PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TRELA COM TRELA
Passeava com um cão, preso por uma trela, pelas ruas desertas. Ninguém imaginava o bem que lhe sabia aquela brisa entontecida, vinda do mar, com um sussurrar meigo, apesar de distante. Já não conseguia ver a montanha cravejada de um negrume cinzento e espesso que aguentara todo o dia e jurava persistir durante a noite. Talvez a madrugada seguinte fosse um sorriso de ternura alvo. Às oito e vinte e cinco em ponto havia de passar em frente ao hall de entrada do grande hotel. Eram infindáveis os sorrisos flavescentes, o olhar trémulo, a decisão de continuar a prender o cão pela trela. Um encontro inesperado, de segundos que nada decidiria mas que os deixaria enlevados, embevecidos. E o cão a vociferar num inequívoco tormento de estar preso. Recusava postar-se ali, a dar trela, preso à trela, a negociar um milímetro que fosse de intimidade, de entrega, de respeito e de consideração. Se a trela lhe exigisse mais um esmerado sorriso, oferecê-lo-ia, de bom grado, mesmo que tivesse que se atrelar à trela. Ficaria ali a tarde toda, as tardes todas mesmo que a montanha nunca se descobrisse e o mar não cessasse o seu sussurrar roufenho. Tinha a certeza que se esvairia num entrega íntima e infinita. E foi o som surdo de um navio naufragado há séculos que o acordou. Era como se o infinito dedilhasse um piano e das teclas desafinadas saísse uma melodia seráfica, virginal. Voltou-se e, por momentos, desejou ser ele a estar preso à trela, a fim de prolongar indefinidamente a aquele encontro e a conversa que o envolveu. Desejava simplesmente uma trela com trela.