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UM COMPANHEIRO

Sábado, 15.02.14

Logo após a minha chegada a Ponta Delgada, a bordo Carvalho, saindo da Doca e atravessando o Largo de São Francisco, seguia em frente, numa rua de prédios antigos e altos, que me faziam lembrar a rua Direita, em ponto grande. De seguida voltei à esquerda, depois à direita, passei junto ao liceu e, finalmente, cheguei ao jardim Antero de Quental, no cimo do qual ficava o Seminário. Eu seguia só, acabrunhado e triste, pelas ruas de Ponta Delgada cheias de lojas, repletas de carros e apinhadas de gente, a caminho do Seminário. Lamentava o meu infortúnio e indignava-me com o meu destino. Sentia-me só, não conhecia ninguém e, no meu íntimo, desejava, imediatamente, voltar para Flores, donde nunca devia ter saído. Aumentavam, galopantes, as saudades de meu pai, de meus irmãos, da minha casa, da minha avó e até da minha ovelha, Além disso, preocupava-me de sobremaneira e entristecia-me, sobretudo ao pensar que não tinha as chaves, nem sabia como havia de abrir as minhas malas. Mas não podia continuar assim. O Carvalho partiria, dentro em breve, mas para Lisboa, bloqueando-me, por um mês, o regresso às Flores, donde eu agora estava muito longe. Por isso, continuava, só triste e macambúzio, enquanto os outos conversavam, brincavam e tentavam divertir-se. Pensei, então, que não poderia continuar assim. Tinha, necessariamente, que me juntar a eles, meter conversa com alguém.

Foi ainda, no largo de São Francisco que o fiz. Enquanto parámos a observar o Castelo de São Brás, a igreja do Convento de Santo Cristo, a de São José e o Hospital, dirigi-me a um dos que me acompanhavam na demanda do Seminário pela primeira vez e que como eu viajara no Carvalho, desde o Faial, donde era natural. Ouvira-o na doca, quando o padre Agostinho lhe perguntara de onde era, responder que era do Faial, da Praia do Norte, freguesia onde outrora fora pároco o meu primo padre António Cardoso, agora colocado na Feteira. Foi um óptimo pretexto para meter conversa com ele, até porque pensava que algo mais nos unia, pois as nossas ilhas pertenciam ao mesmo distrito, o Faial, depois do Corvo era a ilha mais próxima das Flores e ambas estavam bastante afastadas de São Miguel, onde agora fôramos despejados e ambos nos encontrávamos bem longe de casa, quase perdidos.

Estranhamente nem eu, nem o Manuel Faria de Castro - assim se chamava o meu novo e primeiro interlocutor – nos lembrávamos ou sequer tínhamos uma vaga memória de nos termos cruzado a bordo do Carvalho Araújo. O navio era muito grande, transportava muita gente e nem sequer trajávamos de fato preto como os do segundo ano. 

Como eu, o Manuel Faria também espelhava no rosto um misto de tristeza, de estranheza, de mágoa e de angústia, não tanto por estar em São Miguel, longe de casa e da família, mas pelas consequências da crise sísmica, verificada no ano anterior. A Praia do Norte fora a freguesia faialense mais atingida pelo vulcão dos Capelinhos e a família dele, uma das mais prejudicadas. Os pais e os irmãos haviam ficado sem casa, sem campos, sem gado, sem trabalho, sem nada. Muito possivelmente seriam forçados a emigrar para a América ou para a África. De olhos rasos de lágrimas, lado a lado comigo, a caminho da Gaspar Frutuoso, contava-me as cenas horrorosas que durante dias e meses havia vivido, juntamente com os pais e irmãos, durante aquela catastrófica crise sísmica. Foi esta troca recíproca de mágoas e tristezas, este comungar de dissabores e angústias que nos havia de unir e tornar grandes amigos durante os primeiros anos.

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publicado por picodavigia2 às 08:57





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