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UM SUSTO

Sexta-feira, 07.03.14

Ainda nem um mês havia passado, ainda nem me adaptara a nada ou a coisa nenhuma, ainda continuava a chorar pelos corredores e cantos, ainda não tinha feito nada de bom ou de mal e recebi um recado inesperado, abrupto, extremamente apreensivo e desastradamente assustador. Avisou-me um dos prefeitos que deveria comparecer, imediatamente, no quarto do Senhor Reitor. Estarrecei por completo e assustei-me deveras. Sabia que só éramos chamados ao quarto do Senhor Reitor por sermos acusados de factos muito graves ou disparates muito grandes. Como nada havia feito ou dito de grave, cuidei que fosse por estar constantemente a choramingar e a manifestar vontade de voltar para as Flores. Assim, esforcei-me por evitar todo e qualquer indício de lágrimas, por dissimular todo o mal-estar que me ia na alma e por apagar tudo o que fosse vestígios de desgosto ou de tristeza e dirigi-me à reitoria. Entrei no corredor e, muito tímido, bati levemente à porta. De dentro ouvi uma voz forte e clara dizer: “Abra”. Tentando disfarçar o terrível embaraço que pesava sobre mim e o temor inexaurível que carregava sobre os ombros, meti a mão ao pica-porta, levantei-o, abri a porta e entrei.

Era um quarto amplo, mas muito simples e humilde, mais se assemelhando a uma cela de monge medieval do que ao quarto de um reitor. Voltado para o pátio interior do claustro, através de duas enormes janelas, o quarto tinha uma mobília modesta e um ar moderado. Ao fundo uma barra muito semelhante às dos seminaristas, encimada por um cruxifixo, com uma colcha branca e ao lado um lava mãos de ferro com bacia e jarro de esmalte. Flanqueando a parede que ladeava o corredor alguns armários e estantes, uma imagem de Nossa Senhora e ao lado uma secretária com uma cadeira de braços onde o Senhor Padre Jacinto estava sentado, com uma carta numa das mãos e na outra uma faca de cortar papéis, com a qual batia levemente sobre o tampo da secretária. Cumprimentei-o beijando-lhe a mão de acordo com as instruções da Dona Maria. De seguida, sem sequer ordenar que me sentasse, disse-me de rompante, mostrando-me a carta:

- Recebi esta carta da América, da tua tia. Não te a vou ler. Ela está muito preocupada contigo e pede-me que tratemos bem de ti, que não deixemos que te falte nada. Mas isso é o que nós fazemos aqui a todos os seminaristas, não era preciso que ele o pedisse. Junto com a carta, mandou-me um cheque de sessenta e cinco dólares, para pagar todas as tuas despesas. Ela pede-me para ser eu a guardá-lo. Ora isto trocado dará quase dois contos. Deve chegar para pagar a primeira mensalidade, os livros, os cadernos e outras coisas que precises. Creio que deve chegar para pagar as tuas despesas, pelo menos, até ao Natal. Escreve-lhe a contar tudo isto.

Dito isto e sem que me desse oportunidade de eu lhe dizer nada, (na verdade eu até nada tinha para lhe dizer) estendeu-me a mão direita virada com as costas para cima, para que eu a osculasse novamente e disse-me que podia sair. Afastei-me da secretária com um obrigado, abri a porta e saí aliviado, não tanto por ter o dinheiro disponível para as minhas despesas mas sobretudo porque afinal não apanhara nenhum raspanete, pois nada tinha feito de grave.

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publicado por picodavigia2 às 16:57





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