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TODOS

Quarta-feira, 26.02.14

Finalmente chegaram os alunos de São Miguel. Vinham aos magotes quase todos acompanhados pelas famílias, oriundos do Nordeste, Algarvia, Povoação, Maia, Lomba da Maia, Ginetes, Capelas, Ribeirinha, Ribeira Grande, Pico da Pedra, Ribeira das Tainhas, Fajã de Baixo, Relva, Furnas, Lagoa, Água de Pau e, sobretudo, de Ponta Delgada e que, depressa, encheram os corredores, ocuparam as salas e atafulharam as camaratas. Senhores de um à vontade superior ao dos alunos oriundos das outras ilhas, donos de uma pronúncia estranha, arrastada e pouco inteligível, mas graciosa e ternurenta, tornaram mais vivo, mais alegre, mais claro e menos silencioso, aquele inóspito e estranho ermitério. Instalaram-se nas camas ainda vagas, ocuparam as carteiras livres, arrumaram as malas nos espaços disponíveis e completaram os restantes lugares do refeitório, enchendo o Seminário por completo.

À tarde, foi-nos apresentado o outro prefeito, o padre José Franco, cuja primeira tarefa foi a de formar a “bicha”. Tendo como critério principal a altura de cada aluno, colocou os mais pequenos à frente e os maiores na retaguarda. Nessa altura tive o meu primeiro momento de ânimo, conforto e alegria. Eu e o Manuel Faria, a quem aos poucos mais me ia afeiçoando e que, umas vezes me consolava e outras, chorava tanto ou mais do que eu, éramos, sem sombra de dúvida, os mais pequenos, pelo que formamos par e fomos colocados na frente da fila: ele à direita e eu à esquerda. Atrás de min, o Jorge Nascimento, acabado de chegar de São Pedro de Ponta Delgada e, a seguir ao Manuel Faria, o Lima Oliveira, vindo do interior da ilha. Lá no fundo e porque eram os maiores, o José Gabriel, o José Maria Couto, o Onésimo, o Octávio, o José Maria Bettencourt e o Noé. Pelo meio, os restantes, formando um total superior a trinta, a que se juntavam quase outros tantos do segundo ano. Seria assim, em fila indiana, que nos havíamos de deslocar, durante dois anos, quer fora quer dentro do Seminário, nas idas e vindas, para os passeios, para as aulas, para o refeitório, para a capela e, até, para ir ao coro da igreja, fazer a oração da noite, antes de dormir.

Organizada a “bicha”, tocou a campainha e conduziram-nos, através de escuras e fleumáticas escadarias de pedra, até à capela-mor da igreja de Todos os Santos, onde fomos recebidos pelo Reitor e pelos restantes professores, onde rezamos em conjunto pela primeira vez e onde nos foram transmitidas algumas das normas, das orientações e das regras que haviam de orientar a nossa vida, a partir daquele dia.

O reitor do Seminário era o padre Jacinto Almeida, um homem baixo, de meia-idade, sempre muito sério e de poucos sorrisos. Geralmente estava no seu quarto, raramente celebrava missa para os seminaristas, a não ser nos dias considerados mais importantes ou especiais, mas no refeitório era ele quem presidia às refeições, fazendo as orações iniciais, anunciando o “Deo grátias” – sinal de que terminava o período de silêncio e podíamos conversar - e, no fim, dava indicação para que os seminaristas se levantassem e saíssem. Era sobre ele que caía toda a responsabilidade e orientação da casa. Leccionava as disciplinas de Latim e Francês, com grande rigor, exigência e sabedoria. Por vezes, também aparecia nos recreios, conversando com os alunos e contando algumas histórias, mas sempre com um ar muito sisudo e, aparentemente, um pouco distante. 

O Dr Simão Leite de Bettencourt era o director espiritual, confessor e professor de Religião. Já de avançada idade, passava muito tempo na sua terra natal, a vila da Lagoa. Fora durante muitos anos professor e director espiritual do Seminário de Angra, e agora, ali, estava numa espécie de pré-reforma, dado que os seminaristas que frequentavam aquele Seminário, de tão novinhos que eram, pouco trabalho lhe davam, em termos de exigências e práticas espirituais. O Dr Simão, logo que soube que eu era da Fajã Grande das Flores, manifestou um enorme carinho e interesse por mim, dispensando-me grande atenção e amizade. Gostava muito de conversar comigo, porquanto, há uns anos atrás, tinha ido passar as férias de Verão à Fajã Grande. Tanto gostara, tanto se extasiara, tanto se envolvera com tudo e com todos e tantas saudades tivera que, passados uns anos, lá voltara, embora eu dessa segunda visita, que da primeira ainda nem era nascido, tivesse apenas uma vaga e ténue lembrança. Ficara hospedado em casa do padre Jaime, na Assomada, mesmo ali ao lado da minha casa, pelo que se lembrava dos meus pais, de meus irmãos e até de mim. Além disso conhecia quase metade das pessoas da Fajã Grande e até da Ponta, pelas quais me ia perguntando, uma a uma. Contou-me que subira o Outeiro Grande, o Pico da Vigia, a Bandeja e até a Rocha, bebendo água na Fonte Vermelha. Fora várias vezes celebrar missa à Ponta, substituindo o pároco, o Senhor Padre Pimentel. Visitara a Cuada, fora às maçãs ao Delgado e às ameixas à Cabaceira. Viu as lagoas dos Matos, a Rocha dos Bordões e deu belos passeios até ao Poço da Alagoinha, às Furnas, ao Areal e ao Porto, sendo que estes eram diários, sentando-se, à tardinha, à beira mar, a ver o pôr-do-sol. Não cessava de louvar e engrandecer a Fajã Grande: a imponência das suas rochas com as admiráveis quedas de água, a beleza das paisagens, a bondade das pessoas, a simplicidade do seu viver e a singeleza dos seus hábitos e costumes. Numa palavra, afirmava sem rodeios, que depois da sua terra natal, a Vila da Lagoa, o lugar açoriano de que mais gostava era sem dúvida a Fajã Grande, o que me envaidecia e lisonjeava de sobremaneira. Foi este relacionamento amistoso que o Dr Simão sempre me dispensou que, aos poucos, me foi animando, alegrando e, de alguma forma, fazendo apagar mágoas, desfazer tristezas e até sublimar as saudades.

Por sua vez o padre Agostinho e o padre José Franco eram os prefeitos. Era a eles que cabia a responsabilidade e a custódia dos seminaristas desde de o amanhecer até à hora de deitar e, mesmo depois desta, permaneciam algum tempo nas camaratas, passeando para trás e para diante, às escuras, até que os alunos adormecessem ou eles julgassem que todos tivessem adormecido por completo. Eram eles que celebravam a missa da manhã, orientavam as orações e a meditação, acompanhavam as horas de estudo, os recreios, nos faziam as compras de livros, cadernos e restante material e até eram eles que nos acompanhavam durante os passeios para fora do Seminário. Tudo isto era feito semanalmente e à vez, por cada um deles. O padre José Franco era também o ecónomo da casa e professor de Português e Matemática, enquanto o padre Agostinho Tavares exercia as funções de secretário do Seminário, leccionando as disciplinas de Ciências e Música.

Um único professor não residia no Seminário. Era o padre José Baptista, professor de Desenho e pároco de São Pedro, de Ponta Delgada.

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publicado por picodavigia2 às 09:08





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