuel Dionísio. Situava-se logo a seguir à casa do Senhor Faroleiro, era surdo-mudo e vivia sozinho. A casa era baixa e térrea geminada com a do Catrina. O Manuel era pobre e alimentava-se do que lhe davam e do pouco que produzia; uma pequena terra nas traseiras da casa e uma horta na Cabaceira, onde ia buscar lenha, maçãs e inhames. Num pequeno curral colado à empena da casa tinha duas ou três galinhas. Passava as tardes à janela da sala que ficava voltada para o caminho, a dormitar calma e tranquilamente. Como só comunicava por gestos e apenas balbuciava um som “Biga-Biga” era conhecido pelo Manuel Biga-Biga.

Na casa geminada com a do Biga-Biga morava o João da Catrina, com a mulher, um filho e uma cunhada doente mental e que pouco saia de casa. O pai e o filho, o José da Laura, eram, na Fajã, considerados, pelas suas conversas, talvez os maiores opositores ao salazarismo e acérrimos defensores do regime comunista, então vigente na União Soviética, liderado por Estaline e, a partir de 1953, por Kruchtchev, personagens sobre os quais falavam com alguma frequência, dado serem das poucas pessoas que na freguesia tinham acesso aos noticiários da rádio. Mais tarde o Catrina seria o grande divulgador, na Fajã, das “Crónicas de Angola de Ferreira da Costa”. O filho, o José Rodrigues na sua maneira de falar e de opinar tinha aspecto de pensador ou de filósofo e caracterizava-se também por fazer uma enorme pausa antes de dizer o que quer que fosse, como se estivesse sempre a pensar no que iria dizer, proferindo uma chavão, muito conhecida na altura, de que tinha a patente: “Sim, bem se sabe…” Era um bom carpinteiro, pese embora nunca tivesse pressa para nada e era ele que fabricava as caixas em que eram empacotadas as latas da manteiga da Cooperativa.

Na casa em frente vivia Mestre Jorge, com a mulher e quatro filhos e que era o sapateiro da terra, embora a mulher e os filhos se dedicassem ao cultivo dos campos, dado que esta profissão, como todas as outras, não dava para sobreviver sem a agricultura e a criação de gado. Para além de consertar o calçado, Mestre Jorge fazia sapatos, galochas e foi ele que fez as “botas” de futebol de todos os jogadores, do então vigoroso Atlético Clube da Fajã Grande, o clube de futebol existente na Fajã, na altura, e que defrontava em pequenos torneios e aguerridos jogos, no Campo das Furnas, o “Rádio Naval” das Lajes, a “Académica da Fazenda, o “Sporting” e o “União”, ambos sedeados em Santa Cruz. Na casa ao lado e paredes-meias com a “Maquina de Cima” ou seja, o posto de desnatar o leite pertencente à firma Martins e Rebelo, morava o Alfredo Fagundes, ainda meu primo e casada com a Marquinhas do Céu.

Do outro lado da rua e no cruzamento da última transversal da Assomada, esta sem casas, morava o Antonino de Tio Francisco Inácio, também meu primo, casado com a filha mais velha do Faroleiro e com um filho, o Jaime – o meu maior amigo de infância. O Antonino era simultaneamente barbeiro e latoeiro. A primeira actividade exercia-a apenas aos domingos, antes e depois da missa, mas a segunda ocupava-lhe bastante mais tempo, ao longo da semana, dado que para além de reparar e soldar todas as latas da freguesia tinha que fabricar os recipientes em que era enviada para o Continente a manteiga produzida pela Cooperativa e de as fechar depois de cheias de manteiga. Como tinha pouco tempo para as lides agro-pecuárias e como meu pai era bastante pobre, celebraram uma espécie de contrato em que eu tinha que ir levar-lhe e buscar as vacas, todos os dias, ao Outeiro Grande, tendo em contrapartida e como obrigação por parte dele, cortar-nos o cabelo e soldar-nos as latas de graça

De todo este grupo de famílias, apenas esta última emigrou para o Canadá. No entanto, actualmente na Fajã residem apenas alguns dos filhos de Mestre Jorge.

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A POPULAÇÃO DA ASSOMADA – I PARTE

Sexta-feira, 08.11.13

A rua da Assomada tinha a forma de um ípsilon, isto é, no seu cimo, ramificava-se em duas vielas que se prolongavam em caminhos. À esquerda de quem a subia, a Assomada delongava-se pelo início do caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho. Por sua vez e do lado direito continuava através do Caminho da Missa, com destino à Eira da Quada, à Fajãzinha e às outras freguesias e vilas da ilha.

A primeira casa da Assumada, do braço esquerdo do ípsilon, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água era a do João Fagundes, um senhor já de provecta idade, com o nome rigorosamente igual ao de meu progenitor, razão pela qual meu pai assinava o seu nome sempre seguido de Júnior. Assim não havia confusão, não tanto pelas cartas que estas traziam remetente, mas sobretudo pelos avisos amarelos, anunciadores das encomendas da América ou daqueles que eram para pagar dízimas e impostos e que não continham remetente. O senhor João Fagundes era um homem muito respeitado na freguesia, tendo exercido alguns cargos de responsabilidade e era irmão da mãe do José Nascimento. Vivia com a esposa e os dois filhos mais novos, dado que os restantes já haviam casado. O João ingressou na Guarda-Fiscal, deslocando-se, mais tarde, para Santa Cruz, juntamente com a mulher, enquanto a filha casou e partiu para o Canadá.

Na casa seguinte, na curva ao lado do Palheiro do Tomé e enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho, morava a Maria José Fragueiro. Era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe.

Seguia-se a casa de José Jorge que cedo zarpou para o Canadá com a mulher, a Maria Cardoso e duas filhas, sendo a casa ocupada posteriormente por uma família oriunda das Lajes, conhecida pelos “Marcelas”. Neste braço esquerdo do Y e junto ao cruzamento, assinalado numa das paredes com uma cruz, vivia a Maria da Saúde e a mãe já velhinha, juntamente com um homem de nome Corvelo, originário de Santa Maria e que ali se fixara. Este Corvelo faleceu no terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada, quando colocavam dinamite para rebentar uma pedreira.

No outro braço ficavam apenas duas casas: a da Senhora Estulana, viúva e com três filhos e a do José Garcia, casado com a Senhora Ester e com dois filhos ainda residentes: o Júlio e a Avelina que casou com o João do Gil. Ambas estas famílias abandonaram a freguesia.

Mais abaixo a rua começava o seu braço central com o José Dias, na primeira casa do lado direito. Poucos anos lá viveu, este filho de Tio Manuel Luís, casado com uma filha da Senhora Estulana, com dois filhos, dado que cedo partiram para a América. A casa teve vários moradores até que a comprou o Augusto Mariano.

Presumivelmente seria este o primeiro grupo de famílias a ser enumerado na igreja no dia 3 de Novembro e a cujas almas dos seus defuntos se dirigiam a missa, as preces e os responsos desse dia.

O segundo grupo a ser lembrado, no dia quatro, seria necessariamente o dos moradores daquelas casas da Assomada que ficavam sob as encostas do Pico e localizadas entre o Chafariz do Cimo da Assomada e a Canada de Ti’Antonho do Pico.

A primeira casa integrada neste grupo era a do Chico de José Luís, que casou com a Maria das Neves, natural da Ponta e que tinha três filhos: a Fernanda, o Francisco e a Rosália. A casa ficava à esquerda de quem subia, ao lado de um chafariz que existia ali no Cimo da Assomada e era, estruturalmente, bastante semelhante à minha: uma enorme cozinha, a sala onde dormiam as crianças e o quarto para o casal. Em frente e antes da estrada passar, havia um pátio com plantas, pequenos arbustos, flores e o “cepo da lenha”. Imediatamente a seguir e, quase encostada a esta, morava a tia Gonçalves, talvez, na altura uma das pessoas mais velhas da Fajã, com uma casa bastante maior e melhor do que a anterior, em forma de L e por baixo da qual não havia gado. Era viúva, vivia com uma filha também viúva, mas já de idade, uma neta, o marido desta e um bisneto – o Silveira. Por trás destas casas e ao fundo duma canada, num edifício geminado, morava meu tio Cristiano casado com uma filha de Tio José Luís e dois filhos e o Laureano Alexandre, que, apesar de viver sozinho, era uma pessoa muito sociável, alegre, divertida, afável e sempre disposto a assumir cargos de responsabilidade, nomeadamente o de cabeça da Casa de Baixo, cargo que exerceu durante muitos anos. Também era baleeiro. Meu tio Cristiano era alfaiate, mas tal ofício não dava para se sustentar a si e à família, por isso também criava uma vaca, cultivava algumas terras e também chegou a ser baleeiro. A casa dele, para além duma pequena cozinha que edificara atrás, ocupava apenas a sala do respectivo prédio em cuja restante parte vivia o Laureano Alexandre. No entanto como era uma sala muito grande estava dividida com biombos em pequenos cubículos, que eram quarto, sala e atelier de costura.

Voltando à rua, num outro prédio bem maior, também transformado em habitação geminada moravam, na parte de cima o Francisco Inácio e na de baixo o Cabral. Era um prédio alto, bem construído, de dois pisos, implantado na frente da rua, à esquerda de quem a subia. Tinha uma fachada imponente, delimitada por uma faixa, com três portas no piso térreo, com um óculo oval entre as duas portas e uma faixa a dividir as duas moradias. Francisco Inácio, casado com uma filha de tio José Luís e com dois filhos, o José Augusto e a Vitória, morava do lado esquerdo. Tinha-se acesso à moradia, através de um pátio sob o qual ficava uma das poucas cisternas existentes na Fajã. A cozinha tinha uma chaminé monumental. Na parte direita morava o Cabral com a mulher e os filhos, entre os quais o Laurindo. Todos abandonaram a freguesia, assim como os filhos do Francisco Inácio. Este prédio tinha em frente o palheiro dos irmãos José e Manuel Cardoso, o qual teria sido, noutros tempos, residência do Caixeiro e da tia Rosário e a ele estava ligada a célebre “estória” de “As empenas de Cabral”. Contava-se que andando um dia Caixeiro pelos campos, a tia Rosária ficou em casa a cozer bolo. Talvez por descuido ou limitação de recursos, o bolo queimou, mas quando o Caixeiro chegou a Rosaria pô-lo na mesa apesar de queimado, pois não tivera tempo ou recursos para cozer outro. Só que pelos vistos o bolo estava tão queimado, tão queimado que o Caixeiro não o pode ou não o quis comer. Furioso, levantou-se, foi à porta e atirou-o para o outro lado da rua, indo o bolo colar-se ao prédio da frente onde morava o Cabral. A Rosária é que não gostou nada de ser aquele o destino do seu bolo, fruto do seu trabalho e, recriminando-o, disse:

- “Pedaço de mal criado, atiraste com a face do Senhor às empenas de Cabral.”

Ao lado deste palheiro ficava a casa de tio Mateus Felizardo. Ainda me lembro de ver este velhote de longas barbas brancas salpicadas do amarelo do tabaco que mascava. Morava lá o Manuel Machado com a mulher, um filho e com o avô Mateus Felizardo e a avó, ambos já muito velhinhos.

No caminho conhecido por “canada de Ti’Antonho do Pico”, a primeira de três pequenas transversais que tinha a Assomada, orientadas para o lado do Pico, ou seja do lado direito de quem subia, vivia apenas a família de Ti’Antonho do Pico, que exactamente por morar nas encostas daquele minúsculo monte, sobranceiro à Assomada, granjeou tal epíteto. A casa, onde residia com a esposa, com a filha Dolores, com o genro e com um neto, ficava de facto um pouco fora do caminho da Assomada e encravada lá bem para dentro, já nos contrafortes da pequenina montanha. O genro, o Jesuíno, filho do Afonso das Tomásias era um excelente músico, tocava clarinete na Filarmónica Senhora da Saúde, cantava na capela e, mais tarde, fundou e orientou a Tuna Sol e Mar, ainda existente na Fajã Grande.

Regressando à rua e logo acima da Fonte ficava um pequeno grupo de três casas, onde moravam Tio João Barbeiro, casado com uma irmã da mulher do Tio José Teodósio, com quem vivia, juntamente com a filha Elisa Barbeiro, um neto a quem a mãe falecera no desastre do Corvo e a Olinda. Foi este neto de tio João Barbeiro, o José Cardoso, desde miúdo notável construtor de triciclos e carripanas de madeira que ele próprio conduzia, que comprou o primeiro carro de praça existente na Fajã Grande. Em frente ficava a casa do Augusto Mariano, casado com a Marquinhas de S. João, muita amiga da minha mãe e que tinha dois filhos, o José Lucindo e o Mariano e ainda o António Barbeiro, talvez um dos homens mais inteligentes e cultos da Fajã e que a estas qualidades aliava a de artista primoroso, quer como relojoeiro, a principal actividade que desempenhava e em que era exímio, quer noutras actividades em que se envolvia, nomeadamente na carpintaria e na apicultura, executando todos os trabalhos com uma perfeição invulgar e um zelo excessivo. Acrescente-se, ainda, que na freguesia era a única pessoa capaz de resolver a maioria de um sem número de pequenos problemas quotidianos, como o de consertar uma fechadura, amolar uma tesoura, por um badalo na campainha duma vaca, colocar um vidro ou até por os agrafos num prato partido ou grampos num alguidar quebrado. A fama de que gozava era imensa e granjeara o respeito e admiração geral, dado que quase toda a freguesia recorria com frequência aos seus préstimos. Era viúvo e vivia na companhia de dois filhos, a Alda e o Orlando. Tanto o neto de João Barbeiro, como os filhos do Augusto Mariano e do António Barbeiro abandonaram a ilha, partindo para a América e para o Canadá, excepto o José Lucindo que, tocou requinta na Filarmónica e que após a tropa, entrou para a Marinha.

Ali perto e um pouco mais abaixo moravam duas velhinhas, numa casa pequenina e pobre, com uma cozinha muito velha, com o chão ainda de solo (barro ou terra) e sem forro: Tia Ermelinda e Tia Maria Inácia. A primeira era muito doente e já não saía de casa e estava permanentemente sentada à janela da empena da sala. De manhã rezava, costurava e lia. De tarde ensinava catequese e conversava com quem a visitava. Tia Maria Inácia, apesar de velhinha e doente, era “o homem da casa”. Era ela que ia à lenha à Cabaceira, que a rachava, fendia ou picava com o machado e a guardava debaixo do lar. Era ela que ia buscar erva-santa para as galinhas. Era ela que cozinhava, lavava e limpava a casa. Era ela que fazia tudo.

Junto a esta casa ficava uma outra onde moravam três irmãs, também já de avançada idade, conhecidas pelas senhoras Mendonças. A mais velha enviuvara há muitos anos e era a mãe do poeta e escritor Pedro da Silveira. Apesar da idade eram estas três senhoras  que, para além de partilharem as tarefas diárias da casa, trabalhavam os seus campos onde cultivavam milho, batatas e outros produtos necessários à sua alimentação.

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