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VOZ DO SILÊNCIO

Sexta-feira, 28.03.14

Noite intensa… Acordei e assomei à janela como se quisesse desfazer o enigma de um pesadelo. O mar, um torrão de espuma prateado e o céu a teimar que se havia de espelhar nele. Mantenho-me vigilante porque sinto que um sopro de voz ciciada, abafa o murmúrio roufenho dos grilos. Algum tempo depois, no entanto, volto a deitar-me cuidando que se me levantasse, definitivamente, havia de dissipar, por completo, o pesadelo que a voz deste silêncio tão profundo, cada vez parecia tornar-se mais real. Afigura-se-me que tombavam pedras gigantes sobre os frágeis arbustos do jardim em frente. Levanto-me, de novo, e volto a espreitar o silêncio, através da janela. As ruas estavam apinhadas de gente, apressada, sisuda, destemida, mas silenciosa. Tento sintonizar o ciciar que ouvira, inicialmente, quando assomei à janela... Mas nada. Nem um som. Tudo parece silêncio e tudo se transforma em silêncio, mas num silêncio que se torna preocupante porque sobre os arbustos do jardim, em frente, já não caíam pedras gigantes mas blocos de neve, enigmáticos, mudos, silenciosos e brancos. Em compensação, a parecer quebrar este silêncio, apenas o irritante, permanente e martelado tique taque do Asónia, colocado numa peanha, presa a uma parede da sala, como se fosse um santo de igreja. Mas não há bater de horas, nem rumores de maresia ou roçar de vento nos ramos dos salgueiros. Um ramo desprende-se, morto, batendo-me na porta, sem ruido, como se fosse uma criança recém-nascida, mudo, silencioso, dissipando, na noite cada vez mais intensa, um profundo silêncio que, apenas, se desdobra em eco. E o céu cada vez cada vez mais a teimar em espelhar-se no oceano.

Agora é a voz ciciada que volta a fortalecer todos os silêncios, perturbando-me, cada vez mais. A manhã está distante e reveste-se de um carisma que a torna quase inatingível. Os cães não uivam e o canto dos galos tornou-se um enigma indecifrável. Tudo se transformou num silêncio opressivo, vácuo e, aparentemente, inútil.

Decido sair, mas todas as portas estão obstruídas e, tentar saltar pelas janelas, para além de correr o risco de me considerarem saído de um manicómio, teria que pular por cima dos arbustos do jardim, desfazendo os blocos de neve e quebrando o silêncio em que florescem. Salto. Subo as escadas do sótão, abro uma de vidro fosco e saio. Conquisto a rua, como se fosse uma ilha, deserta, sem ruídos, sem árvores, sem vento e sem pessoas, Lá ao longe abanam suspiros de pessoas mortas, saídas de túmulos cinzentos onde caem todos os ecos dos ruídos ainda existentes. Ouve-se um silêncio agonizante sob as campas dos que não se erguem dos túmulos. A morte parece entrelaçar-se com a vida e cercear-lhe todos os silêncios.

Uma voz doce de mulher chama-me, sem falar. Traz ao peito, como se fosse um colar, sementes de trevo amarelado. Quer avisar-me, prevenir-me, dizer-me que não me deite junto com os mortos, porque eles são os donos e senhores de todo este silêncio que me rodeia, em que emirjo. 

A mulher insiste, desenhando com os braços gestos de uma tremenda inquietação. Não a conheço porque traz sobre o rosto um lenço ornado com flores, semelhante ao que usava a minha mãe, no dia em que a vi pela última vez e que lhe tapa o rosto, quase por completo. A intensidade da noite desfez-se e a manhã cresce. Já não há sinais nem do mar prateado, nem do céu estrelado. Os mortos, mas apenas os que se ergueram dos túmulos, conversam, em silêncio, com a mulher do lenço igual ao da minha mãe Os mortos evadem-se como se fossem nuvens de fumo e o rosto da mulher, a do lenço igual ao da minha mãe, apesar de apenas meio descoberto, está ornado de silêncio mas transmite-me um gigantesco sorriso de confiança.

De súbito, todas as portas da minha casa se destrancam e todas as janelas se abrem. O dia desabrocha silencioso, mas com um sol enternecedor. Há pássaros a entoarem, em silêncio hinos de louvor à natureza. Prossigo este caminho de silêncio. As ruas abrem-se como se fossem rios secos, sem necessidade de pontes.

Um clarão abre-se, sobre as sombras dos salgueiros. Pela primeira vez, nesta noite de silêncio, ouço, ao longe o doce repicar de sinos, como se fosse o baptizado duma criança acabada de nascer. Abro a janela e apetece-me berrar, juntar-me à voz dos sinos e desfazer por completo aquele tenebroso e inquietante silêncio.

… Mas é o despertador toca, quebrando todos os sonhos, desfazendo todos os silêncios, esclarecendo todos os ruídos…

Afinal é no escuro da noite e no emaranhado dos sonhos que a voz do silêncio se torna mais ruidosa e menos aterradora.

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publicado por picodavigia2 às 14:44





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