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AS DESLOCAÇÕES A PONTA DELGADA

Segunda-feira, 13.02.17

Situada a oeste das Flores, encafuada entre o mar e a Rocha, a Fajã Grande, até à década de cinquenta era, sem sombra de dúvida a freguesia mais isolada da ilha. As vilas e a maioria das outras freguesias ficavam distantes e as comunicações eram muito limitadas, difíceis, sinuosas e quase inexistentes. Cortada por um inúmero caudal de grotas e ribeiras, sulcada por vales, dilacerada por grotões, os matos da ilha que separavam as várias freguesias eram muito difíceis de percorrer e, por vezes, até perigosos. Talvez por isso se recorresse muitas vezes à deslocação de uma freguesia para outra de barco. Mas as embarcações existentes, nesses tempos, na Fajã Grande eram poucas e muito frágeis. Além disso algumas freguesias nem tinham porto ou local onde pudessem acostar embarcações, por mais pequenas que fossem. Era pois muito difícil sair da Fajã Grande, mesmo que fosse numa pequena deslocação às freguesias vizinhas: a sul e mais próxima, a Fajãzinha e a norte Ponta Delgada

A Fajãzinha ficava perto da Fajã. A viagem demorava menos de uma hora. Além disso, o caminho por onde se circulava – o antigo Caminho da Missa – era relativamente bom e nele até podia circular, à vontade, um carro de bois, mas, apesar de tudo, as deslocações aquela localidade muitas vezes, sobretudo no inverno e em dias de muita chuva, eram muito difíceis e até totalmente impedidas, devido ao enorme caudal da Ribeira Grande, cujas frágeis pontes iam sendo sucessivamente destruídas. Aliás estes obstáculos impediam a deslocação quer às Lajes quer a outras freguesias ou localidades mais próximas: a Caldeira, o Mosteiro, o Lajedo, o Campanário e a Costa. Eram por ali que circulavam os carros de bois com as parcas mercadorias para a freguesia, a maleira, os mulos que levavam a nata ou a manteiga, assim como as pessoas que saiam ou chegavam da ilha, vindas sobretudo da América As deslocações a Santa Cruz e aos Cedros eram feitas atravessando os matos, depois de subir a Rocha.

Pior, porém, eram as idas e vindas a Ponta Delgada, a freguesia mais próxima da Fajã, no que ao norte dizia respeito.

Até à Ponta o caminho era bom. Atravessava-se a Tronqueira, descia-se o Calhau Miúdo e percorria-se a Ribeira das Casas e as Covas até à Ribeira do Cão. Chegava-se assim às primeiras casas da Ponta e, atravessando a rua principal, tinha-se acesso fácil até à Rocha, já para lá da igreja da Senhora do Carmo. Aí começavam as dificuldades. Primeiro era necessário subir uma estreita e sinuosa vereda, desenhada em ziguezague nos contrafortes da rocha, sobre o mar. Sítios existia em que a vereda se situava mesmo sobre o mar, em terríveis e temíveis precipícios, constituindo, o percurso, um perigo permanente e iminente. Para além de muito estreita e íngreme o pavimento era bastante irregular, ora encravado em frágeis degraus de pedra solta, ora esculpido em socalcos de terra maleável e, de vez em quando, atravessado por pequenos veios de água e de charcos ou lameiros. O perigo de cair ao mar era eminente. O risco de ser tolhido por quedas de pedras ou de enxurradas era permanente. Talvez por tudo isso o povo atribuiu aquele alcantil o nome de Rocha do Risco ou Lugar do Risco.

Ao chegar ao cimo da Rocha, ou seja ao Risco, entrava-se no mato. Não havia veredas. Existiam simplesmente alguns carreiros que os pés dos transeuntes haviam desenhado na fresca alfombra e que atravessavam as pastagens. Além disso como estas eram vedadas, ou por bardos densos de hortênsias ou por grotões cheios de pedregulhos, sendo difícil transpor uns e atravessar outros. Durante a noite ou em dias de nevoeiro, o perigo dos transeuntes se perderem era muito provável. Além disso ainda havia que atravessar os caudais de algumas ribeiras onde não existiam pontes. Eram os casos das ribeiras da Francela, que corria na direção dos Fanais, a de Monte Gordo, a da Bargada, a do Mouco e, já próximo de Ponta Delgada, a Ribeira dos Moinhos. Não havia pontes e no inverno tinham volumosos caudais.

E acrescente-se que muitos habitantes da Fajã Grande, para além de terem que se deslocar a Ponta Delgada com alguma frequência, se o desejassem fazer para o Corvo teriam que seguir por este abrupto acesso, a fim de tomar um barco na freguesia mais a norte da ilha e, consequentemente, mais próxima da ilha vizinha.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

CARROS DE BOIS

Sábado, 15.10.16

Os carros de bois ficarão para sempre intimamente ligados à história, à vida e aos costumes da população da mais ocidental freguesia açoriana, uma vez que na primeira metade do século passado eram utilizados, frequentemente, como meio de transporte, sobretudo dos produtos agrícolas e afins. Isto porque, por um lado os animais bovinos foram sempre uma presença constante na vida económica daquela freguesia e, por outro, porque algumas terras ficavam muito distantes de casa e, além disso, por vezes a quantidade dos produtos a transportar era grande, como era o caso do milho, do sargaço, do estrume, dos fetos e até da lenha, por alturas da matança do porco.

Assim o carro de bois que substituiu o velho corsão feito de paus e a arrastar-se pelo chão, foi muito utilizado na Fajã Grande para transportar toda a espécie de carga e por vezes até pessoas, especialmente as que vinham esperar romeiros até à Eira da Cuada ou à Ribeira Grande. As crianças adoravam andar nos carros de bois sobretudo quando estes iam vazios. Estes carros, além disso, também eram muito utilizados para transportar para as Lajes e para os Terreiros a mercadoria que o Carvalho trazia sempre que fazia serviço no Porto da Fajã Grande. E não era pouca!

Mas era sobretudo por alturas de apanha do milho ou de carregamento do sargaço que o carro de bois era mais utilizado. Nestes dias a freguesia amanhecia e quase adormecia ao som agonizante que saía dos queicões de madeira apertados com potentes parafusos de ferro, pois os carros circulavam por ruas e vielas numa azáfama contínua, com as sebes bem acaculadas de maçarocas de milho. Depois paravam em frente às casas dos donos, despejando os carregamentos. No caso do sargaço este era levado do Lago, no Rolo, para os campos, deixando no ar um perfume quente e amarelado. De seguida voltavam às terras ou ao Lago, a encher-se mais uma, duas vezes ou as necessárias para carrear todo o milho ou todo o sargaço. Não era raro ver uma criança escarrapachada bem lá no alto em cima do carro de milho! Assim carregadinho, o carro como que cantava num monótono “nhemnhem” que se misturava com as campainhas das rezes que caminhavam à frente, puxando pacientemente o veículo sob as ordens da aguilhada do dono. Quando a carga era muito pesada, juntava-se uma segunda junto de bois, presa às solas.

Antes do automóvel o carro de bois era o único meio de transporte a circular na freguesia sobre rodas. Havia também. Embora em menor escala, carros de ovelha, os quais eram uma espécie de miniatura dos carros de bois.

Embora chamados carros de bois estes carros eram a maioria das vezes puxados por vacas, geralmente por uma junta de rezes, embora houvesse alguns carros de canguinha atrelado apenas a um animal. Num caso e noutro eram atracados às cangas de madeira e estas enfiadas no pescoço de cada rês por dois canzis também de madeira e presos um ao outro pela brocha de couro. O tamoeiro, com a ajuda duma chavelha, prendia o cabeçalho do carro à canga. Para tanger e conduzir os animais era usada uma aguilhada, ou seja uma vara comprida, tendo na ponta um aguilhão. Nas juntas, os bois ou as vacas ainda eram presos pelos chifres com uma ataca, também ela de couro que prendia nas ponteiras.

O carro de bois era composto por três peças principais: rodas, eixo e o tampo. As rodas eram formadas por um meião e duas meias-lua, abertas de acordo com o veio da madeira. As rodas, ladeadas por um arco de ferro, eram ligadas pelo eixo encaixado em cada uma delas e preso com grampões de ferro. Há no eixo, no local onde se apoiarão o queicão e as chumaceiras, uma pequena escavação para encaixe destes. O tampo era atravessado pelo cabeçalho no extremo do qual se prendiam tábuas que formavam uma espécie de mesa, por vezes até usada para matar e chamuscar o porco. Nos lados, havia buracos simétricos e equidistantes para neles se enfiarem os fueiros que prendiam a ceira ou seguravam a carga quando aquela não era utilizada, dependendo do tipo de carregamento. Na ponta do cabeçalho havia um ou dois buracos para enfiar a chavelha e prendê-lo à canga. A existência de dois buracos no cabeçalho destinava-se a adaptar o carro a rezes maiores ou menores.

Carro de bois, um dos mais primitivos e simples meios de transporte, que ficará para sempre na memória de quantos o utilizaram e, sobretudo, de quantos, em criança, se sentaram, alegremente, em cima dos seus carregamentos e de lá de cima nunca caíram.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O ?ONTA DELGADA

Domingo, 17.11.13

Com o desastre do Arnel, encalhado no Baixio dos Anjos, na ilha de Santa Maria, em 19 de Setembro de 1958, poucas horas depois  de ter iniciado mais uma das muitas viagens que realizava entre aquela ilha e a de São Miguel, surgiu a necessidade urgente, por parte da Companhia Insulana de Navegação, de se construir um novo navio que emparceirasse com o Cedros no serviço de transporte de passageiros e carga entre as ilhas. Impunha-se, de facto, um acréscimo de viagens que satisfizesse as exigências da população insular. Se bem o pensou melhor o fez a Insulana. Assim, aquela empresa, que na altura detinha o monopólio do transporte de pessoas e mercadorias entre as ilhas açorianas, mandou de imediato construir um novo navio, o qual foi baptizado com o mesmo nome da maior e mais importante urbe açoriana - “Ponta Delgada”.

O Ponta Delgada foi construído em Lisboa pela construtora NAVALIS, por encomenda da Empresa Insulana de Navegação, destinando-se, de facto, a substituir o Arnel, no serviço de transporte de pessoas e mercadorias nos Açores. O contrato de construção foi assinado a 10 de Março1960. A quilha foi assente em Novembro do mesmo ano, o casco lançado à água em 3 de Abril do ano seguinte e o navio foi dado como pronto e entregue à Insulana em Dezembro seguinte, sendo seu primeiro comandante o capitão Armando Gonçalves Cordeiro. Depois de visitado pelo Ministro da Marinha, almirante Fernando Quintanilha e registado na capitania do porto de Lisboa, o novo navio de passageiros entre as ilhas saiu da capital com rumo a São Miguel, ancorando na doca de Ponta Delgada, em Janeiro do longínquo ano de1962. Apartir de então deu início a viagens regulares entre as ilhas, largando de Ponta Delgada ou para Santa Maria ou para as ilhas do Grupo Central. Na segunda viagem que fez ao Faial, o navio rumou às Flores e Corvo, passando assim a assegurar o serviço de passageiros entre todas as ilhas dos Açores, nomeadamente para as Flores, onde intercalava as viagens com as do Carvalho Araújo, alternando-as mensalmente com o Cedros, permitindo deste modo que a ilha fosse visitada por um navio de quinze em quinze dias. Durante os vinte e dois anos em que navegou nos mares açorianos, servindo as nove ilhas, o Ponta Delgada apenas numa das suas viagens, enquanto veio a Lisboa para reparação, foi substituído por um navio grego, o Aquileus IV, alugado para tal, pela empresa responsável.

O Ponta Delgada tinha cerca de sessenta e dois metros de cumprimento e dez de largura máxima, tendo capacidade para o transporte 400 passageiros e mais de mil toneladas de carga. Com o casco pintado de azul escuro e a restante parte de branco, o navio desfrutava apenas duas classes de passageiros com beliches, mas possuía, na parte traseira um enorme salão, com bancos. Assim aos viajantes mais pobres, era possível abdicar de viajar em primeira ou segunda classe com preços muito caros e optar pela compra de um bilhete de viagem bastante mais barato, na categoria de salão, sem direito nem a beliche nem a alimentação. Quem fizesse esta opção teria que se apressar e, atempadamente, conseguir um lugar no salão para passar a noite, o que por vezes era muito difícil, uma vez que o mesmo se encontrava, geralmente, sobrelotado e, pior do que isso, a abarrotar de vómitos e de cheiros nauseabundos. No entanto, viajar no Ponta Delgada, tinha uma vantagem, pois uma vez que não transportava gado e, dado que o volume de carga era reduzido, as viagens das Flores à Terceira eram bem mais rápidas do que as do Carvalho, demorando geralmente duas noites e um dia.

O Ponta Delgada, que até durante os anos em que serviu os Açores, chegou a fazer alguns cruzeiros ao Continente, cessou a sua actividade transportadora nas ilhas no ano de 1985, sendo, pouco tempo depois, fretado para ser efectuada a bordo a rodagem de um filme. A partir daí e após algumas obras de restauro e modernização, passou apenas a ser utilizado para a realização de pequenos cruzeiros entre Lisboa e o Algarve, efectuando no entanto, anos mais tarde, uma viagem a Moçambique, país onde foi utilizado também com meio de transporte de passageiros. Após esta sua aventura africana, o Ponta Delgada regressou a Lisboa e atracou ao cais do Poço do Bispo, onde permaneceu treze anos, abandonado, marginalizado, destruído e apodrecido, acabando por afundar-se em 3 de Junho de 2001. Triste fim, este do “nosso saudoso” Ponta Delgada, tão útil e tão querido dos açorianos e sobretudo dos florentinos que, familiarmente, o tratavam simplesmente por “ Pontalgada”.

O Ponta Delgada, nas suas viagens às Flores, fez serviço por diversas vezes na Fajã Grande e dele se contam inúmeras aventuras e “estórias”, sendo a mais célebre aquela em que numa noite de temporal o navio, abandonou a doca do Faial e partiu para as Flores. Ao longo da viagem, o estado do tempo piorou substancialmente e a umas boas milhas de distância do Faial, o comandante perdeu o controlo do leme, ficando o barco à deriva, assolado por ventos muito fortes e por ondas altíssimas. Todos entraram em pânico, incluindo o comandante que revelava enormes dificuldades na orientação e comando do navio. Uma onda mais forte provocou-lhe um rombo na borda do casco. Era o fim! A tragédia total” Foi então que um experiente marinheiro do Pico, aclimatado a ventos e tempestades ainda mais fortes, decidiu tirar o leme das mãos do comandante, assumindo ele próprio a condução do navio e em poucas horas conseguiu fazê-lo regressar ao Faial, onde foi recebido por todos com enorme alegria. Os passageiros e a tripulação estavam todos salvos, apenas o navio sofrera graves prejuízos.

 

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publicado por picodavigia2 às 01:39

A LETA

Quarta-feira, 13.11.13

A Leta era, nos anos cinquenta, o gasolina mais rápido e veloz que existia na ilha das Flores. Grande, branca, debruada a amarelo e vermelho era uma lancha movida por um potente motor, colocado no interior duma casa que cobria grande parte da área interior da embarcação e  ladeada por inúmeras janelas. O motor situava-se a meio da casota e à sua volta existiam alguns bancos onde os passageiros se podiam sentar e, através das janelas, observar o exterior, nomeadamente o mar e a ilha. A parte não coberta e que ficava à ré, também possuía ao seu redor bancos com o mesmo fim. Na parte mais anterior, truncada e não terminada em proa, como era próprio das lanchas, ficava a roda do leme. A sua tripulação era constituída apenas por três elementos: o  mestre que a conduzia, guiava e encostava ao cais ou ao porto, o maquinista responsável pelo funcionamento, manutenção e limpeza do motor e o proeiro que normalmente viajava à frente da casa, à proa, sobre quem recaía todos os outros trabalhos, nomeadamente o de aproximar e afastar do cais com uma vara própria, de a amarrar, apoitar e até de a lavar.

A Leta teve um papel muito importante na vida da população a ilha das Flores. e da Fajã Grande.  É que para além de ser um dos meios de transporte de pessoas e mercadorias (neste caso arrastando os barcos sem motor) entre as vilas e as freguesias da ilha das Flores, também era usada na pesca à baleia e para fazer transporte de passageiros e rebocar os barcos de carga nos dias de vapor, ou seja quando o Carvalho Araújo demandava a ilha. Para a população da Fajã Grande, porém a Leta era uma espécie de Deus Salvador, uma vez que era através dela que se deslocavam muitos doentes para Santa Cruz, salvando-os assim, pois que a ficar naquele isolamento possivelmente teriam morrido. Era também a Leta que geralmente transportava, quando das suas visitas às freguesias mais longínquas das duas vilas das Flores e que também possuíam os melhores portos, nomeadamente a Fajã Grande e  Ponta Delgada, as personagens importantes e as autoridades, como por exemplo o bispo da diocese e o governador civil do distrito.

A Leta a mais rápida, mais veloz e mais estimada e aureolada embarcação de transporte da ilha das Flores e dela hoje muito pouco ou quase nada se sabe.

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publicado por picodavigia2 às 08:47

O GIRÃO

Sábado, 02.11.13

Um dos barcos de carga que outrora escalava a ilha das Flores e que intercalava com as escalas mensais do Carvalho Araújo era o Girão, que demandava a ilha em alternância com o Terceirense e por vezes com o Lima, fazendo serviço geralmente o porto das Lajes, deslocando-se raramente à Fajã, apenas quando o mar em Santa Cruz não permitisse fazer a carga e descarga. O Girão era o navio que transportava para as Flores carga das restantes ilhas, nomeadamente de S. Miguel. A sua carga fundamentalmente reduzia-se ao transporte das botijas ou garrafas de gás e o combustível líquido, este em bidões de 200 litros, uma vez que o Carvalho, como navio de passageiros não podia nem devia transportar estas mercadorias, devido ao perigo que representavam para um navio que transportava passageiros. O Girão era bem mais pequeno do que o Carvalho, mas maior do que o Terceirense, outro navio de carga que também demandava a ilha das Flores nos anos cinquenta e que fez serviço, várias vezes, no porto da Fajã. O Girão tinha um comprimento de 47,80 metros, boca 7,80, calado 3,65, um motor de 400 hp e uma velocidade próxima dos 8 nós. Construído em 1931, em Foxhol, na Holanda, pelo construtor J. Smit & Zoon, ainda fez parte da frota da CTM até 1974. Altura em que foi retirado da navegação e vendido para a sucata.

No Pico, contava-se que certa vez que o Girão escalou o porto do Cais, enquanto se carregavam uns bidões vazios, alguns terão caído do guindaste que os içava e rolado sobre o convés do navio provocando um ruidoso estrondo. Muita gente ficou alarmada, incluindo o comandante, que veio à ponte e, depois de se inteirar do que se passava, advertiu o homem do guindaste: "Por favor, não me rebente com as costuras do navio!"

Este navio de carga, de saudosa memória para os florentinos e fajãgrandenses, chamava-se, inicialmente, "Oceaan", passando a chamar-se Gorgulho, na altura em que chegou a Portugal e foi registado na Capitania de Lisboa, no ano de 1948. Posteriormente e porque foi adquirido pela mesma companhia um outro barco com o mesmo nome, o “Oceaan” holandês passou a chamar-se Girão, nome que permaneceu até ao fim dos seus dias, quando foi vendido para a sucata.

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publicado por picodavigia2 às 15:58

O CAIS DAS LAJES

Sexta-feira, 12.07.13

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades:em Santa Cruz, durante a manhã e nas Lajes, ao longo da tarde e até à noite.

Os habitantes da Fajã Grande que nele viajavam, como grande parte dos de toda ilha, normalmente desembarcavamem Santa Cruz.É verdade que a deslocação para a Fajã era um pouco mais longa, mas, em compensação era possível fazer o trajecto até aos Terreiros de carro. Além disso desembarcando da parte da manhã, os passageiros chegavam sempre mais cedo a casa. Pelo contrário, o embarque era quase sempre feito pelas Lajes, permitindo assim sair-se de casa no próprio dia, percorrendo o longo e sinuoso caminho, entre a Fajã e as Lajes, durante a madrugada e manhã.

Por isso no cais da Lajes, em dia de chegada do Carvalho, reinava uma confusão tremenda e uma barafunda descomunal. Homens, mulheres, crianças, malas, baús, grades, bidões, caixotes, barris, sacos de serapilheira, bois, vacas e até alguns cavalos amontoavam-se em desusada caldeação. Aguardava-se a chegada de mais uma das duas pequenas barcaças que iam e vinham, alternadamente, entre o cais e o enorme paquete ancorado a umas duas ou três milhas de terra. Eram lanchas pequenas, vagarosas e frágeis que iam e vinham à vez, chegando carregadíssimas, a abarrotar de pessoas e bagagens. Encostavam-se às escadas de acesso ao porto e dois marinheiros, de calças arregaçadas pelo joelhos e descalços, uma à proa e outra à ré, atiravam as cordas que traziam amarradas nas bordas da embarcação para cima do cais a fim de que as alças das pontas fossem presas nos moitões de ferro cravados no cais, permitindo aos passageiros saltar para terra com maior segurança. Só depois lhes era retirada a bagagem, que, a conta gotas, ia sendo atirada pelos marinheiros para cima do cais onde estavam os bagageiros que a apanhavam com mestria e a seguravam com perícia de forma a que nenhuma mala ou caixote caísse no chão ou escapulisse para o fundo mar. Assim que as lanchas ficavam livres das pessoas e das malas que traziam de bordo, seguia-se uma lufa-lufa medonha, por parte dos que estavam em terra e pretendiam embarcar. Acompanhados da respectiva bagagem, todos queriam ser os primeiros a entrar e a ocupar os melhores assentos nos pequenos batéis, enquanto as malas iam sendo arrumadas à proa e à ré das embarcações.

Mais fora, mas antes do molhe, dois botes maiores do que as lanchas e com motores mais potentes, carregados com sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal ou de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga, também se iam, à vez, encostando ao cais. Em terra, um pequeno e desengonçado guindaste levantava, muito lentamente, toda aquela carga e colocava-a, desordenadamente, em cima do cais. Depois alguns homens entretinham-se a arrumá-la e ordená-la de acordo com os comerciantes da vila a quem se destinava e dos quais se destacavam: o Germano e a Firma.

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publicado por picodavigia2 às 08:18

O CARVALHO ARAÚJO

Sexta-feira, 14.06.13

O Carvalho Araújo era um velho paquete pertencente à Empresa Insulana de Navegação que durante anos e anos deteve o monopólio do transporte de passageiros e de carga entre o Continente, a Madeira e as nove ilhas dos Açores, as quais demandava uma vez por mês. Apenas entre as ilhas do grupo central circulavam três pequenos iates. O Carvalho era um barco enorme. Para além dos cerca de noventa e oito tripulantes, tinha capacidade para o transporte de mais de trezentos e cinquenta passageiros e quatro mil e setecentas toneladas de carga. Tinha sido comprado à construtora italiana “Cantiere Navale Trestino” havia uns bons trinta anos. Uma placa colocada na primeira classe, na escadaria que dava acesso à sala de jantar, explicava a razão se ser do nome com que fora baptizado, recordando o episódio em que fora protagonista o comandante Carvalho Araújo. Em Outubro de 1918, durante a primeira Grande Guerra Mundial, o navio S. Miguel fazia uma viagem entre a Madeira e os Açores, transportando passageiros e carga diversa, sendo escoltado pelo navio patrulha Augusto Castilho, sob o comando do tenente José Botelho de Carvalho Araújo. Quando os dois navios se encontravam a algumas milhas da cidade de Ponta Delgada foram atacados a tiro de canhão por um submarino alemão, comandado pelo experiente Lothar Von Arnaul deLa Periére. Iniciou-se, então, uma dura e árdua batalha naval que se prolongou durante algumas horas e durante a qual o comandante Carvalho Araújo ofereceu brava resistência à artilharia alemã, salvando muitos companheiros mas acabando ele próprio por sucumbir durante o combate. Para homenagear o comandante Carvalho Araújo foi posto o seu nome ao paquete que navegou mensalmente durante dezenas de anos, entre o Continente e as ilhas açorianas.

O navio dividia-se em três partes, correspondentes a três classes distintas. A primeira classe, a melhor e mais cara e destinada aos ricos, ficava no centro do navio e constituía a sua parte mais alta, mais nobre e mais luxuosa, com três andares. No terceiro para além do enorme convés com uma parte coberta e outra descoberta ficava ainda a sala de estar, com bar, cadeiras estufadas e mesas de jogo e as salas de comando. No segundo a sala de jantar, a cozinha, as casas de banho e os aposentos dos oficiais de bordo. Por baixo destes e já dentro do bojo do navio ficavam as casas das máquinas e os camarotes, mais amplos, menos susceptíveis aos balanços das ondas, mais limpos, mais arejados e, consequentemente mais caros. Na realidade só os ricos e endinheirados podiam viajar em primeira e aos restantes passageiros era vedada a permanência na sua área. A segunda classe, separada da primeira pelo porão de carga, ficava à popa, também tinha dois andares sobre o bojo. O preço dos bilhetes já era mais acessível e destinava-se aos remediados. No segundo andar ficava a sala de estar reservada aos passageiros que compravam bilhetes de segunda, circundada por um pequeno convés. A sala de jantar e a cozinha ficavam no primeiro andar. Os camarotes, por sua vez, situavam-se no bojo, mas à ré, pelo que eram bem mais ruidosos e menos confortáveis do que os da primeira. Finalmente a terceira classe, a mais barata e a pior em todos os aspectos, ficava à proa. Não tinha convés, nem sala de estar, nem bar. A sala de jantar ficava enfiada no bojo, era apertadíssima, muito suja e acumulava também as funções de sala de estar durante o dia e de dormitório, para muitos passageiros, durante a noite. Os camarotes eram poucos, pequenos e mal cheirosos e os beliches desconfortáveis e apertadíssimos. Além disso a sua colocação à proa do barco, tornava-os muito incómodos, sobretudo durante viagens em que a agitação mais acentuada do mar provocava um balouçar maior do navio e extremamente ruidosos, pois ficavam debaixo dos guindastes do porão da frente. Assim como os camarotes todas as instalações desta classe, incluindo a sala de jantar e a cozinha eram tão pequenas, tão apertadas e tão promíscuas que a maior parte dos passageiros que navegava com bilhete de terceira, fugia dali como o diabo da cruz, preferindo acomodar-se ao longo dos corredores, ao lado dos porões, ou até pelo convés das outras classes, embora, neste caso, a permanência fosse sempre condicionada pela tolerância da tripulação. É que por toda a terceira classe proliferava um pestilento e emético cheiro a vomitado, a latrinas nauseabundas, a comida mal cheirosa, ao bafio dos beliches e até a bosta de vaca, dado que ficava porta a porta com o porão onde viajavam os animais.

O Carvalho Araújo, no entanto, perdura na história dos Açores e na memória de todos os açorianos, de modo muito especial dos habitantes das Flores e Corvo, para quem a escala do navio nestas duas ilhas tinha um significado e uma importância transcendentes. Para os habitantes da Fajã Grande o Carvalho tinha um significado especial, porquanto era a única localidade da ilha onde fazia serviço quando havia mau tempo nos portos de Santa Cruz e das Lajes. O Carvalho na Fajã eram dias de festa que ainda hoje perduram na memória de quantos os viveram em criança.

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publicado por picodavigia2 às 18:33





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